Transporte reforça discriminação entre periferia e centro
Em audiência pública, Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes de São Paulo, afirmou que a mobilidade urbana é usada para manter as características "perversas" da sociedade. "É pelo transporte que uma família nunca foi ao parque Ibirapuera".
Publicado 20/09/2017 09:57
Apesar de garantido na Constituição Federal como um direito social, o transporte coletivo nas grandes cidades brasileiras, mais do que simplesmente ser ruim e deficitário, serve para reproduzir e manter as desigualdades sociais. Essa foi a análise unânime dos participantes da audiência pública na Comissão de Legislação Participativa, realizada nessa terça-feira (19), na Câmara dos Deputados.
“O transporte representa um papel fundamental de manutenção da sociedade, com todas as suas características perversas”, avaliou o engenheiro Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Para ele, ao mesmo tempo em que o transporte coletivo é fundamental para a economia, principalmente num país como o Brasil, onde 80% da população vive em áreas urbanas, também é por meio do transporte que se mantém a discriminação entre a periferias e o centro da cidade. “É pelo transporte que se faz com que exista, em São Paulo, uma família que nunca foi ou nunca irá ao Parque Ibirapuera no final de semana.”
Com certa ironia ao se referir à crise fiscal do governo federal, que tem impedido qualquer tipo de investimento público, Lúcio Gregori propôs a utilização mais inteligente de todos os impostos sobre o preço dos combustíveis para financiar o transporte coletivo, algo que vá além da proposta recorrente relacionada à Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). “A Cide não é uma medida robusta para o financiamento do transporte”, disse.
Assim como o ex-secretário de Transportes de São Paulo, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato definiu como o “exílio da periferia” a situação do transporte coletivo nas grandes cidades brasileiras. Como exemplo, citou os ônibus que param de circular à meia noite, impedindo que jovens da periferia possam usufruir de cinema, teatro e outras formas de cultura, em geral, localizadas na zona central da cidade.
“Temos assegurados direitos que não são cumpridos. O arcabouço legal brasileiro é extravagante de tão avançado, mas a realidade é um atraso”, afirmou ela, enfatizando que todo município do país com mais de 20 mil habitantes tem plano diretor. “Não há falta de lei.”
Ex-secretária executiva do Ministério das Cidades e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Ermínia Maricato define como uma “tragédia” a situação da mobilidade urbana no Brasil, destacando as muitas horas que as pessoas passam no trânsito, principalmente a população mais pobre. “A senzala urbana existe e está fora da cidade dos brancos endinheirados, que vivem onde está o mercado de trabalho e imobiliário.” Segundo ela, cerca de 30% das famílias da região metropolitana de São Paulo são chefiadas por mulheres que precisam diariamente ficar longe dos filhos para ir trabalhar, perdendo horas do dia apenas no trânsito.
O impacto do transporte coletivo na vida das mulheres foi a análise feita por Letícia Bortolon, coordenadora de políticas públicas do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP-Brasil). De acordo com ela, apenas 13% das mulheres se locomovem de carro, bem abaixo dos 27% de homens. E entre as “viagens” realizadas de carro por mulheres, somente 3% são feitas por mulheres pobres, contra 45% de viagens feitas por ricas.
Citando a pesquisa Origem Destino (OD) 2017, da Companhia de Metrô de São Paulo, Letícia Bortolon enfatizou que 74% da locomoção das mulheres são feitas em transporte público ou a pé. “A experiência das mulheres nos ônibus é horrível”, ponderou, lembrando os recentes casos de assédio sexual em São Paulo que obtiveram visibilidade na imprensa. “Se tiverem dinheiro, muitas mulheres preferem uma opção de transporte mais cara, ainda que mais ineficiente, se perceberem que é mais seguro.”
A coordenadora do ITDP-Brasil destacou que o ponto de ônibus é indicado em pesquisas como o pior local para uma mulher estar nas grandes cidades. Estudo feito em Pernambuco revelou que esperar o ônibus sozinha é apontado como fator de medo por 92% das mulheres em Olinda, 86% das moradoras de Cabo de Santo Agostinho e 84% no Recife. “A violência urbana limita ou impede a movimentação das mulheres”, afirmou Letícia Bortolon.
Para ela, é preciso haver ainda mais pesquisas relacionadas ao tema do impacto da mobilidade urbana na vida das mulheres, de modo a subsidiar a elaboração de políticas públicas eficientes. “Precisamos de uma cidade que permita às mulheres acessar seus espaços sem tanto temor”, concluiu.