Barão de Studart e Capistrano de Abreu – A amizade que a História uniu

Em sua gênese histórica, o Ceará foi quase sempre uma das províncias mais pobres do ponto de vista socioeconômico e fortemente marcada em seu território por peculiaridades e desafios ingentes e quase intransponíveis. Paradoxalmente, porém, não foi pequena a sua riqueza mental, no plano simbólico de seu imaginário, onde maiores têm sido suas singularidades.

Eduardo Diatahy B. de Menezes*

Capistrano de Abreu

Não obstante, se abundamos em criações do espírito, numa como compensação de nossa indigência material, em nenhum outro domínio nos excedem como na produção historiográfica. José Honório Rodrigues, com sua reconhecida competência, afirmava taxativo na "Introdução" ao seu Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará [Tomo I a LXVIII. Fortaleza: IUdaUFC, 1959, p. 39]: "O Ceará é o Estado brasileiro que produziu a melhor historiografia regional, a melhor revista histórica, os maiores historiadores no campo regional e brasileiro, Studart e Capistrano." 

Como explicar que dentre nossas manifestações culturais seja a historiografia a sua expressão de maior relevo, a tal ponto que mesmo seus ficcionistas com freqüência se desdobram em historiadores, de que Rodolpho Theophilo é um exemplo relevante, ou, mais perto de nós, um Yaco Fernandes com sua obra lúcida e crítica?

Não é fácil achar explicação plausível e suficiente para o fato. O próprio Capistrano de Abreu, bom mestre do ofício, assinalava o Ceará como "dos Estados do Norte, quiçá de todos da União, o que com mais afinco se entrega ao estudo de suas coisas passadas" ["Sobre uma história do Ceará", Revista do Instituto do Ceará, t. 13, p. 22]. Suscito assim essa reflexão sem pretender discutir a questão aqui. O fato é que o Ceará inicia a construção de sua história desde cedo, já na década de 1850.

Em linhas gerais, é possível encarar sua historiografia sistemática até o presente como um percurso com três fases mais destacadas. A primeira, a dos desbravadores, é a que começa na metade do século XIX e vai até 1887, ano de fundação do Instituto do Ceará. A segunda fase, sem dúvida a mais fecunda, começa com a criação do Instituto e vai até a institucionalização universitária das Ciências Sociais e, portanto, da História, com a criação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no Brasil a partir dos anos 1934 do século XX. No Ceará, porém, isso só se dará com o programa nacional de pós-graduação nos anos 1960 e 1970. A terceira, enfim, é justamente a que se inicia aí, e que parece caracterizar-se por uma produção historiográfica que provém em particular de dissertações e teses acadêmicas, com uma metodologia mais sistemática, novos instrumentos de análise e recursos institucionais, bem como com um esforço interpretativo que busca incorporar uma perspectiva teórica interdisciplinar que forneça quadro mais amplo para o arranjo e significação dos materiais pesquisados; bem como sem desprezar a Economia e atribuindo menor realce à política, buscou realçar aspectos socioculturais.

Conforme assinalado, é na segunda fase que se destacam as figuras de Capistrano de Abreu e Guilherme Studart – período mais fecundo desse processo e que se abre com o marco cronológico de 1887, fundação do Instituto do Ceará e criação de sua Revista. Com as mutações em escala internacional, tanto de natureza socioeconômica quanto tecnológica e científica, da segunda metade do século XIX, com a emergência de novas propostas estéticas, do romantismo ao naturalismo, e sob o influxo de novas filosofias de inspiração positivista e evolucionista, tudo isso influenciando nossos grupos intelectuais, outra geração de estudiosos imprime novo influxo à nossa historiografia.

A orientação historiográfica dominante àquela época enfatizava a pesquisa e exaltava o documento como suporte da verdade histórica. Eis por que Guilherme Studart sustentará, em carta de 26 de junho de 1893, a seguinte posição:

"A história é assim mesmo –– que se faz e se apura. Longos anos são narrados os fatos desta ou daquela forma, até que do pó dos arquivos se desentranha um documento, que, merecedor de fé, bem interpretado, dá aos indivíduos e aos seus atos uma feição diferente daquela com que até então haviam sido encarados e julgados." [Rev. do Inst. do Ceará, t. 84, 1948, pp. 68-69].


E o imenso estuário e repositório dessa produção ampla, rica e primordial, como nunca se tinha feito até então, será a Revista do Instituto do Ceará, assim se mantendo por mais de 40 anos, sob a liderança intelectual principalmente do futuro Barão de Studart, a publicar vasta documentação primária de nossa história, e constituindo-se ela própria em fonte fundamental de sua elaboração.

