Ambiente de trabalho no Brasil continua a discriminar mulheres negras
O abismo racial no ambiente corporativo brasileiro continua profundo, apesar dos recentes esforços de algumas empresas de deixarem de ser apenas brancas. Segundo dados de pesquisa do Instituto Ethos, realizada em 2016, pessoas negras só ocupam 6,3% dos cargos de gerente e 4,7% do quadro de executivos nas empresas analisadas pelo estudo.
Por Tory Oliveira para Carta Capital
Publicado 12/11/2017 13:18
A situação é ainda mais desigual para as mulheres negras: 1,6% são gerentes e só 0,4% participam do quadro de executivos. São só duas, entre 548 diretores.
Após observar muitos casos de discriminação nos processos seletivos em empresas, a psicóloga social Cida Bento, então executiva na área de Recursos Humanos, resolveu enfrentar diretamente o tema da discriminação racial e das dificuldades de inclusão de homens e mulheres negras nas empresas.
Atual coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Cida Bento, que também é colunista do site de CartaCapital, dedica-se há 30 anos ao campo da promoção da diversidade no ambiente corporativo.
Assim como a sociedade brasileira como um todo, o ambiente empresarial tem imensas dificuldades em avançar no combate ao racismo, explica ela, que aponta, por exemplo, o fato de programas de equidade de gênero serem bem sucedidas em promover a inclusão de mulheres brancas, mas não das mulheres negras. "Esse é o grande desafio. As mulheres brancas estão quatro, cinco vezes a mais do que as negras nesse processo de inserção dentro das empresas".
Leia a íntegra:
CartaCapital: Por que a senhora resolveu se dedicar à questão da desigualdade racial no mercado de trabalho?
Cida Bento: Eu era executiva da área de Recursos Humanos e resolvi sair para trabalhar com esse tema porque eu via muita discriminação nos processos seletivos. Meu mestrado e doutorado foram focados em processos de recursos humanos. A tese de doutorado, defendida na USP, chamou-se Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresarias e no poder público.
CC: Segundo pesquisa do Instituto Ethos de 2016, pessoas negras só ocupam 6,3% dos cargos de gerente e 4,7% dos executivos. O quadro é ainda pior quando se olha para as mulheres negras e só se inverte quando se observam as vagas de início de carreira ou baixa exigência profissional, como aprendizes ou trainees. Muito tem sido falado sobre ações afirmativas ou de inclusão nas empresas, mas ainda não se atingiu o patamar adequado, tendo em vista que negros e pardos são mais da metade da população brasileira. O mundo empresarial ainda resiste em enxergar e enfrentar o racismo? O que já mudou nesse sentido?
CB: Como toda a sociedade brasileira, o mundo empresarial também tem dificuldade de avançar nesse tema. Em geral, há uma tendência a tentar identificar qual é o problema para localizar negros ou se comunicar com eles, mais do que perceber que há também uma perspectiva branca que dificulta a inclusão e a permanência de negros nas empresas. De perceber que se tratam de relações raciais, e não de um problema do negro no Brasil. O branco também está implicado nisso.
CC: Como assim?
CB: Em qualquer processo de recursos humanos, de seleção em geral, recrutamento, promoção, mentoria, é preciso buscar entender não só o que pode ser algum desafio envolvendo os negros, mas também um desafio envolvendo os brancos para lidar com essa questão da maior presença negra qualificada dentro das instituições.
Não é só eu ter dificuldade nos processos de recrutamento para encontrar negros, mas é perceber que os processos precisam ser olhados para serem mais inclusivos e que as formas de comunicação e os ambientes do interior da instituição têm de se abrir para ser mais diversos. É pensar negros em cargos de liderança, de vanguarda, entender que eles têm de ter oportunidades de ser treinados e de encarreiramento mesmo. Enfim, isso tudo exige reconhecer que as empresas, assim como as grandes instituições brasileiras, não percebem o negro nesse lugar.
CC: É possível apontar a raiz desse problema?
CB: O racismo e o esforço na manutenção de privilégios. Eu sou uma das grandes estudiosas de branquitude no Brasil. Eu trato com o conceito de pactos narcísicos, a ideia do narcisismo, do fortalecer e escolher os iguais. Os recursos, as informações, os networkings são entre os iguais, que são os brancos.
