Elza Soares: “A mulher só pode gemer se for de prazer”

"Já nasci marcada pra ser essa mulher guerreira e falar desses problemas tão sérios. Falar da mulher, brigar pela mulher. Hoje em dia a gente continua brigando depois de tantos anos. Eu acho que já tinha tempo de acabar isso tudo".

Por Magali Moser


Elza Soares - Foto: Bruno Oliveira

Os primeiros fãs chegaram por volta de três horas antes do horário marcado para o início do show no hall do Centro de Cultura e Eventos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no domingo, 20 de agosto. Talvez, eles representem a diversidade de perfis e faixas etárias dos admiradores da obra de Elza Soares. Bebeth, como se identificou para mim com forte sotaque sul-rio-grandense uma simpática senhora de 64 anos, professora aposentada de Engenharia Elétrica da UFSC, trazia em mãos um suplemento especial com uma reportagem sobre Elza Soares e estava em busca de um autógrafo. E o fotógrafo Bruno, que conheceu a cantora aos 11 anos, quando Elza participou da cerimônia de abertura dos Jogos Panamericanos Rio 2007. Dali em diante, virara seu fã. Ele saiu de Balneário Camboriú exclusivamente para o show e carregava três CD’s da cantora brasileira do milênio, de quem esperava ao menos o registro em uma selfie. O burburinho era de que Elza chegaria às 18h pela rampa lateral, oposta ao acesso principal. Sabendo disso, deslocaram-se para lá, agoniados para a verem de perto. Cercaram Padilha, o segurança, que não perdeu a paciência com a ansiedade e a quantidade de perguntas.

Lá, embaixo aguardavam mais três fãs de Elza. Duas delas exibiam estilo de corte de cabelo Black Power, semelhante ao da cantora, numa nítida demonstração de filiação e muita admiração. As garotas, estudantes da UFSC, não pareciam ter mais de 20 anos e surpreenderam a fã sexagenária que acompanhava a espera: “Convidei meu filho de 30 anos para vir ao show e ele não quis. Eu pensei que Elza atraísse só gente da minha geração. Ela vai ficar feliz em saber que tem jovens aqui também”, celebrava Bebeth durante a espera. Minutos depois, por volta das 18h40min, um carro preto encostou próximo à rampa. Saíram dele quatro homens. Por fim, Elza apareceu. Quando ela desceu do automóvel, não chovia. O termômetro marcava 19ºC mas soprava um vento com força, deixando a sensação de uma temperatura ainda mais baixa.


Show no Centro de Cultura e Eventos da UFSC, em Florianópolis, no último domingo (20) | Foto: Bruno Oliveira.

Uma das fãs com Black Power começou a chorar de forma compulsiva, parecendo não acreditar estar diante de sua inspiradora. O produtor de Elza pediu para que aguardassem. Primeiro, recolheu os papéis e CD’s trazidos pelos fãs para serem autografados a fim de levá-los até a cantora e fazer a intermediação. Sem papel àquele momento, a moça que se emocionou com a chegada de Elza fez o ato de alteridade ao entregar-lhe o próprio documento de Registro Geral (RG) para ser autografado. Naquele momento, a jovem mistura a própria identidade, pois o desejo pela marca da ídola no documento pessoal parece constituir um ato de assumir uma influência, efeito gerado pela cantora sobre seus fãs. Como a chegada dos músicos sofreu um atraso e Elza ainda precisava testar o som, a promessa era de que ela receberia fãs e imprensa ao final, no camarim. E foi assim que ocorreu, quando a cantora distribuiu beijos de batom no lugar de autógrafos.

Antes da cantora entrar no palco, a plateia entoou o coro uníssono: Fora Temer! Fora Temer! As palavras de ordem foram ouvidas também durante o show, quando Elza comentou: “A voz do povo é a voz de Deus”. O espetáculo abriu com a música que dá título ao álbum A mulher do Fim do Mundo, disco lançado em 2015, 34º de sua carreira e o primeiro só com músicas inéditas. Foi em torno de uma hora e meia de apresentação. Em vários momentos, especialmente entre uma música e outra, vozes da plateia gritavam “divaaaa”, “maravilhosaaa”, “eu te amooo”, e a cantora retribuía com “obrigadaaa” ou então “eu te amo também”, numa interação direta com o público. Sem citar nomes da esfera política uma única vez, Elza Soares também fez do show um momento de reflexão sobre o futuro do Brasil. Repetiu por várias vezes a frase: “Acorda, Brasil dorminhoco”. E parece, de fato, “ensinar” a plateia a soltar o grito preso na garganta, lutar e resistir contra as injustiças sociais, intolerâncias e preconceitos.

