“Política industrial pode ser guiada pelo investimento social”
Um dos mais recorrentes discursos empresariais, sobretudo os relacionados à competitividade da economia brasileira, é o da necessidade de se reduzir o chamado “risco Brasil”. A retórica vem na esteira do debate sobre a redução de garantias constitucionais relacionadas à seguridade social e à legislação trabalhista.
Publicado 26/02/2018 18:34
O professor e pesquisador da Unicamp Marco Antonio Rocha ressalta que esta perspectiva sobre o projeto de industrialização brasileiro revela a absoluta “falta de uma visão estratégica sobre desenvolvimento nacional”.
“Não há país de dimensões como as do Brasil que tenha se desenvolvido somente a partir de sua inserção internacional; pelo contrário, historicamente os grandes países em geral utilizaram o potencial de seu mercado interno para fortalecer sua estrutura industrial e ganhar competitividade para disputar mercados externos – como a China”, explica Rocha.
Outro problema estrutural da política industrial no Brasil é que, sequer entramos consistentemente na Terceira Revolução Industrial, e estamos postos frente a frente com os desafios da Revolução 4.0. “Estamos perdendo alguns mecanismos responsáveis pela difusão de tecnologias da manufatura 4.0. Muitas dessas tecnologias terão um forte impacto negativo na capacidade de geração de emprego de alguns setores no Brasil”, frisa.
Atento às complexidades contemporâneas e à necessidade de superar os desafios da redução de postos de trabalho devido à automação industrial, Rocha alerta que é necessário ao país “encontrar ocupação para toda essa gente. No entanto isso será um problema não só brasileiro, mas atingirá o mundo inteiro. Isso reforça a ideia de que uma coisa fundamental a ser feita é reconstruir o sistema industrial brasileiro como uma forma de atenuar esse problema”, pontua. “A questão central é que precisamos construir nos próximos anos uma política de desenvolvimento produtivo de grande porte e isso não se fará sem contar com o amplo apoio da população a este projeto”, complementa.
Marco Antonio Rocha é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizou mestrado, doutorado e estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente, é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia NEIT-IE/Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Muito das discussões que visam retirar direitos e garantias constitucionais no Brasil, como, por exemplo, as reformas trabalhista e da previdência, sustenta-se em um discurso sobre a diminuição do “risco Brasil”. O que isso revela sobre a noção de desenvolvimento que norteia a política industrial?
Marco Antonio Rocha – Isso na verdade revela a falta de uma visão estratégica sobre desenvolvimento nacional. O debate foi tomado pelo curto-prazismo em dar respostas. Mesmo a política industrial posterior à crise internacional teve um forte caráter reativo. O que se fez foi reagir ao agravamento da perda de competitividade de alguns setores e ao aumento da utilização de insumos importados pela indústria brasileira de modo geral.
Mas, atualmente, o discurso que parece nortear essas ações é que seria possível competir em custos com um conjunto de países que ou começaram sua industrialização posteriormente ao Brasil ou são meros enclaves de produção de multinacionais. Esse tipo de competição pela atração de investimentos estrangeiros está baseado, em geral, em uma série de mitos acerca dos efeitos positivos desses investimentos sobre emprego e renda. Além do fato de crer que seria possível equiparar os custos – sobretudo salariais – com países com grau de urbanização bem inferiores ao Brasil.
Não há país de dimensões como as do Brasil que tenha se desenvolvido somente a partir de sua inserção internacional; pelo contrário, historicamente os grandes países em geral utilizaram o potencial de seu mercado interno para fortalecer sua estrutura industrial e ganhar competitividade para disputar mercados externos – como a China. Nenhum país de dimensões continentais abre mão de fortalecer seu mercado interno em prol de ganhar competitividade em custos.
IHU On-Line – Por que as políticas de industrialização no Brasil têm pouco apoio popular?
Marco Antonio Rocha – Veja, nem sempre foi assim. Durante quase todo o século XX, industrialização e questão nacional eram praticamente sinônimos para boa parte da opinião pública. Esse fenômeno está ligado a uma série de questões que no fundo são consequências das mudanças na indústria mundial a partir dos anos 1990.
Mas, no caso específico do Brasil, isso ganhou muita força no período recente, e aí foi um dos efeitos colaterais da tal Operação Lava Jato, que serviu para espalhar uma ideia comum de que política industrial – que é algo absolutamente imprescindível no mundo atual – é uma forma institucionalizada de corrupção. Isso talvez requeira a reconstrução da legitimidade de alguns instrumentos da política industrial, principalmente no que tange a seu financiamento e às chamadas políticas pelo lado da demanda, como compras governamentais e reservas de mercado em geral.