Vários nomes se destacam nesse período, porém o papel de protagonista principal entre nós cabe ao Barão de Studart (1856-1938), de quem José Honório Rodrigues dá esta apreciação eloqüente:

«a maior figura da historiografia cearense, que já ultrapassa realmente qualquer valor puramente local, para transformar-se numa expressão nacional. O Barão de Studart foi o maior historiador local do Brasil. Não há, em nenhuma historiografia estadual ou regional brasileira, quem se lhe avantaje no amor ao estudo, na vastidão da pesquisa, na capacidade de realização, como cronista, geógrafo, historiador e editor de documentos. (…) era a enciclopédia viva do Ceará… Ninguém trabalhou mais no campo da historiografia local que o Barão de Studart e ele deve e pode figurar ao lado de Varnhagen, o maior acumulador de fatos da história brasileira, seu maior pesquisador, seu maior realizador. Mas não é só esta singularidade que une e aproxima os dois. Studart representa na historiografia local o mesmo papel de Varnhagen na história brasileira geral. Uma pesquisa sem fim, um trabalho exaustivo pelos arquivos e bibliotecas européias, uma vontade inabalável de realizar e, sobretudo, uma nova inspiração, um novo método, uma nova orientação. » [Índice…, op. cit., pp. 33-34].


De fato, o amplo acervo documental para a história do Ceará que colheu, organizou e publicou, ele o obteve com seu esforço pessoal de investigação e com seus próprios recursos, incluindo as viagens que empreendeu com esse propósito.

Capistrano de Abreu, seu antigo companheiro, desde a infância nos bancos escolares do velho Atheneu Cearense, admirador e por vezes crítico severo das atitudes do amigo, recorria a ele muita vez para conseguir documentos de que necessitava. Quando, com documentação abundante e original começa a dar à luz suas Notas para a História do Ceará – Segunda metade do século XVII [Lisboa: Typographia do Recreio, 1892, 507 p.], em carta a Capistrano de Abreu, de 26 de junho de 1893, ele lhe afirma possuir ainda mais documentos para compor 60 a 80 volumes, e indaga modestamente sua apreciação: "Diga-me sinceramente se há nelas [nas Notas…] alguma coisa que se aproveite. Opiniões de homens competentes como V. servem-me muito." 

Esse era o caráter desse pesquisador abnegado e simples.

Nascido em Fortaleza aos 5 de Janeiro de 1856, filho de pai inglês e mãe cearense, era três anos mais novo do que Capistrano e sobreviveu a este por mais 11 anos, ao morrer aos 25 de Setembro de 1938. Fez seus primeiros estudos no Ateneu Cearense, de Fortaleza, onde conheceu Capistrano de Abreu, iniciando amizade e mútua admiração que perdurará por mais de 60 anos.

Muito mais tarde, no belo depoimento que escreveu dessa experiência da infância, Rodolpho Theophilo, também companheiro de escola, dirá:

"O Atheneu Cearense vinha prestar relevantes serviços ao Ceará. (…) Daquelle bando de creanças sahiu o que o Ceará contemporâneo tem de mais elevado em sua mentalidade. Pode-se dizer o período áureo do Ceará mental. Basta lembrar Capistrano de Abreu, Rocha Lima, Paula Ney, Domingos Olympio, Xilderico de Faria, João Lopes, Thomaz Pompeu… " [“O Atheneu Cearense”, in Almanach do Ceará: estatístico, administrativo, mercantil, industrial e literario para o ano de 1922].
 

Concluiu sua formação secundária no célebre Ginásio Baiano, do Prof. Abílio César Borges, onde conquistou medalha de ouro por sua dedicação excepcional aos estudos. De 1873 a 1877, doutorou-se aos 21 anos de idade, na conhecida Faculdade de Medicina da Bahia. De retorno à Província natal, morre seu pai, e ele o substitui, tendo sido nomeado Vice-Cônsul da Inglaterra no Ceará.

Um dos documentos mais vivos da longa amizade de Guilherme Studart e Capistrano de Abreu, que a História uniu e reforçou, é a correspondência trocada entre os dois, em especial a que se preservou entre os anos 1892 e 1922. É possível daí inferir-se o caráter e o estilo de cada um desses grandes trabalhadores de nossa história.

Capistrano, em seu temperamento arredio, em especial quando se tratava de falar de si mesmo, mostra-se aparentemente displicente em face dos rogos do amigo. Numa carta de 19 de outubro de 1892, ele inicia por confessar:

"Meu caro Guilherme, todas as vezes que tenho recebido cartas suas, tenho começado e até concluído a resposta. Mas nunca as mandei para o correio… Dora em diante serei mais pontual."


Todavia, além de críticas severas que fazia a Studart por não enviar ou não publicar documentos essenciais, ele levou seis anos para responder, por fragmentos inseridos em cartas esparsas, seus dados curriculares, que o Barão insistentemente lhe pedia para inserir seu nome no Dicionário Bio-bibliográfico Cearense (3 vols.).

Fortaleza, 13/Jan. e 5/Abril de 2006.


*Doutor em Sociologia do Conhecimento pela Universidade de Tours (França) e Pós-Doutor em História Antropológica pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, com Jacques Le Goff. Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará; Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará; membro do Instituto Histórico, da Academia Cearense de Letras e da Academia Cearense de Ciências. Membro Titular da AISLF – Association Internationale des Sociologues de Langue Française.