Politização dá o tom no carnaval do Rio de Janeiro

A folia que toma conta do Rio de Janeiro é marcada por uma forte politização, no Sambódromo e nas ruas. Na avenida, será a mais intensa observada em quase três décadas. Entre as 13 escolas de samba do Grupo Especial, a elite do Carnaval carioca, sete irão apresentar enredos de cunho político-social.

Por João Soares

Desfile da Paraíso da Tuiuti - AFP

Enquanto a Beija-flor lembra os "filhos" abandonados pela pátria, a Mangueira exalta a cultura de rua como expressão não alienada. A São Clemente, por sua vez, lembra o incêndio no prédio da Escola de Belas Artes da UFRJ, ainda sem solução. 

Vencedoras da edição anterior, Mocidade Independente e Portela bradam contra a intolerância e reivindicam a integração entre os povos. Já o Paraíso do Tuiuti lembra as novas formas de cativeiro, ao passo que o protagonismo das mulheres negras é tema central na escolha do Salgueiro.

O último boom de enredos politizados havia sido observado na redemocratização, período que tem como marco o tema escolhido pela Imperatriz Leopoldinense em 1989. Com "Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós", a escola exaltava os 100 anos da proclamação da República.

Pesquisador do Carnaval, o historiador Luiz Antonio Simas esclarece que a festa sempre reflete a conjuntura do país ou da cidade: "É uma festa tensionada. Na época da abolição, os Carnavais abordaram o tema com muita força. O mesmo aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial."

A politização dos enredos neste ano ocorre justamente após um corte de 50% na verba destinada pela prefeitura do Rio às escolas. Em vez de R$ 2 milhões, cada escola passou a receber R$ 1 milhão anual.

Na época da redução, o prefeito Marcelo Crivella argumentou que o dinheiro poupado poderia ser usado para a alimentação de crianças nas creches do município em 365 dias do ano, em vez de numa festa que dura apenas três dias.

A decisão inspirou o carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, a idealizar o enredo "Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco" para este ano.

"A motivação é o avanço do pensamento conservador na política nacional, que ficou evidente no Rio com a chegada do Crivella à prefeitura. Existe uma tentativa de enfraquecer as manifestações culturais da cidade, e o enredo é uma resposta a isso. É um posicionamento político as escolas desfilarem neste ano", afirma.

Simas, por sua vez, ressalta que a crise das escolas é bem anterior ao início da atual gestão municipal. "A partir dos anos 1960, elas começam a se virar para a indústria do turismo e entretenimento. Esse movimento chega a um ápice 30 anos depois, com os enredos patrocinados. Assim, foram perdendo as relações de afeto com a sociedade", diz o historiador.

O historiador acrescenta que, em um contexto de crise econômica e sem o apelo popular de outras épocas, as agremiações se viram obrigadas a buscar uma reaproximação de suas bases. "É a única forma de recuperarem o protagonismo. Paradoxalmente, a crise pode salvar as escolas."

Todavia, seria um engano pensar que a politização continuará em alta nos enredos dos próximos carnavais. "A cultura da malandragem não é do enfrentamento. As escolas sempre negociaram com as circunstâncias, desde 1930. Uma escola que traz um enredo de cunho social neste ano pode falar de uma empresa de tubulação no próximo Carnaval", diz Simas.

Humor como forma de protesto

No Carnaval de rua, a politização da festa já é sentida há mais tempo. Blocos com décadas de tradição, como Simpatia é Quase Amor e Barbas, foram criados no contexto da redemocratização, assim como a Sebastiana, associação que reúne blocos da Zona Sul e Centro do Rio.

Em 2014, na esteira da efervescência de junho do ano anterior, foi criado o Ocupa Carnaval, movimento que reúne 35 blocos do Rio e desfila em dois dias da festa com seu próprio cortejo. Todos os anos, paródias de marchinhas tradicionais são atualizadas para o contexto político do momento.

"Por meio de brincadeiras lúdicas, que aproveitam o humor, a arte e a alegria, fazemos política. Reunimos coletivos que veem no Carnaval um meio de lutar contra a mercantilização da cidade e defender a ocupação das ruas", explica Tomás Ramos, saxofonista que toca em diversos blocos da cidade.

A presidente da Sebastiana, Rita Fernandes, identifica uma politização mais forte dos blocos neste ano, fruto da situação política nacional e regional. Além das reivindicações contra todas as formas de intolerância e pelo direito de ocupar as ruas, a associação levanta a bandeira "Fora, Crivella" neste ano.

"O Carnaval de rua corre o risco de acabar no Rio. Organizamos os blocos por amor à festa e à cidade, não somos profissionais. Fomos proibidos de ter patrocinadores que não sejam os oficiais do evento, e o endividamento está no limite do impossível. Além disso, não há diálogo com a Riotur [Empresa de Turismo do Município]", critica.

Fernandes diz que só foi convidada para uma reunião com a Riotur para discutir o Carnaval deste ano. Procurada, a assessoria do órgão alega que foram realizadas mais de dez reuniões entre a Riotur e a representante da Sebastiana durante o período do pré-Carnaval, assim como encontros com outras associações de blocos.

"Não é não"

A tendência global de mobilizações femininas pela conscientização sobre o assédio contra a mulher encontra ressonância no Carnaval de rua do Rio. Desde o ano passado, o coletivo "Não é não" distribui tatuagens temporárias às foliãs com a frase que dá nome ao movimento. No ano passado, três mil foram entregues na cidade.

Neste ano, foi organizado um financiamento coletivo, e o número de tatuagens subiu para 27 mil. Além disso, a campanha foi expandida para Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco.

"A escolha da tatuagem em vez do adesivo serve para mostrar que o assédio é sentido na nossa pele. Nosso objetivo é conscientizar, mas também formar uma rede de apoio entre mulheres", diz Luka Borges, uma das idealizadoras da iniciativa. "Tivemos a ideia quando uma amiga foi assediada em uma roda de samba e percebemos que todas tínhamos um caso, mas não falávamos sobre isso."

No ano passado, as denúncias de violência sexual aumentaram em 90% na cidade. Por isso, a Comissão de Defesa da Mulher na Câmara dos Vereadores do Rio criou a campanha #CarnavalSemAssédio. Serão distribuídos 250 mil leques de papel com a mesma mensagem inscrita nas tatuagens.

"No verso, há um passo a passo sobre como proceder em caso de assédio. O público-alvo são as mulheres, mas a ideia é alcançar os homens também. A gente não rompe com esse processo de machismo se não dialogar com eles. Pensamos no leque pela utilidade prática no verão carioca”, detalha Marielle Franco, presidente da Comissão.