Publicado 24/07/2017 11:04
Em torno de 90% dos bebês colocados para adoção na região central de São Paulo são filhos de mães dependentes de crack e em situação de rua. Segundo a juíza Cristina Ribeiro Leite, responsável pela Vara da Infância e Juventude que atua no centro da capital paulista, muitas dessas mães são conhecidas no território e já ficaram grávidas várias vezes.
“É comum termos mães com sete ou dez gestações. Muitas não sabem dizer onde estão os filhos e nem os nomes deles”, afirma a juíza. Ela lembra ter atuado recentemente num caso em que a mãe estava na 17ª gestação.
De acordo com a juíza Cristina Leite, a recorrência com as mães envolvidas com crack deve-se ao fato de elas não aceitarem medidas contraceptivas na esperança de estar em melhores condições na próxima gestação e, então, conseguir criar o filho. “’Eu ainda vou ser mãe um dia’, elas dizem, mas na prática não conseguem”, explica a juíza. “Temos essa realidade bastante dura.”
Os bebês colocados para adoção na área de abrangência da Vara da Infância Central provêm, em sua maioria, de partos ocorridos na Santa Casa de Misericórdia, no Hospital das Clínicas ou mesmo nas ruas, dentro de ambulância ou viatura policial. A situação é sempre dramática.
“Muitas estão tão perdidas que não conseguem dar relato sobre a família, não conseguem sequer dar o prenome de uma avó que talvez pudesse acolher aquela criança. A gente sempre prioriza retornar a criança para a mãe ou alguém da família”, explica a juíza.
A realidade, entretanto, é outra. Segundo Cristina Leite, são raros os casos em que a mãe consegue se recuperar e ficar com o filho recém nascido. As chances são maiores com mães que estão há pouco tempo em situação de rua ou em dependência do crack ainda não muito longa e, assim, aderem aos encaminhamentos da assistência social. “Às vezes consegue se reestruturar e até desacolher o filho, mas em muitos casos não temos informações da família e a mãe se evade da maternidade sem sequer apresentar documento”, diz Cristina.
Ela explica que há casos em que o hospital, ao verificar que a situação da mãe “é muito ruim”, pode não liberar o bebê. Por outro lado, afirma também haver situações em que a mãe foge devido à crise de abstinência. A situação, na prática, é complexa. Segundo a juíza, o direito da mãe é soberano e se ela decide doar a criança, mas depois se arrepende e volta atrás, sua vontade será respeitada. No entanto, esses casos são muito difíceis.
“Se mudar de ideia, em nenhuma hipótese o poder Judiciário vai contra essa vontade, a menos que exista risco para o bebê, como uma mãe usuária de crack ou moradora de rua, entre outras condições. Essa criança, no caso, vai ser acolhida, independente da vontade da mãe”, destaca Cristina Leite.
Saudáveis
Ao contrário do que o senso comum muitas vezes imagina, quase 100% dos bebês nascidos de mães usuárias de crack são saudáveis, apesar da mãe ter usado a droga durante a gestação e não ter feito exames pré-natal. A juíza salienta que o poder público e o Judiciário só colocam para adoção aquelas crianças em que, após os meses iniciais de vida, não se vislumbra nenhuma possibilidade de encontro com alguém da família. “A gente tenta não deixar que elas cresçam nos abrigos”, pondera.
A lista de casais dispostos a adotar um bebê recém nascido é grande, mesmo para aqueles com o perfil da mãe biológica usuária de crack. Na Vara da Infância e Juventude da região central, atualmente há mais de 40 casais na fila da adoção. “Esses bebês não têm nenhuma rejeição. Os casais que vêm se habilitar já sabem dessa realidade. Se o casal rejeitar uma criança filha de uma mãe da drogadição do crack, ele não vai conseguir adotar. São raros os bebês que vêm de outra forma. Às vezes tem uma mãe que vem fazer uma entrega voluntária, por já ter muitos filhos e não conseguir criar mais um”, explica Cristina Leite.
O problema, de acordo com a juíza, é a adoção de crianças mais crescidas, as chamadas “adoções tardias”. “Temos um número grande de crianças que já estão destituídas do poder familiar, prontas para a adoção, com 8, 9, 10 ou 11 anos de idade, mas não há pretendentes para essa faixa etária.” Quanto maior a idade da criança ou do adolescente, mais remota é a possibilidade de adoção.
Somente na região central de São Paulo há 19 serviços de acolhida. No total, atualmente há 275 crianças e adolescentes acolhidos, com idade entre zero e 17 anos. Os bebês com idade entre zero e três anos costumam ficar pouco tempo e são rapidamente adotados. Entre os outros há adolescentes com HIV que antes ninguém adotava e cresceram ou irmãos que a Justiça procura manter juntos para não separar.
A juíza diz ser difícil estimar se o número de bebês filhos de mães usuárias de crack tem crescido nos últimos anos, considerando que o problema social com a droga é uma realidade em São Paulo há quase duas décadas. Diz que há semanas em que se acolhe dois ou três bebês, enquanto em outras apenas um ou nenhum. Ela estima que, entre os bebês acolhidos com esse perfil, em metade dos casos se consegue recolocá-lo na família e a outra metade é adotada.
Amparo
Cristina Leite é enfática ao dizer que o objetivo da Vara da Infância é amparar a criança. “Se ela está em situação de risco, nós temos que tomar uma medida. Nossa tentativa de fazer a rede (de assistência social) trabalhar para que a família seja inserida, é sempre sob o ângulo da criança, se ela vai ter um ambiente saudável ou não”, explica.
Para ela, o ideal seria a existência de um serviço de acompanhamento e acolhimento dessas mães, embora ela mesma destaque que é difícil criar o vínculo com mães desse perfil. “Muitas têm três ou quatro filhos acolhidos, estão grávidas e fogem, porque não querem que o novo filho seja também acolhido, que é o que vai acabar acontecendo. Ao invés delas pedirem ajuda, elas fogem do Estado.”
A juíza imagina um local onde as mães que acabaram de dar à luz pudessem ficar com seus filhos e recebessem acompanhamento e atenção. “São mães que muitas vezes nem sabem cuidar do filho, não conseguem dar um banho, mal conseguem comer. Ainda que ela queira tentar se desintoxicar e sair da droga, é muito difícil. Se para uma mãe que tem toda a estrutura já é difícil dar o primeiro banho, para uma mãe que se vê na rua, sozinha, que estrutura ela tem?”, questiona. “É um trabalho de formiguinha. Não adianta esperar por essas mães, precisamos ir até elas e tentar acolhê-las um pouco antes de dar à luz.”
Ela pondera que os dados oficiais dizem não haver bebês na Cracolândia, apenas adolescentes, mas os relatos indicam o contrário. “A gente está todo dia vendo, é nossa realidade, por onde transitamos. Está aí, para todos verem”, conclui, sem meias-palavras para descrever o cotidiano da maior cidade do país.