Aos 80 anos, Elza demonstra força e energia ilimitadas. A disposição não finda para fazer da carreira um manifesto contra violências de todo o tipo. “A mulher só pode gemer se for de prazer”, disse após a canção “A mulher da Vila Matilde”, que denuncia a violência doméstica. Recebeu o Portal Catarinas e jornalistas para uma conversa breve e com raciocínio rápido de quem pensa sobre tudo o que faz ou como se soubesse das perguntas de antemão. Mas, como ela própria disse ao final “eu já disse tudo o que tinha para dizer”. Nós sabemos que sim, Elza. Mas, no atual contexto, é preciso repetir.

Catarinas – Você é um ícone pra muitas gerações. Por que você acha que as novas gerações ainda se conectam tanto contigo?

Elza Soares – Porque eles entendem o que eu falo. Precisava de alguém que falasse a mesma linguagem. E eu acho que a minha linguagem vai direitinho onde eles querem.

O que é cantar pra ti?

Cantar pra mim é o combustível da alma. É como se fosse a medicina da dor. Eu me sinto muito bem cantando.

O que você tem escutado?

Eu continuo ouvindo Chet Baker que é a minha paixão. Às vezes escuto Ella Fitzgerald, porque há alguns anos atrás eu fiz um trabalho pra ela. Ficamos amigas. Eu … escuto música brasileira, mas tem que estar escolhendo, escolhendo, escolhendo, escolhendo. Tem muita gente boa por aí, lógico, muita gente nova por aí, mas precisa botar na praça.

Você não titubeia quando o assunto é misturar ritmos. Tinha distorção, tinha punk, tinha rap…

Tem tudo. Eu acho que o que você quer cantar, tem que cantar. Você não tem que ser marmelada o tempo todo. Seja goiabada um bocadinho.

Por que fazer da música um ato político?

Não é tão político assim, não. Eu gostaria que fosse mais. Mas como a gente … no Brasil um momento tão fechado… tão…. tão… Você não sabe pra onde a gente vai. Então, tem que tomar muito cuidado com política. Falar pouco, ou não falar nada. E cantar, que aí ninguém pode me proibir de cantar… Não mexo com ninguém. A voz do povo é que é maravilhosa. Acorda o Brasil que tá dorminhoco, né?

Qual é a sua avaliação sobre o momento político por que o Brasil passa?

Péssimo. A gente tá num momento péssimo, a gente não sabe pra onde vai.

E qual é o papel da música diante disso?

É o que eu fiz hoje no palco.

Quando é que você se descobriu feminista?

Logo que eu comecei a cantar. Eu acho que eu já nasci com este dom, com esta… nem sei o que é. Mas, já nasci marcada pra ser essa mulher guerreira e falar desses problemas tão sérios. Falar da mulher, brigar pela mulher. Hoje em dia a gente continua brigando depois de tantos anos. Eu acho que já tinha tempo de acabar isso tudo.

E com relação à mulher negra?

Tá aí (o racismo). Qualquer lugar que você passar o espanador, ele tá presente. É uma poeira suja. E a gente tem que combater. Tem que falar sempre, até cansar.

E qual é o seu próximo projeto?

Tenho um que tá na praça, que é “Na pele”, com a Piti, não sei se você já viu. É muito bonito. É um single. Eu convidei a Piti pra gravar comigo, ela fez a música pra eu cantar. Aí eu convidei que ela viesse cantar comigo a música Na Pele. Ficou muito bonito. E o próximo é “A mulher do fim do mundo” como um programa. A gente tem que pensar muito, porque agora fazer outro projeto em cima da mulher do fim do mundo vai ser bem pensado. A mulher do fim do mundo dá muito caldo ainda. Nós ainda temos muito caminho pra correr.