Publicado 02/04/2017 08:46
Apadrinhado por um exílio, João Vicente viveu longe da pátria por quase 12 anos. Aos 7, exilou-se com os pais no Uruguai, onde precisou aprender nova língua e jurar a bandeira nos tempos de colégio. Em 1972, morou seis meses no Paraguai antes de se mudar para a Argentina e, de lá, rumar para a Inglaterra, afim de cursar agricultura. Só retorna ao Brasil em 1976, com a morte de seu pai, João Goulart, que entrou para a história como o presidente a ter sofrido o golpe militar de 1964.
Mas a história de seu pai, João Vicente aprendeu a recontar, em seus detalhes ocultos, vicissitudes humanas e peculiaridades políticas. Num recorte das experiências durante o período de exílio, surge o livro “Jango e Eu”, lançado essa semana em Fortaleza, em comemoração dos 40 anos da morte de Jango. Segundo Vicente, traça-se as duas faces de João Goulart.
O Povo – Por que “Jango e Eu” para o título do livro e não “Meu Pai Jango e Eu”, ou algo parecido?
João Vicente – Sempre quando eu falo em palestras e debates sobre as realizações do presidente João Goulart, eu falo assim: “presidente’. Não falo “meu pai”. As questões de Estado foram propostas por um governo, o “governo João Goulart”. Mas quando tenho que falar “meu pai”, em questões pessoais e familiar, de relacionamento, eu falo. E no livro tem muito isso. Crescer no exílio é algo muito pessoal, íntimo. Conquistei muitos amigos, mas, no colégio, muitas vezes as crianças perguntavam o que eu roubei no meu País pra não poder voltar. Nessas dificuldades, aí sim, existe relação muito pessoal que eu falo “meu pai”. Quando se sai da escola para o ginásio, existe um rito de passagem que é jurar a bandeira do Uruguai, cantar o hino. Meu pai estava presente naquele momento. Foi a primeira vez que vi ele derramar lágrima. São coisas que eu tento dividir. O presidente João Goulart fez as grandes realizações das reformas..
Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre o tempo de exílio de seu pai?
O livro surge como um tributo ao meu pai, nos 40 anos da morte dele, e pra mostrar às novas gerações um olhar diferente sobre o “Jango humano”. A academia sempre trata de problemas históricos, mas nunca sobre o “Jango pai” que morreu no exílio tentando voltar ao Brasil – e se negando a voltar enquanto houvesse um brasileiro ainda no exterior, fora do País, para não legitimar a ditadura. Tentamos fazer esse mergulho difícil, nostálgico, cheio de saudades, que era relação de pai e filho, mas que, por sua vez, ali estava um presidente exilado de um País sob a tutela de uma ditadura. Tem esse recorte temporal: começa no dia do golpe (de 1964) e termina no dia da morte de meu pai no exílio. A construção desse diálogo mostra não só o presidente João Goulart como político, mas como ele entendia os fatos políticos, os valores da política. Em palavras simples, ele fala de tudo isso, falando com uma criança.
O senhor fala de tentativa de reconstruir a memória de Jango, e faz isso não só nesse livro, mas em 10 anos de Instituto João Goulart. Como acha que está a memória de seu pai hoje? Não se vê muitos monumentos, prédios públicos, ruas e avenidas relembrando o presidente João Goulart.
Acho que está mudando muito. Só que essas coisas demoram. Foram 21 anos de inserções de nomes de ditadores em estradas, colégios, praças e pontes, e tudo isso passa por um processo de resgate de memória e de verdade. Precisa passar de novo pela Câmara pra tirar esses anos. Tivemos uma conquista recentemente em São Paulo, um Estado avesso ao trabalhismo, até pela revolução de 1932, onde não tem uma avenida com o nome de Getúlio Vargas. O Minhocão lá se chamava “Presidente Costa e Silva” e conseguimos mudar para “Presidente João Goulart”. Mas tudo isso tem um processo lento de amadurecimento.
João Goulart era vice-presidente. Assumiu o cargo de presidente após renúncia de Jânio Quadros, e implantou uma série de reformas: agrária, educacional, fiscal, eleitoral. É uma história muito parecida com a de Michel Temer (PMDB), que também tenta uma gama de reformas, mas ao mesmo tempo muito distinta em circunstâncias políticas. Qual o contraste das propostas de reformas?
Essas são reformas para vender o Brasil. Aquelas eram para proteger o subsolo, o trabalhador, a habitação, construir uma educação humanista através de Paulo Freire, e não isso que estão fazendo agora. Agora estamos criando educação com sistema “goela abaixo”. São reformas para retirar direitos e não para avançar em direitos sociais, distribuição de renda. Essa aqui é a antirreforma. Aquelas eram reformas populares, que davam monopólio de extração e refino à Petrobras, encampação de refinarias estrangeiras, lei de remessa de lucros, a criação da Embratel, o 13º, tudo é criação do João Goulart e conquistas que daqui a poucos estaremos perdendo.
Temos um presidente resultado de um impeachment, a que muitos atribuem o caráter de “golpe”. Mesmo sem a consolidação de uma ditadura militar e um estado de exceção, é uma mudança tão disruptiva quanto aquela?
Veja só, todos os sistemas políticos evoluem, inclusive os dos golpes. Existem dois tipos de guerra: a guerra aberta, onde se conhece o inimigo, e a guerra fechada, que é o que estão fazendo. É a colocação de sicários dentro de um Estado independente, a desmoralização dos políticos, desgaste via inflação, imprensa colocando a favor da modernidade e tirando direitos dos trabalhadores. Mas esse governo que assumiu é tão ou mais podre, que todo dia cai uma manga. É um governo pé de manga. Já caíram sete ministros, mais cinco na lista. Claro que os golpes não são idênticos. As coisas evoluem. Mas o objetivo é o mesmo: tirar do povo brasileiro, o progresso. Temos similitudes também que, depois do Comício da Central, chegou um momento em que a esquerda se dividiu também. Uma parte se chamava “Frente Parlamentar”, que queria as reformas na marra. E Jango era um legalista. A única diferença é que hoje não temos os militares. Mas temos as togas dos juízes, derretendo.