Poder e Dinheiro nas Eleições Brasileiras (II)

"A proibição do financiamento empresarial de campanha dividiu as águas dos custos das eleições, mas não atacou o mais importante problema do financiamento da democracia: a influência do dinheiro no voto popular".

 André Calixtre*

Financiamento eleitoral

Na primeira parte desta série de artigos, demonstramos, a partir da análise empírica do “Repositório de Estatísticas Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral”, como a classe política não construiu seu poder com base no exercício da representatividade popular, e sim pelo consórcio com o capital. O mecanismo maior desta associação, que permitiu a transição da Ditadura Militar para a Nova República, foi a mercantilização das eleições. De maneira clara e explícita, a ascensão a um cargo político estava conjurada com o poder econômico. As campanhas, financiadas pelas empresas, e não pela sociedade, tiveram no acesso ao capital para a compra do poder a principal determinação entre ganhadores e perdedores do processo eleitoral . Na segunda parte, vamos abrir as relações do poder e do dinheiro com os partidos políticos e analisar o impacto da proibição do financiamento empresarial de campanha no custo médio das últimas eleições municipais de 2016.

Um dos temas mais relevantes do debate sobre a truncada Reforma Política proposta pela legislatura atual é a questão do financiamento de campanha. Entre os argumentos que levam à sobrevivência de uma classe política que se apartou completamente dos interesses sociais e a refundação da Política como espaço nobre de tomada de decisões do Estado, existe um divisor de águas, que foi o julgamento pelo STF da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.4650, proposta pela OAB. Esta Ação proibiu doações de campanha oriundo das pessoas jurídicas, e introduziu uma cunha no sistema político, afetando brutalmente a capacidade financiamento da classe política e estremecendo, aparentemente, a estreita relação entre o poder do dinheiro e a representatividade democrática.

O impacto da proibição do financiamento de empresas foi sentido imediatamente tanto no custo médio quanto no custo total das campanhas municipais de 2016. A tabela abaixo mostra quedas entre 32% a 50% no fluxo de financiamento de campanha, sem que, no entanto, houvesse redução significativa do número de candidatos que concorreram entre os pleitos de 2012 e 2016.



Tabela comparativa Eleições 2012 e 2016 (Municipais) – R$ de 2016
Fonte: TSE. Elaboração André Calixtre


 

Custo Total de Campanha (todos os candidatos)

Custo Médio de Campanha (somente eleitos)

 

2012

2016

Var. Real

2012

2016

Var. Real

PREFEITO

R$ 2.857.399.405,41

R$ 1.491.402.291,11

-47,80%

R$ 236.648,18

R$ 117.061,93

-50,50%

VEREADOR

R$ 2.205.740.726,13

R$ 1.480.402.147,26

-32,90%

R$ 13.179,72

R$ 8.146,30

-38,20%

TOTAL

R$ 5.063.140.130,30

R$ 2.971.804.438,37

-41,30%

R$ 33.201,18

R$ 17.722,96

-46,60%


Os valores estão demonstrados em R$ de 2016, mas se observaram também quedas nominais em todos os cargos de governo da esfera municipal no período. Se, por um lado, o objetivo do barateamento do custo de campanha foi atingido com a resolução do STF, dado que o estrangulamento do acesso aos recursos financeiros pela classe política limitou o processo natural do crescimento do custo das eleições, por outro, a inexistência de um mecanismo público e exclusivo de financiamento de campanhas exacerbou a concentração dos políticos pela ótica de seu patrimônio declarado, em razão da capacidade, ainda maior, de políticos ricos mobilizarem recursos privados, mesmo de apoiadores pessoas-físicas, em relação aos políticos de pouco ou nenhum acúmulo patrimonial. A mesma lógica do dinheiro comprando o poder manifestou-se nas eleições municipais de 2016, porém, em um padrão de funcionamento muito distinto do paradigma empresarial reinante até setembro de 2015.

A primeira relação que podemos erguer para sustentar o argumento acima é sobre a concentração patrimonial média dos políticos eleitos aos cargos de prefeito e vereador em 2016 comparados a 2012. A mudança no modelo de financiamento diminuiu sensivelmente o custo médio de campanha, no entanto, pouco alterou a concentração do voto em torno dos candidatos com maior valor patrimonial declarado. Em 2012, os 10% políticos eleitos mais ricos, entre prefeitos e vereadores, detinham 64,8% de todo o patrimônio declarado no mesmo grupo e concentravam 43,9% das receitas de campanha (sempre considerando somente os políticos que conseguiram a eleição por voto ou quociente eleitoral). No ano de 2016, a última eleição municipal apresentou 63,8% de concentração patrimonial entre os 10% mais ricos e estes representaram 39,8% das receitas de campanha. Diante desse cenário, mostra-se que o financiamento pessoal de campanha barateou as eleições, mas não resolveu o problema fundamental do sistema político: o quase exclusivo acesso pelos ricos à representação democrática.

