Alexandre Weffort: O MST na luta pela Reforma Agrária

Neste ano de 2017 cumpre-se uma década sobre a elaboração de um estudo sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em livro editado primeiramente em Oxford, no ano de 2007 e, depois traduzido, para a língua portuguesa, com o título: "Combatendo a desigualdade social. O MST e a reforma agrária no Brasil" (1).

Por Alexandre Weffort*

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 Trabalho notável, pela compleição e arcabouço teórico evidenciado nos seus 18 capítulos, onde os autores percorrem "a questão agrária e os movimentos sociais do campo" (cap. 2 a 4), passando pela história da "luta na terra: o MST e os assentamentos" (cap. 5 a 8), a uma análise do papel do movimento nos dias de hoje: "MST, política sociedade no Brasil" (cap. 9 a 17). Os capítulos introdutório, sobre a "desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil", e conclusivo, "desafiando a desigualdade: contestação, contexto e consequências", completam o quadro analítico.

A história do MST, esmiuçada criticamente no livro em referência, constitui um repositório analítico indispensável para o entendimento do próprio Brasil. Nela, a questão agrária não se restringe à expressão econômica da agricultura familiar ou do agro-negócio. A mobilização do campesinato promovida pelo MST não se conforma aos modelos clássicos de pensamento sobre a estrutura da sociedade e do papel transformador das classes e estamentos sociais.

O ideário do Movimento assimila os valores mais perenes da matriz cultural cristã, valores equacionados numa filosofia libertária, em busca da igualdade social, não se confinando a uma expressão meramente religiosa dessa matriz. O MST constitui um movimento social bem estruturado, que passou por várias etapas de transformação, em adequação ao contexto político em que desenvolvia a sua ação, sob uma lógica de "ativismo público".

Indica Miguel Carter, no 6º capítulo do livro, sobre a origem e consolidação do MST, três fases distintas: "Durante o primeiro período (1979-1984), as demandas dos sem-terra eram normalmente expressas por meio de “pedidos suplicantes” que visavam a ganhar a simpatia do público geral e incentivar atos de caridade por parte da Igreja e das autoridades do Estado. Durante a segunda fase (1985-1994), o MST começou a manifestar suas reivindicações por meio de transgressões desafiadoras da ordem estabelecida e outras manifestações de “luta agressiva”. Durante o terceiro período (1995-2006), o movimento sem-terra revelou elementos de uma forma de interação mais amadurecida e estável com órgãos públicos e forças relevantes da sociedade civil, definido aqui por um padrão de “engajamento crítico sustentado”.

No epílogo, o organizador do livro coloca questões que podemos ter como relevantes para o entendimento do momento presente, marcado pelo refluxo ao nível das condições políticas após o golpe parlamentar de 2016, das tensões que se observam ao nível político e do papel que nelas desempenham os movimentos sociais. Diz Miguel Carter:

"O Brasil sempre foi de uma minoria autoperpetuada, mas nunca, no passado, a maioria teve como agora uma noção tão nítida do seu banimento interno, do seu exílio sem sair do lugar. A eleição do Lula significou, entre outras coisas, isso. O neo-liberalismo triunfante, além da revolução semântica que transformou insensibilidade social em virtude empresarial, tinha trazido uma espécie de redenção histórica para o nosso patriciado, que afinal só abolira a escravatura para imitar os outros e para não ser chamado de retrógrado. Como ser retrógrado passou a ser moderno, nos oito anos de governo Fernando Henrique, a distância entre minoria e maioria aumentou. E como Lula, frustrando esperanças, continuou a política econômica do governo anterior, o que eu poderia dizer ao arqueólogo do futuro é que talvez estejamos vivendo no Brasil os últimos anos de paciência. Embora ninguém pareça ter o menor temor de que o que não adevolverem por bem terão que devolver por mal" (2).

O MST apresenta uma trajetória que importa conhecer, com potencialidades a desenvolver tanto no âmbito das estratégias seguidas pelos movimentos sociais urbanos (como o MTST), como no das instâncias partidárias, por exemplo, no que refere aos processos de articulação entre as instâncias políticas e religiosas.

O parágrafo citado das conclusões foi publicado num momento de afirmação de uma política progressista no Brasil, no decurso do segundo mandato de Lula. A crítica expressa o desencanto experimentado pelos militantes do Movimento, engajados na luta cotidiana, face às contradições da política produzida a nível do Governo Federal (contradições que se observaram no segundo governo Lula e, depois, nos de Dilma Rousseff).

O desencanto em relação a algumas políticas seguidas pelos governos de Lula e Dilma foram igualmente sentidas em outros quadrantes da sociedade brasileira, tanto a nível dos movimentos sociais como dos partidos que constituíam a base de apoio do governo Dilma. No entanto, tal como aqueles, o MST esteve na primeira linha da luta, acompanhando o esforço de mobilização popular contra o Golpe parlamentar.

O “engajamento crítico sustentado”, manifesto pelo MST como expressão do seu amadurecimento político, será um dos traços a reter, a par da sua prática organizativa a nível dos assentamentos e do desenvolvimento de estruturas de suporte a longo prazo, de formação de quadros e educacionais em geral.

