Mudanças internas na Funai preocupam indígenas e servidores

Centro que deve monitorar as terras indígenas pode virar um centro de informação das riquezas.

Por Felipe Milanez*

Indígenas em frente ao MASP - Rovena Rosa / Agência Brasil

Depois de desmontar a Funai, paralisar as demarcações das terras indígenas e abrir os territórios para o saque dos recursos naturais, os ruralistas no governo Temer começam ocupar os espaços chaves na Fundação Nacional do Índio para saquear informações e desarticular os sistemas de proteção aos territórios indígenas.

Uma porta de entrada para os ruralistas na Funai foi a nomeação, em abril, da socióloga Azelene Inácio Kaingang para a Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da entidade. Nomeada por Osmar Serraglio, ela é acusada de violações de direitos indígenas.

Como a DPT é uma diretoria estratégica, novas nomeações conduzidas podem expor ainda mais as terras indígenas à invasão e ao saque, como a mudança na Coordenação Geral de Monitoramento Territorial (CGMT). “Essas nomeações em áreas estratégicas são de pessoas que estão lá com o objetivo de atender os interesses de quem os indicou. Apenas isso”, disse à coluna o líder indígena Luiz Henrique Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Segundo Eloy, em muitos casos estas novas nomeações na Funai "na maioria das vezes são de pessoas que não têm nenhum tipo de afinidade com os povos indígenas e, muitas vezes, chegam a ter inclusive um histórico, com uma denuncia grave contra os direitos dos povos indígenas, como é o caso da Azelene Kaingang”, diz.

A CGMT da Funai tem como atribuição proteger as terras indígenas e suas comunidades, com ênfase na garantia de usufruto exclusivo previstos no artigo 231 da Constituição, com ações de fiscalização e prevenção. Essas ações são subsidiadas por informações obtidas por meio de diagnósticos locais e de técnicas de sensoriamento remoto por satélite. É a peça chave para enfrentar as invasões e os saques dos recursos naturais.

A CGMT, que está abaixo da DPT, se divide em três outras coordenações internas: Informação Territorial, Prevenção de Ilícitos e Fiscalização. Recentemente, Azelene Kaingang, titular da DPT, exonerou a coordenadora de Prevenção de Ilícitos, Carolina Delgado, e nomeou Luzia Aparecida Ghizone. Questionada pela coluna, a Funai não explicou qual o motivo da mudança.

Ghizone ficou pouco no cargo e enquanto a coordenadora Tatiana Vilaça pediu o retorno de Carolina Delgado, que havia sido exonerada sem a sua anuência, Azelene decidiu nomear Newton Marcos Galache, indígena Terena, para ocupar o cargo de coordenador de Prevenção de Ilícitos. Galache é uma pessoa controversa e distanciada das demandas de seu povo, e há anos circula e trabalha pela Funai. Terenas ouvidos disseram que ele não representa e nem defende seu povo — o mesmo que os kaingang alegam sobre Azelene.

A Coordenação de Prevenção de Ilícitos é responsável por coordenar o Programa de Capacitação em Proteção Territorial. Deve apoiar a construção e implementação de estratégias e ações voltadas para adaptação e mitigação à mudança do clima nas terras indígenas. Trata-se de trabalho sensível, pois as terras indígenas estão sofrendo imensas ondas de calor em decorrência do desmatamento no seu entorno, e também o assoreamento dos rios: é portanto uma ação chave para a sobrevivência das populações indígenas.

Esta coordenação ainda acompanha os Comitês Gestores da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI) e do Projeto DGM/FIP/Brasil, que visa fortalecer a discussão sobre a redução do desmatamento e da degradação florestal (REDD+) nos níveis local, nacional e global.

A coordenadora de Informação Territorial e a própria coordenadora-geral de Monitoramento Territorial também devem ser substituídas em breve — até já deixaram suas salas. Ambas são pessoas qualificadas tecnicamente e suas substituições se dão por razões políticas: a coordenadora de informação territorial é uma servidora altamente especializada em análise de dados, com pós-graduação em sensoriamento remoto. A coluna apurou que circula dentro da Funai a versão de que ela já foi informada de sua substituição, sem nenhuma motivação técnica. O mesmo ocorre com a coordenadora de Monitoramento, que é uma servidora qualificada do ICMBio, cedida para a Funai.

Cada vez mais, a Funai vai substituindo pessoas tecnicamente qualificadas por indicações políticas de ruralistas e outros interessados nas riquezas dos territórios indígenas.

O motivo dessa dança das cadeiras em postos estratégicos no conhecimento e proteção das terras indígenas também está no interesse da nova diretoria por trás do Centro de Monitoramento Remoto (CMR), ligado à Coordenação de Informação Territorial.

Este centro foi desenvolvido no âmbito das compensações decorrentes dos impactos ambientais da hidrelétrica de Belo Monte. Ele é um portal na web criado para monitorar as ocorrências de desmatamento e degradação nas terras indígenas e acompanhar as mudanças de uso e ocupação do solo.

O CMR utiliza imagens de satélite (Landsat-8) para gerar informações diárias das terras indígenas localizadas na Amazônia Legal, que representam 97,9% da área total de terras indígenas do país. São dados importantíssimos para o monitoramento remoto dos territórios, com potencial de fornecer informações às Coordenações Regionais da Funai, que subsidiem ações de fiscalização.

Esta potente base de dados pode se transformar, como comentou um dos novos diretores da Funai numa reunião com uma das coordenadoras, em um centro internacional de monitoramento das riquezas naturais em terras indígenas.

O Centro de Monitoramento será bancado pela Norte Energia, consórcio que administra Belo Monte, por dois anos, período após o qual deveria se autogerir. As informações produzidas, que deveriam ser utilizadas na defesa dos povos indígenas, podem ir parar nas mãos das mineradoras canadenses e de seus aliados em Brasília, tal como aconteceu com o caso da extinção da Reserva Nacional do Cobre (Renca), no Amapá.

Segundo Eloy, o advogado da Apib, “tudo isso está sendo feito sem consulta aos povos indígenas e às lideranças indígenas". "Historicamente, a mudanças da Funai sempre foram precedidas de consultas e diálogos com as comunidades indígenas. Em algumas coordenações regionais, como em Campo Grande (MS), era tradição, desde a década de 1990, os Terena elegerem quem seria o coordenador regional", diz. "Era nomeado aquele com maior aderência das lideranças. Isso se repetia em várias partes do Brasil. Hoje isso está totalmente dissociado, não há nenhum tipo de consulta. Apenas o favorecimento aos interesses de quem indicou”.

Procurada pela coluna, a Funai não se pronunciou sobre as mudanças realizadas em suas diretorias.