IHU On-Line – De que forma a crise estrutural da indústria no Brasil ampliou o gap tecnológico da indústria?
Marco Antonio Rocha – Se levarmos em conta que o último ciclo de investimento em máquinas e equipamentos se encerrou pouco depois da crise internacional, em breve vai se completar quase uma década sem grandes investimentos por parte da indústria de transformação. Com um mercado interno pouco dinâmico, novos investimentos são pouco atrativos, processos de modernização ocorrem de forma mais lenta e, em muitos casos, a produção nacional é simplesmente substituída pelo insumo importado. Nesse caso, há uma perda de capacitações pela indústria nacional, ela perde empresas especializadas, além da baixa incorporação de tecnologia no estoque de capital fixo. A prolongada crise por que passa a indústria nacional acaba minando a capacidade dessa estrutura em responder aos estímulos da política industrial.
A política industrial depende da estrutura empresarial para qual ela é dirigida. Se não temos atores importantes em uma série de setores que difundem tecnologia, fica difícil fazer políticas de incentivo, assim como é bem mais difícil impor condições e cobrar contrapartidas às empresas estrangeiras. A próxima política industrial necessariamente terá que lidar com essas questões.
IHU On-Line – De que maneira a esquerda reproduz velhas concepções de industrialização?
Marco Antonio Rocha – Obviamente, o título [do artigo A esquerda deve superar velhas concepções de ‘industrialização’ e política industrial] contém uma dose de provocação, mas está ligada à questão anterior de certa forma. Em termos de discurso, a questão da industrialização por si só é pouco atrativa. Mesmo o emprego industrial tem pouca atratividade para os jovens. A questão não é abrir mão da ideia de que o desenvolvimento se faz com a transformação da estrutura produtiva, mas começar a ampliar os mecanismos de comunicação e debate com a população sobre o sentido desse desenvolvimento produtivo. Uma forma prática seria atrelando parte da política industrial a objetivos claros ligados ao fornecimento de um estoque de infraestrutura social de que o Brasil é simplesmente carente.
IHU On-Line – As portas da revolução 4.0 já foram abertas, mas parece que o modelo mental que orienta a política industrial no Brasil ainda está calcado na segunda revolução industrial. Quais são os desafios para superar essa concepção tradicional de industrialização?
Marco Antonio Rocha – Creio que a questão não seja nem essa. Passamos por mais um período de perda do controle nacional sobre um conjunto de empresas de média e alta tecnologia e pela redução da participação dos setores intensivos em tecnologia na produção manufatureira brasileira. Estamos perdendo alguns mecanismos responsáveis pela difusão de tecnologias da manufatura 4.0, além de termos debilmente entrado na Terceira Revolução Industrial. Muitas dessas tecnologias terão um forte impacto negativo na capacidade de geração de emprego de alguns setores no Brasil – como demonstrou uma recente pesquisa da CNI/UFRJ/Unicamp – e teremos pouca capacidade de assimilar essas tecnologias.
Junte a isso o fato de que países como Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido, China e Índia estão promovendo ambiciosos planos de política industrial. O cenário requer que o Brasil repense um plano em grande escala, e em uma conjuntura política particularmente adversa. A questão central talvez seja traduzir para a opinião pública o tamanho desse desafio, de forma a garantir sua sustentação política.
IHU On-Line – Como pensar uma política industrial a partir da noção de “investimento social”? Do que se trata exatamente?
Marco Antonio Rocha – Essa ideia não é exatamente nova. Temos no Brasil alguns grupos pensando nesse sentido, tanto na Unicamp como, por exemplo, na FioCruz, com o Dr. Carlos Gadelha. Mas vale pensar em algumas questões-chaves sobre essa proposta. Primeiramente, isso não quer dizer que os alvos não serão setores já conhecidos pelo seu potencial de geradores de inovação, capacidade de encadeamento e geração de emprego, mas que é possível fazer convergir políticas de promoção de setores estratégicos com políticas que pelo lado da demanda contemplem o provimento de bens públicos. Isso possibilitaria a criação de demanda para garantir alguma escala produtiva e avançar nas curvas de aprendizado.
Por outro lado, há uma gama considerável de tecnologias que podem ser embarcadas na infraestrutura social, isso poderia ser vinculado às atividades de inovação ligadas a setores específicos, como dispositivos médicos, eletrônicos e equipamentos de transporte. Além disso, muitos desses investimentos podem contemplar inovações incrementais em tecnologias de conservação ambiental.