A importância da questão educacional é assumida pelo MST desde o início no seu quadro de referências basilares. Como é indicado no cap. 9 ("A luta na terra: fonte de crescimento e desafio constante ao MST"): "o método pedagógico elaborado pelo Setor de Educação teve forte influência das ideias de Paulo Freire e outros teóricos mundiais da educação popular. Os materiais elaborados pelo setor e utilizados nos seus centros educativos reforçaram os valores defendidos pelo MST, tais como a importância da luta coletiva, a organização, a participação, os direitos de cidadania, a solidariedade, a educação, a diversidade cultural, a ecologia, a terra e a água".

Indica também o autor deste capítulo que a pedagogia do MST "nunca teve pretensão de neutralidade, pois o Movimento sabe que a educação é uma ferramenta-chave numa disputa pela hegemonia, ou seja, o consenso dominante em torno às ideias, valores e percepções daquilo considerado “possível” e “desejável” numa sociedade. É importante., porém, reconhecer que o Movimento é eclético em relação às suas fontes de inspiração e aberto às contribuições de fora do MST, feitas na base do respeito".

Diz Carter, nas conclusões do livro em apreço, que a " experiência do MST proporciona uma lição reveladora quanto às possibilidades de redução da desigualdade social no século XXI", afastando-se, todavia, da possibilidade de seguir esse objetivo através de uma revolução social segundo o pensamento marxista, nomeadamente, da "necessidade de uma tomada violenta do poder e a imposição de medidas drásticas para equalizar a sociedade".

Em alternativa, propõe um projeto político que designará como "democracia radical", uma concepção que "salienta a importância de organizações populares autônomas, sua mobilização e participação no desenvolvimento local e nacional" onde o engajamento popular pode ser fortalecido por meio da criação de parcerias entre o Estado e grupos populares, e sua representação em órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas sociais" incorporando elementos de um modelo de "corporativismo social, onde a representação dos interesses da sociedade se relaciona de forma horizontal com o Estado"(3).

Todavia, o conceito de "democracia radical", como projeto político, não coloca em questão as contradições fundamentais da sociedade capitalista, assumindo como horizonte a "a inclusão dos pobres em um processo produtivo que seja sustentável em termos ecológicos, e proporcione amplo acesso a bens de consumo e serviços sociais básicos"(4), embora o MST tenha tido já, nas suas 3 décadas de existência, a oportunidade de se confrontar com a violência com que a a sociedade reage à questão da Reforma Agrária, com vidas ceifadas nos conflitos impostos pela oligarquia que domina o Estado brasileiro.

Como assinala Miguel Carter, o "primeiro decreto nacional de reforma agrária, entretanto, foi frustrado dias após sua promulgação pelo presidente João Goulart, pelo golpe militar de 1964. A instauração de um regime autoritário foi apoiada por setores conservadores, em especial os representantes da classe latifundiária"(5).

Numa entrevista mais recente, Leonilde Sérvolo de Medeiros (autora do terceiro capítulo do livro em análise) diz o seguinte: "… ganha força uma perspectiva classista. O MST é exemplar deste ponto de vista, na medida em que ele começa a partir da luta pela terra e, em linhas gerais e sem olhar as nuances, o grande adversário nomeado pelo MST hoje são as grandes empresas transnacionais, o que significa atacar todo o sistema de produção e comercialização de produtos agrícolas, as grandes empresas químicas e biotecnológicas. Quer dizer, o grande inimigo é, como eles próprios dizem, o capital. Nesta lógica classista, há um paradoxo: a classe que foi destinada pelo pensamento de esquerda a fazer a grande revolução social, não a fez"(6).

Tanto nas conclusões já referidas como na entrevista agora citada pressente-se um entendimento algo rígido do que será o pensamento marxista, e uma visão algo cristalizada em relação ao papel (e à própria definição) das classes no processo de transformação da transformação da sociedade.

A interpretação à letra de algumas das fórmulas clássicas da teoria revolucionária arrisca não deixar ver o alcance (inclusivamente no quadro teórico) do processo de transformação social concretizado pelo MST junto de uma comunidade mobilizada para a conquista do direito à terra como instrumento de produção de riqueza social.

O êxodo imposto ao trabalhador rural (considerado nas suas diversas formas de relação com a terra) e a organização comunitária propiciada pelo movimento reivindicativo desenvolvido pelo MST, gerou uma comunidade em diáspora, com identidade própria, de um Brasil que se movimenta, em busca da terra prometida. Promessa de uma vida digna que se revê tanto na interpretação libertária dos textos bíblicos como nas utopias em que projetam as teorias e práticas revolucionárias mais consequentes.

*Alexandre Weffort é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura

*Título original: Um Brasil em êxodo, em busca da terra prometida. O MST na luta pela Reforma Agrária

(1) Miguel Carter (org.), Combatendo a desigualdade social. O MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo, UNESP: 2010.
(2) Carter (2010:520).
(3) Carter (2010:519).
(4) Idem.
(5) Carter (2010:37).
(6) Em entrevista à Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012, acedida em https://dialnet.unirioja.es/ descarga/articulo/4047579.pdf).