Paulo Kliass: Eletrobras – crime da privatização

Foi golpe ou não foi golpe? Até os dias de hoje ainda há gente que resiste a aceitar a evidência dos fatos. A estratégia para aprovar o impedimento da presidenta Dilma carregava consigo o atalho político-jurídico para colocar em prática o sonho dourado da turma do financismo. Depois de sucessivas derrotas nas eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014, finalmente as elites enxergaram uma janela de oportunidade para voltar ao poder sem necessidade de voto popular.

Eletrobras

A ideia mais importante não seria tanto a tomada inconstitucional do Palácio do Planalto. O servilismo e a cumplicidade do vice-presidente Temer para o sucesso do golpeachment apontavam para mudanças muito mais profundas em nossa forma de organizar a sociedade, o Estado e a economia. A onda conservadora perpassava as orientações da ortodoxia na política econômica e avançava em termas mais sensíveis. É o caso do conjunto de aspectos associados ao pacto selado há quase três décadas, quando a transição democrática consolidou as determinações presentes em nossa Constituição em 1988.

E assim, incorporando o personagem a ele atribuído por Antonio Carlos Magalhães ainda em 1999, o atual vice-presidente passou a patrocinar mudanças em nosso país que mais se assemelham a um pesadelo para a maioria da população. Um roteiro característico a ser conduzido por um verdadeiro mordomo de filme de terror. E assim tem sido com a chamada Emenda Constitucional do Fim do Mundo, determinando o congelamento dos gastos púbicos por longos 20 anos. E ainda com a reforma da Previdência e a destruição do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Ou então a promoção do desmonte dos direitos trabalhistas, por meio da liquidação dos dispositivos presentes na CLT. Enfim, a lista das maldades segue extensa, mesclando-se com anúncios frequentes de escândalos de corrupção do próprio Temer e de seus principais assessores.

Na verdade, o que mais impressiona é a passividade quase bovina com que a população assiste ao desenrolar do roteiro cinematográfico de gosto duvidoso. Frente a tal complacência, o grupo encarregado pela produção segue firme em seu intento demolidor. A banalização das cenas de horror em sequência parece provocar uma acomodação da audiência e o espetáculo segue sem resistência visível.

Austericídio e privatização

A obsessão do núcleo duro do governo com a continuidade e o aprofundamento do austericídio agravou ainda mais a crise fiscal. A necessidade de solucionar o desequilíbrio nas contas públicas do governo federal caiu feito sopa no mel. Com isso, ganham reforço as propostas de ampliar a política da tesoura, de maneira que a recuperação da saúde financeira do Estado viria exclusivamente pelo corte de despesas. Mas a realidade se impõe aos modelos de cabeça de planilha e os números da recessão insistem em sua teimosia.

Ao perceber que tal opção cortadora era incapaz de promover por si só o ajuste, o governo agora sai em busca de fontes alternativas de receitas. Isso porque a equipe de Meirelles & Goldfajn não aceita a introdução de novas fontes de tributação para fechar as contas. Assim, não contentes em ampliar o rombo fiscal para R$ 159 bilhões, a turma de Temer agora anuncia o desejo de retomar a agenda de privatização. Uma loucura!

Em pauta a venda da Eletrobras. Trata-se de uma das inúmeras propostas de Getúlio Vargas para a consolidação de um setor público robusto, em especial na área da infraestrutura. A sugestão veio a público em 1954, mas sua criação de fato só ocorreu sete anos mais tarde, em 1961, já sob a breve presidência de Jânio Quadros. A instalação oficial deu-se no ano seguinte, com João Goulart no comando do país.

E agora, passadas mais de seis décadas, o financismo encontra outra oportunidade para fazer terra arrasada desse tempo em que se lançavam as bases do sonho da industrialização e do desenvolvimento. Não bastaram as criminosas e irresponsáveis vendas de empresas estatais da década de 1990 sob a égide de Collor e Fernando Henrique Cardoso. Agora o momento é de promover a privatização 2.0 – liquidar o pouco que ainda resta de setor público em nossa economia.

Energia elétrica: bem público estratégico

O simbolismo da Eletrobras não poderia ser mais apropriado. Talvez ainda sem a coragem política para avançar de forma efetiva e direta contra a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, a Empresa de Correios e Telégrafos ou o BNDES, Temer resolve assumir uma ofensiva contra principal “holding” pública federal na área da energia elétrica.

Os argumentos usados desta vez beiram a irracionalidade e a demência. No passado, sob a égide absoluta do manto neoliberal, a narrativa pressionava sobre a insustentabilidade da dívida pública e que a venda do patrimônio estatal serviria para cancelar esses compromissos do Estado brasileiro, que seriam impagáveis no longo prazo. Todos assistimos à oferta de patrimônios fantásticos como a Cia Vale do Rio Doce ou as empresas de telecomunicações a preço de banana ao capital privado, ao passo em que o estoque de endividamento só fez crescer exponencialmente ao longo do mesmo período. Ficamos com o pior dos dois mundos – dívida pública crescente e ausência de empresas estatais estratégicas para colocar em marcha as políticas públicas essenciais ao desenvolvimento nacional.

No momento atual, a situação é ainda mais escandalosa. A solução aventada é um verdadeiro crime de lesa-pátria. A venda da Eletrobras vem à baila apenas por conta da fragilidade da situação fiscal nesse ano e no próximo. Temer pretende transferir aos conglomerados financeiros internacionais um patrimônio público construído ao longo de décadas para fechar a conta de receitas e despesas do atual exercício fiscal. Um absurdo! Em economês, diz-se que vai torrar o estoque para apagar o incêndio momentâneo do fluxo anual.

Por definição, o período de recessão é sempre o melhor momento para comprar e o pior momento para vender qualquer tipo de ativo econômico. A depressão generalizada e a falta de compradores são fatores que jogam o preço dos negócios lá para baixo. Os negócios estão desvalorizados e as transferências desse tipo de ativo são realizadas em flagrante prejuízo do agente vendedor.

Privatizar Eletrobras: crime de lesa-pátria

O governo especula que poderia obter algo próximo a R$ 20 ou R$ 30 bilhões com a operação carregada de generosidade junto ao capital privado. Ocorre que esse recurso vai virar pó na virada das contas do Tesouro Nacional, uma vez que o deficit primário é – e continuará sendo – bilionário. Ainda que aparentemente travestida de uma simples medida de insensatez, a opção pela privatização revela-se como uma grande jogada de transferência de patrimônio público ao setor privado.

A privatização de um conglomerado como a Eletrobras esconde a transferência ao capital privado de um conjunto de empresas essenciais para qualquer projeto de retomada da atividade econômica e de construção de uma perspectiva de desenvolvimento nacional. Ela controla grupos estratégicos na geração, transmissão e distribuição da energia elétrica por todo o território nacional, como Chesf, Eletronorte, Eletronuclear, Eletrosul, Furnas, entre tantas outras. Além disso, a Eletrobras representa o governo brasileiro na metade que detemos no capital da binacional Itaipu.

Frente a tamanha ousadia e desprezo pelo futuro estratégico de um Brasil inclusivo e soberano, não cabe outra alternativa ao movimento de resistência democrática que não seja a denúncia de mais esse crime. As entidades do movimento social e sindical devem se mobilizar e pressionar os representantes no parlamento, com o intuito de exigir que Temer recue de mais essa investida de natureza antinacional.


* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal