André Calixtre: A sombra das reformas trabalhistas
A sombra das reformas trabalhistas está pairando sobre o Senado. Cada passo em sua direção é um reencontro do Brasil com sua ditadura profunda, com a permanência da escravidão e com o gozo relinchante da desigualdade escondido no semblante sério dos economistas da modernização.
Por André Bojikian Calixtre*
Publicado 11/07/2017 17:10
O mercado de trabalho brasileiro representa o principal motor das mudanças sociais. Por sua imensa capacidade redistributiva, pela conexão entre salário mínimo e as rendas gerais do trabalho e pela melhoria da estrutura ocupacional com a redução de 10 pontos percentuais na taxa de informalidade, a incorporação de milhões de brasileiros ao mundo do trabalho respondeu por 70% do crescimento da Renda Domiciliar Per Capita e por quase metade da redução do Índice de GINI no período recente.
Os anos 2003-2014 foram especiais nesse sentido, um período em que o motor redistributivo do mercado de trabalho recuperou perdas históricas na proporção de salários sobre o PIB, variável chave para compreendermos o conflito distributivo entre capital e trabalho, a chamada distribuição funcional da renda, que saltou de 39,29% do PIB em 2004 para 45,53% em 2014.
Esse movimento de uma década é apenas comparável a outro período curto, entre o segundo governo Getúlio (1951) e o golpe de 1964: todos os outros períodos são de manutenção ou piora da distribuição da renda em favor do trabalho.
O grande mérito dessa capacidade redistributiva é o sistema regulatório do mercado de trabalho brasileiro, que foi capaz de soldar a dinâmica de todos os salários ao comportamento do salário mínimo, seja do setor informal ou do setor formal, especialmente no período em que a dinâmica deste mercado heterogêneo é ascendente (mais empregos com redução da informalidade e aumento da participação dos salários sobre o PIB).
Mesmo sustentando altos graus de informalidade, o que definitivamente é uma deficiência ainda não superada pelo sistema, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), arregimentada em 1943, trouxe como vetor inestimável a capacidade de a sociedade avançar na apropriação de recursos pela classe trabalhadora, mesmo diante da absurda heterogeneidade produtiva e regional do subdesenvolvimento brasileiro. As raras décadas em que esse mecanismo foi utilizado, o resultado é o mesmo: ficou a memória popular de um período de grandes avanços sociais, que, no entanto, desembocaram em violentos desfechos.
No centro dessas rupturas em favor da recuperação da desigualdade funcional da renda, a principal vítima tem sido o mercado de trabalho, objetivamente a CLT. A reforma trabalhista do regime militar foi o carro-chefe do golpe de 1964, que eliminou o benefício da estabilidade do emprego, substituindo pelas regras vigentes que todos conhecemos, inclusive com a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Defendida à época como uma necessidade “modernizadora”, a reforma da ditadura militar permitiu 20 anos de congelamento real do salário mínimo e estabilizou o conflito distributivo em favor do capital. O objetivo da antiga reforma trabalhista foi atingido: neutralizou a apropriação relativa da renda nacional pela classe trabalhadora, mesmo diante de altíssimas taxas de crescimento e baixo desemprego. Mesmo assim, a sensação do trabalhador à época era de conforto: a desigualdade crescia, mas todos experimentavam melhorias significativas de suas condições de vida.
A reforma trabalhista do período militar não resolveu desigualdades profundas no mercado de trabalho brasileiro, reduziu sensivelmente os ganhos da classe trabalhadora em relação aos ganhos do capital com o crescimento econômico; mas, ao fim de tudo, não conseguiu reverter em absoluto a capacidade redistributiva do mercado de trabalho, permanecendo-a em estado latente entre as décadas da redemocratização e do Plano Real; e renascendo com surpreendente força transformadora no período 2003-2014.
Mais uma vez, o curto ciclo de redistribuição de renda encerrou-se com a violência de um golpe de Estado, agora mais acanhado, parlamentar, porém com os mesmos objetivos vingativos: recolocar o mundo do trabalho sob as rédeas do capital. Nesse sentido, a neorreforma trabalhista opera suas sinapses para induzir ao trabalhador brasileiro a falsa vocação para a modernidade, quando faz o inverso de retroceder ainda mais a regulação trabalhista para níveis bárbaros.
A grande mentira da nova reforma trabalhista é o discurso de superação da chamada “hipossuficiência” do trabalhador, ou seja, do princípio mestre que organiza o Direito do Trabalho, onde a relação trabalhista, seja ela qual for, estaria primordialmente marcada pela assimetria entre as partes do contrato, pois o vendedor de trabalho não possui as mesmas condições de negociação que o comprador de trabalho: o primeiro oferece serviços em troca da real e concreta subsistência, enquanto o segundo apenas o faz em troca de lucro. A hipossuficiência define uma série de salvaguardas à relação do trabalho, protegendo a parte essencialmente mais fraca.
Dizem os defensores da reforma trabalhista que a hipossuficiência é um conceito ultrapassado à forma como o capitalismo se organiza contemporaneamente. Ao negarem a necessidade de respeito à hipossuficiência, desenrolam-se todas as propostas contidas na permissão do negociado sobre o legislado em todos os acordos coletivos – ressalvadas algumas garantias elementares como 13º, licença-maternidade mínima e outras – e na reintrodução de formas contratuais flexíveis, como a ampliação do conceito de trabalho parcial para o regime de 30 horas com permissão de 2 horas extras, aproximando-se muito do contrato normal de trabalho de 44 horas; e com a criação da figura do trabalho intermitente, a ser pago por hora, sem critério mínimo que permita o planejamento do trabalhador entre o tempo livre e o tempo de trabalho.
O engodo do discurso é que a hipossuficiência está reafirmada negativamente no próprio texto da reforma, ao restringir as novas “liberdades” somente às negociações coletivas, salvo em se tratar de trabalhador de nível superior com salário maior que duas vezes o teto do RGPS, conforme o texto. Ora, se isso não é prova confessa da hipossuficiência do trabalhador, mostra ainda uma face perversa da afirmação legal das desigualdades no mercado de trabalhos, restringindo liberdades aos trabalhadores e liberando privilégios à restringida classe média escolarizada.
Todas as novas formas de contratação introduzidas pelo texto visam ao setor formal do mercado de trabalho, e não à redução da informalidade, como querem seus propagandistas. O trabalho intermitente e a ampliação do conceito de contrato de trabalho parcial são endereçados ao setor de serviços formalizado cujos “custos” de trabalho acompanharam elasticamente o processo de recomposição do salário mínimo. A jogada é pagar o mínimo como uma razão das horas trabalhadas, não mais pelo seu valor cheio, o que vai responder por uma explosão de trabalhadores formais com renda mensal inferior ao salário mínimo.
A sombra das reformas trabalhistas está pairando sobre o Senado. Cada passo em sua direção é um reencontro do Brasil com sua ditadura profunda, com a permanência da escravidão e com o gozo relinchante da desigualdade escondido no semblante sério dos economistas da modernização.
*André Calixtre é mestre em Economia Social do Trabalho e doutorando em História Econômica, ambos pelo programa de Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp