Publicado 10/09/2017 13:26
Laís Bodanzky tem uma vocação natural para falar de gerações. Em Bicho de Sete Cabeças (2000), lançou Rodrigo Santoro no papel de um jovem internado num hospital psiquiátrico pelo pai por causa de um cigarro de maconha. Chega de Saudade (2008) apresentou o tema do envelhecimento, oposto de As Melhores Coisas do Mundo (2010), um tênue retrato da adolescência.
Agora a paulistana lança Como Nossos Pais, seu quarto longa-metragem, já com a bagagem de ser o vencedor do 45º Festival de Gramado. O filme, surgido a partir do título da canção de Belchior, conquistou seis Kikitos (melhor filme, direção, atriz para Maria Ribeiro, ator para Paulo Vilhena, atriz coadjuvante para Clarisse Abujamra e montagem para Rodrigo Menecucci).
Na nova produção, a filha do também cineasta Jorge Bodanzky (de Iracema, uma Transa Amazônica, de 1976, censurado pela ditadura militar) aborda o drama vivido pelas mulheres que são mães e filhas ao mesmo tempo, com a sobrecarga de funções cobradas delas diariamente. Na pré-estreia em São Paulo, Laís surpreendeu-se com a observação de alguns homens de que Como Nossos Pais não foi feito para mulheres, mas para eles.
Num momento histórico em que a voz feminina toma corpo com o testemunho original de cineastas como Anna Muylaert, Eliane Caffé, Márcia Paraíso e Tata Amaral, a diretora afirma que a tomada de consciência das mulheres chegou para transformar a sociedade patriarcal brasileira.
CartaCapital: Como Nossos Pais chegou no momento certo da sua carreira?
Laís Bodanzky: Não foi planejado, mas veio num momento de descoberta de que somos muitas. No racional, óbvio, somos metade do planeta, mas no emocional a sensação é de profunda solidão. Sinto que de um ano e meio para cá essa sensação de solidão começou a desaparecer. Ser mulher hoje é muito mais interessante e gostoso do que há 15 anos.
Estamos caminhando a passos largos, de conquistas efetivas. Apesar de a gente também estar andando para trás, com esse nosso governo Temer, nos direitos das mulheres e das trabalhadoras, na ausência das mulheres no poder público. Mas a tomada de consciência não andou para trás. Ao contrário.
É uma revolução no sentido de mudanças de hábitos, a coisa mais difícil numa sociedade. Sem perceber, a própria mulher tem atitude machista, educa os filhos de forma diferente da que educa as filhas. Ela própria reproduz um imaginário de que mulher é para cuidar da casa e da família.
CC: E isso permeia todo o seu filme.
LB: Me deparei com um tema inédito, uma novidade para mim, que é a relação entre as mulheres e a relação entre mãe e filha. A mulher tem na vida dela uma marca diferente do homem, que é a fase fértil. A menina entra na adolescência, normalmente quando a mãe dela se despede da vida fértil.
Quando a mãe enxerga nessa menina uma mulher forte que nasce e está dizendo sem dizer “se despeça, porque agora é a minha vez”, é muito forte. Isso se manifesta de várias formas e intensidades, como a agressividade entre as mulheres, a negação entre mãe e filha, ou o oposto, que é a projeção de um desejo através da filha.
Tem a Branca de Neve e a madrasta, que diz: “Espelho, espelho meu, tem alguém mais bonita do que eu?” Tem, sim, e é uma menininha (risos). E ela fala: “Eu vou matar essa menina”.
CC: Quanto a personagem principal tem de autoral e o quanto se identifica com a mãe dela?
LB: Nossa, me identifico com os dois lados. Essa mulher contemporânea espremida entre duas gerações é uma fase muito única da vida. Ela é filha, mas já formou família, tem seus filhos, então também é mãe.
Só que às vezes ela vira a mãe da mãe dela ou a filha das filhas. É uma confusão de papéis, e a vida é assim. A mulher quer ser todas essas, mas de uma forma perfeita, o que é impossível (risos). O que é gostoso de ser mulher hoje em dia é que ela sabe que é impossível, e a gente não tem mais vergonha de dizer isso.
CC: O que teria acontecido se tivesse lançado Como Nossos Pais como seu primeiro filme?
LB: Antes de fazer meu primeiro longa, fiz um curta-metragem, Cartão Vermelho, de uma menina descobrindo sua sexualidade. Tem um miniparalelo, o tema mulher. Mas eu não tinha consciência de que estava fazendo um filme de mulher.
Eu, como cineasta, como mulher do audiovisual, tenho uma percepção de quem sou na indústria do cinema que não tinha antes. Hoje, falando do Brasil, temos a maior Parada Gay do mundo e antes, não.
CC: Não tinha a Marcha das Mulheres…
LB: Exatamente. Também estou no contexto da sociedade. Claro que, enquanto artista, eu traduza isso por meio da arte. Mas não era capaz de fazer isso antes. E seria revolucionário, bombástico, porque tocaria em temas como estrutura da família, a família monogâmica, patriarcal. No ano 2000? Isso seria ousadíssimo, nem me passava essa possibilidade. Nem sei se não seria rejeitado.
CC: É a hora de questionar a herança patriarcal na sociedade brasileira?
LB: É o momento. As gerações novas que estão vindo, antes até de formar família ou de as meninas sentirem na pele o que é essa opressão invisível da mulher, já dizem que não querem isso (risos). Na escola das minhas filhas, meninas de 11 até 14 e 15 anos se encontram toda semana para discutir. É um grupo feminista.
Achei que eram só da escola delas, mas não. As meninas estão se unindo. Aquele slogan que é uma forma de se comportar, o “mexeu com uma, mexeu com todas”, explicita uma mulher que em 2000 não existia. Hoje elas são solidárias umas com as outras.
CC: Como vê a atual geração de cineastas mulheres, que tem uma marca autoral muito forte?
LB: Como a mulher está querendo e precisando falar, e está falando, o cinema é o espaço da fala. E os homens também estão interessados. Os homens não são excludentes deste novo movimento feminista. Sinto que há uma boa parte de homens com vontade de conversar, entender e mudar.
Na pré-estreia, alguns homens vieram falar “Laís, para de falar que esse filme é para as mulheres, porque é para os homens” (risos). Os homens se identificam, descobrem que fazem essas coisas e nem se dão conta. É tão no automático. Os homens estão enxergando não como uma agressão.
CC: Seus filmes abordam questões complexas de forma simples. Essa é a sua fórmula?
LB: Faço um filme autoral no sentido de que tem um discurso ali por trás. Mas ao mesmo tempo tenho muita vontade de falar com muita gente. Sinto que meu cinema não é o filme experimental, nem aquele que está na casinha do blockbuster. Está no meio.
Desde lá atrás, quando eu e o Luiz (Bolognesi, ex-marido e sócio da Buriti Filmes) viajamos pelo Brasil levando cinema itinerante e fazendo debates, pessoas que não estudaram entendiam tudo. Eram debates até mais ricos do que com estudantes da USP.
CC: O setor audiovisual cresceu muito nos últimos anos. Acredita que o setor vai continuar tão pulsante como vinha até agora?
LB: A gente já viveu um trauma, no governo Collor, quando o cinema chegou a zero. Toda a classe se uniu. Assim nasceu a Agência Nacional de Cinema (Ancine), para ter uma política que sobrevivesse à troca de governos.
A gente nunca imaginou que ela fosse tão importante quanto está sendo agora. É um amortecedor. No cinema, temos divergências políticas, mas na política cinematográfica não temos divisões. O Brasil podia ser assim. Vamos pensar o País juntos? O cinema pensa junto. E o cinema é mais que economia, nosso audiovisual está viajando o mundo inteiro. Estamos exportando quem somos.
CC: Você já disse que dá espaço para o “silêncio cheio de informação”. Este é o momento de, no Brasil, fazer algum silêncio para entender o que está acontecendo?
LB: Não, o momento é de botar o bloco na rua. O silêncio é o que estávamos vivendo antes. Em determinados momentos da vida, precisamos virar a página. Para fazer esse ponto de virada, precisamos de atitude.
Brinco que o telefone em casa não vai tocar, eu é que tenho de telefonar. A palavra “revolução” é desgastada, mas acredito nela no sentido de que as grandes revoluções começam pelas pequenas. A tomada de consciência, no Brasil, de que tem alguma coisa errada serve para a gente sair e ir fazer.