Escravidão no campo: PL 6442 autoriza trocar salário por comida 

Causou perplexidade a notícia de que tramitará na Câmara o Projeto de Lei 6442, do deputado Nilson Leitão (PSDB), que possibilita pagar trabalhador com moradia e alimentação, abrindo brechas para retrocessos civilizacionais no campo brasileiro.

Trabalho escravo no campo - Reprodução

Em entrevista ao site da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil de São Paulo (CTB-SP), Isaac Leite, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiarde São Paulo (Fetaesp), filiada à Confederação nacional dos Trabalhadores em Agricultura (Contag) e CTB, falou sobre a proposta de reforma trabalhista que deve começar a tramitar na Câmara Federal por acerto entre governo e bancada ruralista, a organização da resistência contra os retrocessos e a história da entidade.

CTB-SP: Essa semana foi noticiada uma “segunda etapa” da reforma trabalhista, que seria pautada na Câmara, a partir de um acordo entre governo e bancada ruralista. Existe um projeto do deputado do PSDB Nilson Leitão (PL 6442/2016) aguardando a instalação de Comissão Especial para tramitar.  Como o senhor e a Fetaesp veem essa proposta?

A Fetaesp, como representante de diversos sindicatos de trabalhadores rurais, vê com extrema preocupação a mera tramitação do referido projeto de lei, visto que, no caso de aprovação, trará um grande prejuízo para as relações de trabalho no campo. A duras penas o movimento sindical, liderado pela Contag, atingiu o atual estágio em que se encontram as relações laborais campesinas, buscando um mínimo de igualdade com as condições do trabalhador urbano. Essa luta contou com grande auxílio do Ministério Público do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho, os quais, em conjunto com a atuação dos nossos sindicatos de trabalhadores rurais, conseguiram trazer um mínimo de segurança jurídica para o assalariado rural.

Atualmente, ao menos no Estado de São Paulo, as condições de trabalho do rurícola já são muito melhores do que no passado, havendo baixa incidência de ausência de registro em carteira de trabalho e coibição de práticas irregulares por parte dos empregadores. Dessa forma, conceber um projeto de lei em que as balizas mínimas de direitos e paridade com o trabalhador urbano são completamente flexibilizadas nos parece um enorme retrocesso para as relações de trabalho do meio rural. O projeto é nitidamente formulado para atender a interesses apenas do setor patronal, sem levar em conta as vicissitudes e dificuldades que enfrenta o trabalhador campesino.

O que a Fetaesp pretende fazer para impedir esses retrocessos?

Com toda certeza iremos nos posicionar contrariamente a este absurdo, fazendo gestões junto aos deputados federais do estado de São Paulo, conscientizando-os do retrocesso que representa a aprovação dessa legislação, contando com o apoio da Contag.

Pretendemos ainda reunir nossos sindicatos filiados para debater e formular uma carta de repúdio a ser enviada aos legisladores envolvidos. Com o auxílio de nossos sindicatos, vamos solicitar o apoio das câmaras municipais, pedindo que as mesmas façam moções de repúdio ao projeto de lei 6442/2016. Outra movimentação que já está sendo organizada pela CONTAG é uma manifestação conjuntamente com o Grito da Terra e Marcha das Margaridas, realizados anualmente em Brasília, das quais participaremos ativamente.

O senhor poderia destacar os principais pontos do PL que afetam os direitos do trabalhador rural?

Nosso departamento jurídico esta analisando o inteiro teor do projeto, mas em uma leitura inicial já identificamos diversos pontos extremamente prejudiciais para o trabalhador rural. A lei que regulamenta as especificidades do trabalho no campo, além da CLT de forma genérica, é a Lei 5.889/73, que já traz o conceito de empregado rural assalariado. No entanto, o novo projeto, além de afastar a aplicação da CLT, pretende manter o mesmo texto, mas acrescentando esse absurdo de remuneração “de qualquer espécie”. Ainda que o projeto limite o pagamento com moradia e alimentação, entendemos que a inclusão dessa parte do texto gerará dúvida, sendo uma brecha para que o empregador pague o trabalhador com outras formas de remuneração que não o dinheiro. A nosso ver, a gravidade da inclusão dessa brecha legal é tanta que o trabalhador poderá voltar a ser remunerado por produtos, com a cessão de parte da terra para o cultivo, com carne, leite, etc. Isso, em nossa visão se assemelha a escravidão e é um desproposito muito grande.

Além disso, existem diversas hipóteses para o aumento da carga horária e supressão do descanso semanal remunerado, situações que impactam diretamente na saúde física e mental do trabalhador. O trabalho no campo já é sujeito a condições climáticas adversas e geralmente é extenuante e penoso para o trabalhador. Exigir que ele tenha um aumento no tempo em que fica exposto a tais agentes é uma verdadeira crueldade para com quem produz nosso alimento.

O prejuízo para o rurícola é evidente. Em regra os trabalhadores rurais possuem baixa escolaridade e são pessoas extremamente humildes, muitos deles aceitarão tais condições de trabalho sem questionar. A FETAESP, os sindicatos e demais entidades de representação da categoria profissional rural jamais deixaremos que uma iniquidade dessas seja concretizada.

Na questão da saúde do trabalhador do campo, quais são os principais riscos?

Nesse ponto o projeto simplesmente revoga a Norma Regulamentadora 31, principal norma legal de proteção à saúde do trabalhador rural. No entanto, o texto do projeto de lei 6442/2016 não traz normas equivalentes de proteção à saúde do rurícola. Novamente é evidente o prejuízo e o interesse em favorecimento do setor patronal, visto que as regras protetivas de saúde veiculadas no projeto não são suficientes para propiciar um ambiente de trabalho de higidez à saúde do assalariado rural.

Com a liberdade para que os patrões deixem de adotar medidas de segurança para os trabalhadores, haverá uma grande precarização nas relações de trabalho.

Fale-nos um pouco sobre a história da Fetaesp e sua forma de organização dos trabalhadores rurais.

A Featesp foi fundada em 29 de julho de 1962, com o objetivo de concentrar e organizar a representação da categoria profissional rural. Foi ela quem fundou a grande maioria dos sindicatos de trabalhadores rurais de São Paulo. Sempre esteve à frente das questões de maior importância para os rurais, sendo que podemos destacar a atuação da entidade na greve de Guariba, momento histórico para os trabalhadores rurais do Estado de São Paulo, ocorrida em 1984, quando houve até mesmo morte de trabalhadores no movimento.

Diversas conquistas históricas dos rurais contaram com a participação ativa da Featesp, sendo que podemos destacar a inclusão dos trabalhadores rurais e dos segurados especiais no sistema previdenciário, os programas de crédito para os agricultores familiares como o PRONAF, a aquisição do sistema de aprendizagem rural – SENAR, dentre outras.

A partir de 2014, a Featesp passou a representar apenas os trabalhadores na agricultura familiar, no entanto, segue tendo em seus filiados diversos sindicatos de trabalhadores rurais, que representam também os assalariados rurais. Atualmente temos trabalhado incessantemente na organização da representação sindical dos agricultores familiares no estado de São Paulo, prestando orientação e assessoramento tanto para os representados de forma direta, quanto para os sindicatos a ela filiados, além de desenvolver projetos para melhoria das condições sociais de seus representados em parceria com os poderes públicos, tais como os cursos do SENAR e desenvolvimento do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). Além disso, presta assessoria jurídica, contábil e organizacional para os sindicatos filiados.