O uso do termo “quase” ao “exclusivo” é importante, pois há uma qualificação a ser feita nesse argumento. Quando se observa a distribuição patrimonial e o acesso às cadeiras de governo por partidos políticos, tanto em 2012 quanto em 2016 houve partidos políticos com candidatos abaixo da média patrimonial que conseguiram conquistar um número relevantes de cadeiras nas câmaras e prefeituras dos municípios brasileiros. Entre os partidos de esquerda, o PT é o único que possui relevantes assentos políticos com patrimônio declarado abaixo da média, ainda que essa representatividade tenha-se reduzido sensivelmente nas última eleições. Dos 28 partidos que conseguiram eleger prefeitos e vereadores em 2012, o PT era 17º partido com políticos mais ricos e ocupava a 3ª posição em número de cadeiras municipais conquistadas. Em 2016, essa relação mudou para a 16ª posição patrimonial e o 10º lugar em cadeiras municipais, refletindo tanto a dificuldade do partido em financiar as campanhas sem a presença do modelo empresarial mas também é tributária da profunda crise nacional promovida pelo Golpe Parlamentar no começo deste mesmo ano, que afetou o resultados eleitorais do PT nos municípios, cujo maior exemplo foi a derrota de Fernando Haddad em São Paulo para João Dória no primeiro turno. Fora do circuito da esquerda, o outro partido que consegue de forma relevante eleger candidatos com declarações patrimoniais abaixo da média é o PSD, que ocupou a 14ª posição em média patrimonial e a 5ª em cadeiras em 2012, no entanto, este partido quase dobrou sua média relativa patrimonial para a 8ª posição e aumentou para a 4ª em número de cadeiras municipais conquistadas em 2016.

Afora esses comportamentos atípicos, a distribuição dos postos de governo municipais está sensivelmente concentrada nos partidos cujos candidatos possuem a maior declaração patrimonial média e, do ponto de vista da distribuição de riqueza entre partidos, esta concentração aumentou com a nova regra de financiamento de campanha. Observando os gráficos abaixo, vê-se que a maioria das cadeiras municipais de governo é dominada por um conjunto de 7 a 8 partidos apenas, se hierarquizamos a distribuição pelo patrimônio médio declarado dos candidatos eleitos. Dentre os partidos com o maior número de cadeiras e, simultaneamente, os políticos mais ricos, há uma lista tríplice, ocupada pelo PMDB, o PSDB e o PP, seguindo adiante com o DEM, o PSB e o PDT. Estes partidos são referência na fusão entre dinheiro e poder, são aqueles ocupados por políticos cujo patrimônio é consistentemente maior que a média e concentram cadeiras relevantes nas prefeituras e câmaras de vereadores do país.

Gráfico 1. Distribuição do Patrimônio Médio e dos cargos municipais, por Partido. Eleições de 2012

(Somente candidatos eleitos)

Fonte: TSE. Elaboração André Calixtre

Fonte: TSE. Elaboração André Calixtre

Mesmo após a mudança na regra do financiamento eleitoral, e o evidente barateamento médio das campanhas, a média patrimonial real dos candidatos eleitos, no entanto, pouco se alterou. Ademais, a concentração patrimonial entre partidos aumentou: em 2012, oito partidos ocupavam a linha acima da média entre políticos eleitos; esse grupo reduziu-se para seis partidos em 2016. Isso reforça a tese de que o financiamento privado pessoal de campanha não é suficiente para garantir a melhor representatividade da classe política ante a sociedade, favorecendo políticos com fortunas pessoais e capacidade de autofinanciamento e de celebração de redes de solidariedade entre os detentores do dinheiro. Há exceções, com candidaturas que conseguiram mobilizar contribuições individuais de menor valor em grande escala, como exemplo da candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio de Janeiro em 2016; porém, a regra foi a maior concentração patrimonial dos candidatos eleitos, piorando a relação entre poder e dinheiro, ainda que em uma escala de custos de campanha menor.

Por esses motivos, a proibição do financiamento empresarial de campanha dividiu as águas dos custos das eleições, mas não atacou o mais importante problema do financiamento da democracia: a influência do dinheiro no voto popular. Esse argumento reforça a necessidade da constituição de um fundo público de campanhas, mas é preciso muito cuidado com o seu perfil de atuação e o desenho institucional. Da forma como está proposta pela PEC 77, considerado o substitutivo em votação no plenário ainda em primeiro turno, seu desenho visa a suprir duas necessidades desvirtuadas do fundo público: a de complementar a perda de receita promovida pela saída das empresas do jogo eleitoral oficial; a de baratear as eleições como um todo, o que só seria mesmo um argumento verdadeiro se o fundo fosse exclusivo, e não complementar ao financiamento privado de pessoas físicas. O principal objetivo que deveria reger o fundo está negligenciado: desmercantilizar as eleições brasileiras, controlando a presença do capital privado na eleição dos representantes da sociedade. O desenho ideal deste outro fundo público exclusivo para o financiamento da democracia e o formato de uma Reforma Política progressista e transformadora para a sociedade brasileira serão os temas tratados na terceira e última parte desta série de artigos.