Carta de Paulo Fonteles para sua mãe

Neste domingo (11), completa-se 30 anos do covarde assassinato do ex-deputado e advogado de posseiros paraense Paulo Fonteles. Na série de homenagens, o Portal Vermelho publica uma carta que ele escreveu para sua mãe Cordolina Fonteles (Dona Nita), após a legalização da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1985. Na carta, ele narra seu amor e sua luta na UNE, misturando a intimidade de seu lar. Leia a íntegra:

Cordolina Fonteles

Carta a Dona Nita

A senhora se lembra mamãe?

Foi na segunda semana de novembro de 69. A barra estava pesadíssima. As grandes mobilizações de rua dos estudantes, as ocupações de faculdades, as greves, já eram coisas do passado. Era um tempo de repressão, de faculdades ocupadas por tropas, de Diretórios proibidos, de estudantes presos, torturados e assassinados. Da UNE, nem se podia falar.

Ibiúna tinha "caído". Não fui lá porque só consegui a passagem na velha PRA, no último momento, perdi o avião. Mas havia um punhado de estudantes que haviam decidido reorganizar a nossa entidade de qualquer maneira, marcando o XIX Congresso por Estados. Aqui no Pará se resumia numa meia dúzia: a Laise Salles, o Arnaldo Barreto, o Capixaba, eu, o Luís Lima, o Mesquita, o Franco, o Wilson, a Margareth Refskalefsky, o Barata, a Zinalva, o Piba, entre outros.

Realizamos o Congresso na mais absoluta clandestinidade. Só tinham acesso os presidentes de entidade e os remanescentés da diretoria decomposta da UNE. A primeira parte foi feita lá na Agronomia. A segunda dentro do próprio hospital Juliano Moreira, onde o Capixaba era estagiário.

Foi aí que fui designado pra ir "montar" o Congresso de Manaus. Era uma grande responsabilidade, ir representando a UNE numa viagem a um outro Estado. Eu tinha 20 anos, e me enchi de orgulho de ter sido o escolhido. Fizemos uma coleta e conseguimos comprar a passagem de avião.

Na véspera, preocupado, resolvi lhe contar da viagem. A senhora, com justo receio, não perdeu tempo. Quando o papai chegou, confiou-lhe meu segredo. A senhora se lembra? O velho perdeu o controle. Gritou comigo, que todo o quarteirão ouviu: que eu não me governava, que enquanto eu tivesse sob o teto dele eu não daria viagem nenhuma etc, etc, etc. Ah! Subi pro meu quarto inteiramente derrotado, humilhado e batido, e chorei a tarde inteira como um bezerro desmamado.

A vergonha maior era ter que confessar para os companheiros que eu não poderia cumprir tarefa revolucionária tão importante porque o papai não me deixava viajar.

Mas o pior estava por vir. Eu tbm havia sido designado para representar o Pará na reunião final da UNE, que seria realizada no Rio de Janeiro. E puxa! Na antevéspera,  o papai tinha se operado, com alta taxa de açúcar no sangue. Diziam-me que qualquer aborrecimento que ele tivesse ele poderia falecer. Aí eu entrei em parafuso. Eu tinha direito a dois votos pelo Pará no Congresso da UNE. Era uma tarefa da maior importância. Apesar de toda a repressão, A luta interna dentro do movimento estudantil estava ainda mais acesa. O Congresso seria decidido por um ou dois votos.

Eu me considerava responsável por todas as dores do mundo, por toda resistência contra o fascismo, por todo o futuro do nosso povo. Não ir ao Congresso, seria trair todo o meu ser… Mas, e o papai? A senhora sabe o quanto eu gostava dele.

Foi aí mamãe que a senhora me encontrou no meu quartinho de estudos, lá no fundo do quintal, chorando desgraçadamente. Eu não tinha contado nada pra senhora, com o medo que a senhora fosse falar novamente para o papai. Aí quando a senhora me perguntou o que eu tinha, eu lhe contei, disse-lhe que não iria ao Congresso por causa do papai, mas era uma decisão terrível pra mim.

