Hamilton Pereira: Delação virou moeda manipulada pela mídia

Em uma publicação nas redes socais, o histórico militante da luta contra a ditadura, Hamilton Pereira, conhecido pelo pseudônimo de Pedro Tierra, fez uma análise sobre as delações premiadas, que classificou como moeda de troca manipulada pela mídia.

Hamilton Pereira da Silva / Pedro Tierra

"Pertenço a uma geração que viu não poucos companheiros de luta voltarem das sessões de interrogatórios deformados pela brutalidade dos espancamentos para não entregar um ponto de encontro, uma informação, um documento. Para não delatar. Para não trair. Alguns simplesmente, não voltaram. Pagaram com a morte seu silêncio. A delação era a ignomínia. A condenação ao ostracismo, à exclusão de qualquer ambiente de convívio social. A morte civil", destacou Hamilton, que presidiu a Fundação Perseu Abramo.

Sem citar nomes, Hamilton falou sobre como os traidores são lembrados pela história. "Ainda que momentaneamente saudada por quem dela se beneficiou, a traição não perde seu caráter repulsivo, mesmo para eles. É indelével e permanecerá para sempre na face do traidor. Nas suas relações futuras, todos se lembrarão dele. E dela. E apontarão o estigma, quando for conveniente", destacou.

De uma prática considerada repulsiva, disse ele, a delação converteu-se, no Brasil do golpe, "em moeda corrente, manipulada pelo Estado e pela mídia, diante do silêncio e, não se enganem, do desprezo da sociedade".

"O Instituto da Delação Premiada é um singelo exercício institucional em que o traidor vende ao Judiciário o relato que melhor lhe convém sobre o crime que cometeu. E recebe, em troca, benefícios compatíveis com a avaliação que faz o Juiz do peso social e político da personalidade traída, com vista aos objetivos que ele, Juiz, deseja alcançar", argumenta Hamilton.

Para ele, não surpreende que a "desmoralização e degeneração de um mecanismo dessa natureza" tenha sido tão rápida diante da utilização da delação como "um comércio entre o tratador e os répteis que se dispõem a mentir, a rastejar pela migalha de um favor, de um benefício pessoal, de uma redução de pena ao oferecer aos acusadores a cabeça de eventuais cúmplices, agora desafetos, não se escusando à esperteza de furtar a delação mais suculenta de algum ex-sócio".

Hamilton reforça que não se pode comparar um delator com quem foi torturado física e moralmente pela ditadura militar e, "eventualmente, fraquejou".

Confira a integra do texto.

Sobre a delação e a recusa
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Pertenço a uma geração que viu não poucos companheiros de luta voltarem das sessões de interrogatórios deformados pela brutalidade dos espancamentos para não entregar um ponto de encontro, uma informação, um documento. Para não delatar. Para não trair. Alguns simplesmente, não voltaram. Pagaram com a morte seu silêncio. A delação era a ignomínia. A condenação ao ostracismo, à exclusão de qualquer ambiente de convívio social. A morte civil.

Muito já se escreveu sobre a traição e os traidores. A literatura é abundante sobre esse gesto humano ignóbil, particularmente nas disputas pelo poder. Da bíblia aos gregos, de Dante a Shakespeare. Ainda que momentaneamente saudada por quem dela se beneficiou, a traição não perde seu caráter repulsivo, mesmo para eles. É indelével e permanecerá para sempre na face do traidor. Nas suas relações futuras, todos se lembrarão dele. E dela. E apontarão o estigma, quando for conveniente.

A História, tampouco, poupa os traidores. O nascimento das nações resultou, em geral, de partos sangrentos. Em que a forca e os fuzilamentos não foram economizados, de parte a parte. De quem oprimia e de quem contra a opressão se levantava. Países que conseguiram constituir-se como nações, com território, língua, cultura, com um destino comum construído pela vontade majoritária dos seus nacionais reservam aos traidores as penas mais severas.

De uma prática considerada repulsiva, a delação converteu-se, no Brasil do golpe, em moeda corrente, manipulada pelo Estado e pela mídia, diante do silêncio e, não se enganem, do desprezo da sociedade. Temos assistido com o estômago embrulhado a um espetáculo que a cada dia nos surpreende pela desfaçatez e o cinismo.

O Instituto da Delação Premiada é um singelo exercício institucional em que o traidor vende ao Judiciário o relato que melhor lhe convém sobre o crime que cometeu. E recebe, em troca, benefícios compatíveis com a avaliação que faz o Juiz do peso social e político da personalidade traída, com vista aos objetivos que ele, Juiz, deseja alcançar.

Não chega a ser surpreendente o rápido processo de desmoralização e degeneração de um mecanismo dessa natureza que se utiliza de um comércio entre o tratador e os répteis que se dispõem a mentir, a rastejar pela migalha de um favor, de um benefício pessoal, de uma redução de pena ao oferecer aos acusadores a cabeça de eventuais cúmplices, agora desafetos, não se escusando à esperteza de furtar a delação mais suculenta de algum ex-sócio.