CC: Você escreveu que profissionais que atuam no campo das políticas de diversidade em empresas destacam que a dimensão racial da diversidade é aquela que traz mais desafios para ser abordada e implementada. Quais os motivos dessa dificuldade maior?
CB: Em geral, as empresas têm mais um pacto de brancos entre brancos. Os programas de pró-equidade de gênero e raça conseguiram acelerar a inclusão das mulheres brancas, mas não das mulheres negras. Então, você tem mais um pacto entre brancos. As empresas têm dificuldade muitas vezes na relação com os próprios especialistas negros e com as organizações negras em geral. Às vezes, é mais fácil para uma empresa se relacionar com uma organização branca que começa a trabalhar com o tema racial do que com organizações negras que existem no Brasil inteiro e trabalham com isso há muito tempo.
Eu tenho recebido seis, sete, oito pedidos por semana de consultorias brancas que nunca mexeram com esse tema e agora querem entender para começar a trabalhar. E, às vezes, elas têm muito mais sucesso do que outras organizações, negras, que estão espalhadas pelo Brasil.
CC: Os desafios parecem ser ainda maiores para as mulheres negras, que preenchem apenas 1,6% das posições na gerência e 0,4% no quadro executivo. Por outro lado, mulheres brancas avançaram nesse sentido. As oportunidades são diferentes para mulheres brancas e negras? De que forma?
CB: Eu tenho feito um censo de diversidade em bancos e o grande desafio que se encontra é ampliar a presença das mulheres negras no setor, assim como em outras empresas. Esse é o grande desafio, as mulheres brancas estão quatro, cinco vezes a mais do que as negras nesse processo de inserção dentro das empresas. Isso é o que eu tenho observado nos censos de diversidade e nos processos de formação que tenho desenvolvido no interior das empresas. Eu trabalho com grandes empresas e a presença das mulheres negras é quase nenhuma.
CC: Como explicar esse quadro?
CB: Acho que as mulheres em geral sofrem uma exigência de aparência para ocupar posições dentro das empresas. E as mulheres negras têm uma exigência maior, com relação aos cabelos lisos e a um perfil meio de "Barbie", magra, comprida e com o cabelo bem liso e claro, se possível.
CC: Você escreveu que uma mulher jovem, negra e qualificada ouviu de uma consultora de RH que sua roupa e cabelo não eram os mais adequados ao ambiente corporativo. Esse tipo de relato ainda é comum?
CB: Acho que não se ouve mais esse tipo de relato. As pessoas vão aprimorando os seus processos de exclusão. Elas não vão falar que é por isso. Nesse caso, o currículo dela estava sendo analisado por uma consultora de RH que era sua amiga. Isso em geral não é verbalizado. Agora, você também tem que ver que isso também tem mudado. Muitas empresas hoje falam que querem ampliar a equidade racial. Cresce o número de empresas que querem fugir dessa reputação de serem empresas brancas apenas. Isso é um indicativo de que a gente pode ter mudanças. As mudanças estão chegando, mas é necessário que a empresa tenha uma vontade política de mudar essa situação e invista mesmo nesses processos.
CC: Na sua opinião, como as empresas e o mercado de trabalho podem atuar para reduzir essa desigualdade?
CB: O censo é fundamental. Ele ajuda a identificar as diferenças de cargos, de salários, de inserção, promoções. E ajuda a identificar onde é que estão os problemas e ajuda a desenhar um plano de ação que envolve levar essa discussão para os interior das empresas e para as altas lideranças, para as áreas jurídicas e outras. É preciso uma decisão política da empresa. E isso é algo bem delicado e importante.
CC: Há bons exemplos?
CB: Algumas empresas que são líderes em seus ramos têm avançado bastante, procurando trazer mulheres negras para cargos de direção, procurando entender porque mulheres negras que estão lá há bastante tempo, e com escolaridade e experiência, não têm sido promovidas, procurando desenhar produtos para mulheres negras, procurando fazer um marketing que considere as famílias negras, contratar prestadores de serviço dentre as organizações de mulheres negras. Há algumas empresas fazendo esforços nessas direções.