Ah mamãe, a senhora se lembra. A senhora disse pra eu não chorar mais, que se era tão importante pra mim aquela viagem, que eu fosse, que a senhora cuidaria do papai. E quando eu lhe disse que não tinha nem dinheiro para viajar, a senhora me arranjou 50 mil. Quando eu voltei do Rio, com o Jean Marc eleito presidente da UNE, pela diferença de 3 votos, o papai balancando-se numa cadeira me lançou o olhar mais bonito que eu lhe tenho guardado por toda a vida; e não me disse nada. Dois dias depois, A Junta militar decretava o AI-5.

Depois fui pra Brasília. O ME aqui estava quase organizado. Precisava-se de um militante estudantil para reorganizar a UNE na capital federal. Meu sonho não durou 2 anos. Quando, praticamente, já havíamos conseguido reorganizar o ME em Brasília, estruturando a UNE clandestinamente, veio a prisão. com ela, A maldade do mundo:o DOI-CODI, o PUC da PE PÉ de Brasília, A tortura, a morte rondando sempre e sempre em torno de minha cabeça, o desfaziamento dos sonhos. Companheiros morrendo, enlouquecendo, fugindo. Por fim, o presídio São José… Quase dois anos preso. E eu que "cai" menino, sobrevivi homem, quase velho.

Pois é mamãe. ainda teve a minha volta pra universidade em 75, aqui em Belém. naquele tempo eu só faltava "apanhar" em casa, mesmo casado, se falava em voltar pra atividade política. mas a senhora sabia, eles cortaram o meu corpo, porém mantive a chama de minha alma acesa. E como quem não quer nada, fui ajudando os novos militantes do mE da UFPa a reorganizarem o movimento. No final de 77, os estudantes haviam retomado quase todos is DA's. E de quebra o DCE, há muito nas mãos da reação.

Hoje, mãe, eu fiquei muito emocionado. vi pela televisão o presidente Sarney assinando o reconhecimento e a legalização da UNE. Ah! minha doce mãe – ali tem o sangue de muita gente. o sangue de Honestino Guimarães, o sangue do Gildo, do Mata Machado, da helenira Resende, todos mortos, e de tantos outros jovens estudantes, os melhores do meu tempo. Idealistas, patriotas, corajosos e destemidos, que ousaram enfrentar uma ditadura militar, A mais sanguinária ditadura militar de nossa história, com o ardor e o encanto que bem o mais louco poeta poderia cantar.

Ah mãe, ali também tem um pouquinho do meu sangue, do meu pranto, da nossa dor. da dor de nossa família. Do choro convulsivo de meu pai, das visitas nas tardes de domingo ao São José.

Mas ali tem, sobretudo, sua extraordinária coragem, seu incomensurável amor aos filhos, maior que a senhora mesmo, na concepção mais bonita e honesta de que "seus filhos não são seus filhos, são filhos do mundo. Ali, mãe, está o seu alimento, a fé na democracia e na liberdade, que nos levou na resistência na SDDH, aos campos do Araguaia, aos palanques das diretas, na compreensão de que mais importante do que nós mesmos, do que seu filho, é a vida do nosso povo. por isso mãe, me desculpe o nosso Newtom Miranda, último presidente da UNE na clandestinidade, me desculpe o Pingarilho, Vice-Norte da UNE aqui em Belém, me desculpe o Renildo Calheiros, presidente da UNE, me desculpe o Aldo Arantes, autor do projeto de legalização da UNE, me desculpem todos osveram antes- que a UNE é deles – mas eu queria, com toda a humildade, lhe dedicar essa Vitória. a legalização da gloriosa União Nacional dos Estudantes.

Mãe, viva a UNE!
A UNE SOMOS NÓS,
NOSSA FORÇA E NOSSA VOZ!!!

Paulo Fonteles