Temer transforma trabalho degradante em “falta de saboneteira”

Em entrevista ao portal Poder360, Michel Temer tentou justificar a edição da portaria do Ministério do Trabalho, que estabelece novas diretrizes para a fiscalização do trabalho, insinuando que em muitos casos os fiscais exageram e abusam da autoridade ao considerar que “se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”.

Por Dayane Santos

MRV banheiro trabalho escravo - Reprodução

“O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”, disse.

Para comprovar tal situação, Temer apresentou inspeção feita pela Gerência do Ministério do Trabalho em Campinas, São Paulo, em 6 de abril de 2011, assinada pelo auditor fiscal João Batista Amâncio.

No documento entregue ao Poder360 durante a entrevista, consta que os inspetores verificaram que não foram instalados chuveiros de suporte para sabonete e cabide para toalha, em desconformidade com a Norma Regulamentadora 18, que trata de condições e meio ambiente de trabalho na indústria da construção.

No documento publicado pelo portal com uma tarja preta no campo “nome ou razão social”, verifica-se que se trata de uma empresa com 4.748 empregados, ou seja, uma empresa de grande porte.

Os documentos, tratados como “prova” do abuso dos inspetores, trazem outros três laudos, todos da mesma empresa de Campinas – a julgar pelo número de funcionários, CEP e data – com infrações como pilhas de materiais, extintor de incêndio mal sinalizado e beliche sem escada nem proteção lateral, todas violações à lei, normas e portarias do Ministério do Trabalho, mas que Temer considera um exagero se equiparadas ao trabalho escravo.

O Portal Vermelho localizou o auditor fiscal João Batista Amâncio, que assina as inspeções citadas por Temer, e os fatos revelados demonstram que ele manipulou, descontextualizando as informações para defender a sua portaria.

Amâncio informa que a empresa inspecionada é na verdade a MRV Engenharia e Participações, maior empresa no setor de imóveis econômicos do Brasil, que atualmente tem 98% dos seus negócios envolvendo o Minha Casa Minha Vida, programa que é operado por Caixa e Banco do Brasil.

A verdade

Os documentos pinçados por Temer são parte de uma ação civil pública que levou à condenação da construtora, pela 1ª Vara do Trabalho de Americana (SP), ao pagamento de R$ 4 milhões de indenização por danos morais pela prática de trabalho escravo na obra de um condomínio residencial.

Na ação civil, movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), a empresa também foi condenada a pagar multa de R$ 2,6 milhões pelo descumprimento de liminar concedida no processo, e mais R$ 100 mil por litigância de má-fé, que é a intenção de prejudicar o andamento do processo.

Por e-mail, Amâncio encaminhou um Relatório de Fiscalização feito à época, que resultou na ação. O relatório informa que após fiscalização, iniciada em 10 de março de 2011, desencadeada por denúncia de trabalhadores, constatou-se que a MRV foi responsável por manter trabalhadores em condições degradantes.

Na vistoria, os fiscais e procuradores do Trabalho se depararam com alojamentos, banheiros e cozinhas em condições desumanas e humilhantes, além da falta de registro e retenção de Carteira de Trabalho, entre outras irregularidades.

Apesar de apresentar apenas e tão somente a inspeção em uma única empresa, Temer disse que “esses são alguns casos” que justificariam a manutenção da portaria. De fato, ao analisar o relatório, a saboneteira citada por Temer é realmente insignificante diante das condições a qual eram submetidos os trabalhadores da MRV.

Foram flagrados 63 trabalhadores em condições análogas à de escravo na construção do condomínio residencial Beach Park. Os migrantes dos estados de Alagoas, Bahia e Maranhão eram contratados diretamente por terceirizadas que prestavam serviços em áreas consideradas atividades-fim da empresa. Os operários eram alojados em duas moradias extremamente precárias. Ao estilo geminado, as casas encontravam-se superlotadas e sem ventilação.

“As instalações, em especial os vasos sanitários, estavam sujas e ainda com restos de dejetos que, além do mau cheiro exalado, poderiam entrar em contato com o corpo do trabalhador, o que é agravado pela postura necessária para uso do vaso tipo bacia turca, com riscos evidentes à sua saúde e higiene. Nos 6 vasos sanitários da área de vivência que funcionavam, não havia recipiente de lixo com tampa para depósito de papéis usados, e nem o obrigatório fornecimento de papel higiênico”, aponta um trecho do relatório.

Os trabalhadores eram obrigados a dormir no chão, inclusive na cozinha. Além das más condições nos alojamentos e na relação de trabalho, a fiscalização e o MPT flagrou o descumprimento de quase todas as normas de segurança e saúde do trabalho, com a aplicação de 44 multas pelos auditores.

Na entrevista, Temer disse que a maioria das críticas à portaria é “no sentido de dizer que a configuração do trabalho escravo ficou agora restrita a casos em que não há o direito de ir e vir” e que “fora isso, nada mais poderia ser considerado trabalho escravo, como por exemplo jornada exaustiva ou coisas dessa ordem”.

“Não me pareceu. Não é isso que está na portaria. A portaria que ele me mandou, pelo menos, tem várias hipóteses, agora não me recordo de todas, mas reveladoras de que o trabalho degradante, o trabalho que impõe condições desumanas de vida é trabalho escravo. Não é só o direito de ir e vir, não. Direito de ir e vir está assegurado amplamente. Acho que nem tem sentido usar esse argumento. Não estou nem defendendo a portaria e nem condenando a portaria. Estou dizendo que ela está sofrendo objeções que estão sendo analisadas”, argumentou. Após a enxurrada de críticas, Temer diz que a portaria poderá ser modificada.