Ao mesmo tempo, isso geraria contrapartidas observáveis no curto e médio prazo pela população, o que permitiria pensar em uma maior continuidade dessas políticas através do envolvimento mais amplo da sociedade civil. Muitos dos problemas relacionados à política industrial no Brasil estão relacionados à dificuldade de se cobrar contrapartidas e impor indicadores e em garantir a continuidade das políticas de promoção. A criação de um arranjo institucional voltado à resolução de problemas sociais concretos talvez possibilitasse lidar com esses velhos problemas.
IHU On-Line – Como esse rearranjo da política industrial no Brasil pode ajudar no desenvolvimento da indústria mais alinhado às especificidades das diferentes regiões do país?
Marco Antonio Rocha – A ideia de construir essa proposta em torno de missões específicas visa de certo modo a tentar atrelar esse investimento social também a problemas regionais concretos. O objetivo disso é principalmente tentar utilizar a política produtiva e tecnológica para dar um norte e coesão a uma infraestrutura para o desenvolvimento regional criada recentemente. Refiro-me aos Institutos Técnicos Federais e aos novos campi de universidades públicas criadas no Brasil. Isso possibilitaria dar maior envergadura à política de desenvolvimento regional como uma forma de se fazer a promoção de setores e atividades inovativas. Para que essa infraestrutura construída seja plenamente utilizada, a política industrial deve estar de certa forma, também, preocupada em promover respostas tecnológicas voltadas aos problemas de cada região através da utilização desses instrumentos.
IHU On-Line – Ainda levando em conta a revolução 4.0, como superar o desafio da redução dos postos de trabalho frente à progressão da automação industrial?
Marco Antonio Rocha – O desafio será encontrar ocupação para toda essa gente. No entanto isso será um problema não só brasileiro, mas atingirá o mundo inteiro. Isso reforça a ideia de que uma coisa fundamental a ser feita é reconstruir o sistema industrial brasileiro como uma forma de atenuar esse problema. Depois precisamos criar algumas capacitações para absorver e utilizar parte da tecnologia que será empregada na manufatura 4.0. Uma base produtiva sólida é condição necessária inclusive para ter um setor de serviços robusto e com alguma sofisticação.
Outra forma de tentar reduzir o problema é fortalecer a base de pequenas e médias empresas, por isso também é necessário pensar em formas de expandir a capacidade do sistema brasileiro de gerar pequenas e médias empresas de base tecnológica em nível regional. Isso só se faz através de política pública que procure conectar a política científica e tecnológica ao desenvolvimento regional. Por isso a importância de utilizarmos a infraestrutura para o desenvolvimento regional que foi parcialmente instalada.
Além disso, fortalecer a demanda interna por bens e serviços, que é o contrário do que está sendo feito nesse momento.
IHU On-Line – Diante do atual contexto, qual a importância de se pensar a política industrial em perspectiva com políticas de garantia de bem-estar social?
Marco Antonio Rocha – A questão central é que precisamos construir nos próximos anos uma política de desenvolvimento produtivo de grande porte e isso não se fará sem contar com o amplo apoio da população a este projeto. Por isso, cremos que há também a necessidade de se pensar o desenho dessa política e a sua comunicação. Atrelar os mecanismos de intervenção direta do Estado a contrapartidas diretas à população tem o potencial de facilitar a comunicação, o envolvimento e o controle da sociedade civil sobre o que está sendo feito. Creio ainda que isso permitiria ampliar a discussão com a sociedade sobre a finalidade e importância dos investimentos públicos em ciência e tecnologia.
Ao mesmo tempo, há a necessidade de se resolver pelo menos parte dos problemas que atingem a população brasileira, e na verdade o Estado estaria atuando diretamente em questões relacionadas à própria cidadania.
IHU On-Line – Como democratizar o debate sobre a política industrial diante do lobby de empresas e macrossetores econômicos da indústria?
Marco Antonio Rocha – Esse é um ponto importante. Parte significativa dos investimentos públicos e da política industrial no passado recente se dava através das grandes construtoras; nesse período elas se agigantaram ainda mais, diversificaram-se e se tornaram espécies de conglomerados brasileiros. De certa forma, a falência desse modelo abre a oportunidade de discutir as bases e atores novamente da política industrial. Talvez a possibilidade de construir canais de políticas produtivas que promovam articulações entre instituições públicas e empresas de menor porte, com um maior protagonismo das empresas e bancos públicos na gestão de alguns projetos.
Os mecanismos de execução dos investimentos públicos e de transferência tecnológica de certos setores terão que ser repensados. Isso pode ser também uma possibilidade para se repensar a organização da política industrial no Brasil.