Conde: não há saída narrativa ou testemunhal que não seja superlativa

Não falar de Lula neste janeiro, é fugir do assunto. A massa de textos que se produz acerca deste homem é tal que é preciso fazer a ressalva, antes de aumentá-la ainda mais. Só Moro escreveu 238 páginas – falaciosas, é verdade – e citou o nome de Lula 557 vezes. Um fã.

Por Gustavo Conde*

Lula - Foto: Guilherme Imbassahy/ Jornalistas Livres

Todo o processo do triplex tem 250 mil páginas (que o revisor do TRF-4 leu em 6 dias). A imprensa fala de Lula sem parar há 40 anos. Só de livros sobre Lula – direta ou indiretamente – deve haver uma "Biblioteca de Babel", a infinita biblioteca imaginária do escritor argentino Jorge Luis Borges, com suas "galerias hexagonais e vastos poços de ventilação".

Mas o volume e a densidade narrativa deste sujeito singular não para por aí. Lula deve ser o primeiro caso no mundo de um líder que, com sua força política e dimensão simbólica, trava o curso natural da história de um país continental: a história se recusa a prosseguir sem a plenitude assegurada dos direitos políticos de Lula.

Tal dimensão tem muitas faces e muitas fases. E esta fase atual não vem apenas de um processo judicial viciado: vem do exato instante da segunda vitória de Dilma Rousseff. Naquele momento, o pânico tomou conta dos segmentos conservadores, pois a vitória de Lula em 2018 já despontava como uma das coisas mais previsíveis do cenário político.

Quis o destino que a conjuntura política no Brasil se materializasse desta maneira: os conservadores sem discurso promoveram o pânico, judicializaram a democracia e, acabaram, com isso, aumentando a dimensão do símbolo máximo dessa mesma democracia, emocionalizando ainda mais a conexão de Lula com o povo.

Diante desta realidade, não há saída narrativa ou testemunhal que não seja superlativa. Tudo em Lula transcende. É um desafio observar e narrar sua presença não só na vida política de um país, mas também na vida psíquica dos brasileiros.

Portanto, cumpro a necessidade de fazer uma nota prévia para os espíritos mais sensíveis e acostumados com as narrativas burocráticas e destituídas de emoção que costumam caracterizar a historiografia política brasileira.

Narrar Lula, explicar Lula, codificar Lula. Como fazer? É, certamente, um desafio literário. Não é como redigir um biografia de um vulto histórico qualquer: é muito mais do que isso. A explicação é singela: Lula é um genuíno homem do povo. Ele não se curvou ao universo sedutor da elite política.

Impõe-se a quem ousa escrever sobre Lula que os lugares sociais pré estabelecidos são, por ele, estilhaçados. Ele se impõe como homem do povo com uma capacidade intelectual muito maior que a de todos os seus supostos pares da elite política.

É esse fenômeno que se alastrou pelo Brasil e que provocou a revolução social que assistimos no passado recente: alunos cotistas sendo melhores que alunos não cotistas. Desportistas pobres ganhando medalha de ouro nas Olimpíadas. Adolescentes de escolas públicas inovando, produzindo pesquisa e manifestando imensa consciência política (lembrar das ocupações das escolas públicas em São Paulo).

A comunicação de Lula com a totalidade da sociedade não é algo que esteja inscrito nos manuais de marketing político. Os manuais não dão conta disso. Os manuais jamais conseguiriam explicar o significado que Lula dá aos catadores de papel, por exemplo.

Lula vai ao âmago da desigualdade social para explicitar seu compromisso com a condição humana. Só há equivalente disso nas missões de paz da ONU – o mundo político tradicional tem até vergonha de olhar nos olhos dessas trabalhadores pobres que transbordam dignidade.

Basta olhar as fotos que Ricardo Stuckert vem fazendo de Lula ao longo de quase 20 anos. Não há possibilidade de sequer relativizar a conexão extraordinária entre o povo brasileiro e Lula. São imagens épicas, sensíveis, delicadas, eternas, absolutamente espontâneas, reais, viscerais.

Um biógrafo, portanto, é pouco para Lula. A dimensão do humano ali extravasa qualquer projeto literário. Resta a nós, meros privilegiados de pertencer ao seu tempo, a tarefa de transformar em palavras essa transcendência política.

Como lidar com tantos feitos, imagens, ações, revoluções, sentidos? Ser técnico e fiel aos fatos será ser superlativo, obrigatoriamente – mesmo porque, talvez não seja possível "aumentar" os feitos políticos de Lula.

Dizer que os 258 milhões de votos que recebeu ao longo da vida são a maior votação mundial que um ser humano já recebeu? Não sei. Mas me pergunto se alguém recebeu mais.

Dizer que alguém perdeu três eleições majoritárias seguidas e humildemente foi para a quarta e venceu democraticamente? Talvez, disso haja precedentes. O difícil vai ser encontrar este feito em um outro país com o tamanho do Brasil. Fora a extensão emocional. A emoção subscrita em todo esse processo histórico também não me parece trivial.

Transpor o Rio São Francisco, esse projeto épico e considerado impossível durante um século inteiro? Construir duas mega usinas de energia limpa no norte do país? Trazer divisas imensuráveis via Olimpíadas e Copa do Mundo? Encontrar, com política soberana de tecnologia nacional, a maior jazida de petróleo do século 21? Criar 40 milhões de consumidores, viabilizar gigantes nacionais, transformar um país inteiro praticamente no berço da democracia mundial? Respeitar a democracia recusando um terceiro mandato pronto e já aceito pelo congresso?
Não sei se isso é muito. Talvez queiramos mais.

Talvez queiramos este realizador, que está na sua plenitude física e intelectual – jogando bola – do alto dos seus 72 anos, também de posse de sua plenitude eleitoral. O voto também tem essa conexão transcedental com Lula: não há como separar um amor assim.

Esse Lula que emerge neste momento, fortalecido por enfrentar e vencer a maior perseguição judicial de que se tem notícia, ainda é capaz de abrir o sorriso. Ainda aglutina todas as forças democráticas em torno de si e conduz o debate público do país com a humildade que lhe é traço consagrado.

Não há mais o que lamentar ou o que temer. A democracia – essa palavra que nesse momento é sinônimo de Lula – está se insinuando para voltar a protagonizar a história deste país. Aos narradores, resta o desafio do relato. Ao povo, resta a catarse democrática, pronta para inflamar  novamente os desígnios do eleitor soberano.