Olívia Santana: Marielle, a morte que incendeia a luta!

Resolvi escrever sobre a execução da Marielle Franco e do seu motorista Anderson Pedro, como forma de elaborar o meu sofrimento e indignação diante desse crime abominável. A palavra tem força, seja ela verbalizada ou escrita.

Por Olívia Santana*

Marielle Franco - Mídia Ninja

O que fez Marielle para merecer tamanha brutalidade? Mulher negra com orgulho, filha querida da Maré, no Rio de Janeiro, afirmou-se como líder e foi eleita vereadora da segunda maior cidade brasileira, tendo a quinta maior votação. Em seguida, longe de abandonar sua comunidade de origem, ousou ser porta-voz e intérprete dos anseios do lugar em que nasceu, uma favela onde mulheres, de maioria negra, lutam para viver e educar os filhos, pranteando-os, muitas vezes, quando assassinados.

Como seus gritos nos morros não abalavam o sistema de opressão, Marielle deu um passo à frente: politizou sua indignação, armou sua coragem de ideais de transformação e de discurso de esquerda. Abraçou, resolutamente, a causa dos direitos humanos, dos deserdados, dos despossuídos e silenciados. Em resposta, o povo lhe confiou 45 mil votos, mostrando sim, que podemos. Em meio às 51 cadeiras da casa legislativa da capital fluminense, majoritariamente ocupadas por homens brancos, ela passou a ser uma das sete mulheres que atravessaram o filtro. A única negra num espaço em que os negros são eleitos, mas a alienação causada pelo racismo nos impede de sermos igualmente eleitos para as instâncias de reapresentação política.

Marielle sabia que existir numa favela é enfrentar cotidianamente percalços e desafios. As políticas públicas lá não chegam de maneira a suprir as necessidades. A força policial é, muitas vezes, a única face do Estado que aquela população conhece. E o policial é treinado para proteger a propriedade, de quem a tem, e combater os pobres, desprovidos dela. Vem daí a situação trágica do policial, também um pobre, ser levado a maltratar seus iguais, visto naquelas áreas como insurgentes em potencial. E nesses territórios, onde negros são os habitantes mais numerosos, quase sempre as abordagens da polícia humilham e ferem.

É nesse quadro que vozes como a de Marielle se levantam para dizer que não se pode tratar a todos como bandidos, ou como se cada pobre fosse um alvo a ser atacado. É nas favelas que moram as trabalhadoras domésticas, os trabalhadores da limpeza pública, operários da construção civil, ambulantes e mais, jovens que se viram para estudar – gente séria, honesta e capaz, que corre atrás de um trabalho qualquer, e que o sistema imperante em geral rejeita.

Uma pesquisa do Datafolha (2017), realizada em 194 municípios do país, mostrou que 49% dos brasileiros têm medo de ser alvo de violência por parte de policiais e 60% temem andar nas ruas da vizinhança depois do anoitecer. Sabemos que há milhares de policiais honrados, cumpridores do seu dever. E sabemos também que há os que desonram a farda que vestem, como os que protagonizam chacinas e compõem milícias, substituindo o dever de proteger a vida pela arbitrária decisão de quem deve ser sentenciado à morte.

O crime organizado só prospera porque tem seus tentáculos nas instituições de Estado. Já se sabe, por exemplo, que as balas que mataram a vereadora e o seu motorista, são de um lote que foi vendido pela fábrica CBC para a Polícia Federal. Ou seja, há profissionais de dentro das corporações de segurança, desviando munição para servir ao ilícito. É a chamada banda podre, raramente enfrentada.

É cada vez mais evidente que a morte de Marielle Franco foi um crime político, feito por profissionais do crime organizado, talvez das milícias que ela tanto denunciava.
A defesa dos direitos humanos deveria ser uma causa civilizatória consensual, e jamais levar alguém à morte. Mas o Brasil, de secular escravismo, está mais vocacionado para o castigo, a vingança, a precarização da cidadania. Dados da Anistia Internacional revelam que nosso país é o que mais mata defensores dos direitos humanos. Entre nós, defender negros, mulheres, homossexuais, sem terras, indígenas, trabalhadores em situações análogas à escravidão é atividade de alto risco. A defesa de privilégios de poucos, que herdamos da escravidão, expõe um atavismo deletério ao avanço da sociedade brasileira.

Em oposição à comoção que extrapolou as fronteiras do país, causou espécie duas atitudes de refinada estupidez, a da desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e a do deputado federal pelo DEM, do Distrito Federal, e membro da Bancada da Bala, Alberto Fraga. Os dois divulgaram calúnias e difamações contra Marielle, afirmando ser ela ligada a bandidos e comprometida com facções criminosas. Ante tamanha infâmia, socorro-me em Castro Alves e clamo: “ Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se eu deliro… ou se é verdade tanto horror perante os céus?!…”. Ambos figurantes, frente à enxurrada de protestos que provocaram, já correram para dizer que não pesquisaram bem etc. Mas ficamos a nos perguntar: como pessoas que ocupam cargos de responsabilidade podem acusar, com tanta leviandade e crueldade, aquela que já não está mais aqui para se defender?

A execução de Marielle e as absurdas manifestações da desembargadora Marília Neves e do deputado Alberto Fraga são episódios que resultam da onda de intolerância política, racismo e sexismo, que cresce no Brasil e já começa a tomar a perigosa forma de fascismo.

Tive a honra de participar junto com Marielle e outras feministas do livro “O Golpe na Perspectiva de Gênero”, organizado pela professora Linda Rubim, que integra os programas de pós-graduação em Cultura e Sociedade (PósCult) e em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e pela doutoranda Fernanda Argolo. O artigo dela discorreu sobre o tema “Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo”. Nele, Marielle classifica o governo Temer como uma “abjeção política”, e denuncia o impacto do desmonte das políticas públicas no povo brasileiro, especialmente nas comunidades mais pobres.

Sim, Marielle tinha lado. Sabia que estamos vivendo um Estado de exceção. Morreu lutando contra todo esse retrocesso decorrente do golpe, coisa que escapa à narrativa da grande mídia. Ela era abertamente contraria a intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro e, de maneira incômoda para alguns, tornou- se relatora da Comissão Parlamentar que vai acompanhar o processo.

Engana-se quem acha que Marielle é um “cadáver comum”. Nove estampidos acionaram milhões de consciências. Assassinada, sua força se multiplicou por milhões e, como Zumbi dos Palmares, ela inspira jovens negras e toda gente que tem sede de justiça a mover estruturas. Mais que nunca, é tempo de lutar!