Não cabe a comparação, por indevida, entre quem foi despedaçado física e moralmente pela Ditadura Militar e, eventualmente, fraquejou e esses escroques docemente constrangidos a delatar, a mentir, em troca da promessa de usufruir das relações e da fortuna que amealharam de forma criminosa.

Há fatos que lançam sobre o passado sua luz, elucidam circunstâncias e conferem a eles um novo significado. Nos últimos dias estivemos diante de fatos dessa natureza. Duas declarações emitidas por dois importantes personagens da República: a primeira, prestada diante do juiz da 13ª Vara de Curitiba. Perguntado pela defesa do Presidente Lula: “O Doutor Sérgio Mouro fez uma pergunta sobre se o senhor tratava de contribuições paralelas, não contabilizadas, caixa 2. O senhor fez uma afirmação aqui muito clara, eu nunca tratei. Então eu pergunto, o senhor hoje muda a versão por conta da sua delação premiada”? Resposta – “ Eu não tenho um acordo de delação premiada. – “O senhor tem uma negociação em curso”. –“Existem tratativas. Isso é um assunto que está a cargo dos meus advogados, eu confio no trabalho deles, são advogados de alta qualificação, com experiência no setor, e confio que eles estejam fazendo o melhor, dentro da lei, olhando maneiras de contribuir com a justiça, que é a minha vontade, e maneiras de obter benefícios, que também é a minha vontade”. Transferir aos advogados a responsabilidade pela decisão não anula o fato concreto de delatar. De negar a declaração anterior “Eu nunca tratei” para atender aos objetivos do interrogador. A que versão se deve dar crédito? Esse é o problema do delator. Será perseguido pela declaração anterior. Porque o compromisso não é com os fatos – já que não foi, afinal, oferecida nenhuma prova além de sua própria palavra –, o compromisso é com o “tratador”.

O corolário desta declaração que circulou há poucos dias na forma de carta-renúncia à condição de filiado ao Partido dos Trabalhadores, representa um esforço malsucedido de emprestar dignidade à desonra. O essencial, o que ficará, é o comércio que se operou entre o tratador e os répteis que a ele sucumbiram. Esse comércio enfeixa todo o significado simbólico do gesto do delator. Em alguns meses os beneficiados deitarão ao fogo a memória desses fatos e seus personagens e a converterão em cinzas. Eles perderão a serventia.
Para conforto de seus novos amigos ele, por sua parte, assegura que vai se empenhar a partir de agora, convertido à virtude, pensando mais em sua família do que no partido, em defender a verdade. Não escapará da armadilha que preparou para si mesmo: estará defendendo sua verdade particular ao lado da plutocracia que um dia combateu.

A segunda circulou pela imprensa convencional e pelas redes sociais: “Só luta por uma causa, quem tem valor. Os que brigam por interesse têm preço. Não que não me custe dor, sofrimento, medo e, às vezes pânico. Mas prefiro morrer que rastejar e perder a dignidade”. Dias depois dessa declaração o dirigente político que a proferiu foi condenado a 30 anos de prisão. E afirmou estar feliz pela absolvição de um companheiro de processo.

A síntese exprime uma aguda consciência da natureza de classe do conflito em que se debate o país e a escolha de um homem maduro, provado nas múltiplas circunstâncias históricas que enfrentou. Soube conduzir e vencer batalhas. Sabe entender as derrotas que sofreu. Mas sabe também que o sonho que construímos ao longo da vida só nos abandona quando dormimos.

Definitivamente, o processo que envenena o Brasil e que resultou no golpe de 2016, cujo propósito principal é nos devolver à humilhante condição de neocolônia fornecedora de produtos primários, despe as disputas políticas das vestimentas hipócritas do discurso moral que dominou a cena pública do país nos últimos anos. São o que são: escolhas políticas.

Neste momento da história assistimos, com as variações determinadas pelas condicionantes econômicas, sociais e culturais de cada país, o capitalismo se despedir de sua mais vistosa invenção política: a Democracia Liberal. Ela deixou de ser funcional para a acumulação. As instâncias convencionais da ação política foram esvaziadas, os sindicatos, os partidos, os parlamentos. E substituídas pelos comitês executivos das grandes corporações. No caso brasileiro a hipertrofia dos órgãos de controle e a condição de poder tutelar sobre os demais poderes assumida pelo judiciário gerou as condições para um golpe de estado capaz de, em alguns meses, fazer da Carta de 88 uma Constituição bastarda. Liquidado o capítulo dos Direitos Sociais que justificava seu título de “Constituição Cidadã”.

As petroleiras, os bancos, o agronegócio, o monopólio da mídia, contam entre os 3% da sociedade que apoiam o governo ilegítimo de Michel Temer. E têm força suficiente para mantê-lo no poder até que cumpra o desmonte cabal do projeto democrático-popular representado por Lula e pelo Partido dos Trabalhadores. Os autores das declarações de que tratei aqui serão julgados, num futuro que espero seja breve, pela integridade com que se conduziram diante das escolhas políticas que fizeram.