Debate demonstra união da esquerda para enfrentar ataques à democracia

Ampla unidade política para superar a atual onda fascista e de retrocessos democráticos. Esta foi a tônica da mesa “Democratização, reforma do Estado e garantia de direitos”, que abriu o seminário “Desenvolvimento nacional: dilemas e perspectivas”, nesta segunda-feira (2), na Assembleia Legislativa do RS. Promovido por 43 entidades dos movimentos sociais e sindicais, fundações e universidades, o evento acontecerá semanalmente até o dia 8 de maio.

Debate desenvolvimento

Na mesa de abertura, o seminário contou com o jurista, ex-ministro e ex-governador Tarso Genro, a advogada e ex-deputada federal de Santa Catarina Angela Albino e o jornalista e ex-prefeito de Canoas, Jairo Jorge, da Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini, com mediação do professor José Vicente dos Santos, coordenador do Ilea-UFRGS.

Limites da democracia representativa

O ex-ministro da Justiça, Tarso Genro, abriu os trabalhos fazendo uma reflexão sobre os limites da democracia representativa. "Há momentos em nossa história que são momentos de virada da consciência pública, de ousadia da direita e do fascismo e estamos vivendo um desses momentos”, disse. “Todos aqui estamos preocupados em construir uma unidade política superior, não só de resistência ao fascismo e ao projeto neoliberal rentista, mas também de construir um programa comum de uma esquerda plural, capaz de construir um grande plano político e democrático de avanço para o país”, destacou.

Genro lembrou que o moderno estado de direito deixou legados importantes como os princípios da igualdade e da inviolabilidade dos direitos. "Quando esses fundamentos começam a ser erodidos de maneira planejada, é porque o estado moderno, tal qual foi concebido, está em crise”.

Um dos exemplos dessa erosão destacados pelo ex-ministro é o tratamento diferente que a Justiça tem reservado a acusados de corrupção. Ao fazer isso, a Justiça "rompe com o princípio da igualdade formal, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Portanto, aquilo que é uma deformação se torna um elemento constante do próprio regime, colocando o Estado contra um determinado setor da sociedade, contra alguns partidos políticos e algumas lideranças”.

Outra grave violação dos direitos fundamentais apontada pelo ex-ministro vem pela reforma trabalhista, especialmente pela modalidade intermitente. "Um trabalhador intermitente terá de trabalhar 12 horas para ganhar um salário mínimo. Essa regra viola direitos como a jornada de 8 horas, com reflexos na saúde e na vida das pessoas. E isso está sendo feito, aprovado “legalmente” por um Congresso eleito pelo povo”.

Para Genro, ataques como estes são possíveis graças a mecanismos de formação de hegemonia comandada pelas classes dominantes e pelo sistema financeiro, nas quais se inserem think tanks como o Instituto Millenium e grandes veículos de comunicação, como a Rede Globo. “Eles formam pensamentos e produzem o senso comum alienado”, explicou. Isso, disse, "é o vírus do fascismo”, que compra a opinião do povo "para atacar a política e dissolve-la, abrindo fendas para a força normativa do capital sobre as massas populares”.

Tarso Genro finalizou dizendo que diante deste cenário, a neutralidade acaba sendo "a manifestação dos covardes e ineptos". Para ele, "não pode haver neutralidade contra o fascismo”. A superação deste momento, disse, passa pela formação de uma frente política com direção política de hegemonia da esquerda para dar consequência a esse processo de lutas. Além disso, defendeu a necessidade de se trabalhar com três elementos concretos: a reforma política, a democratização dos meios de comunicação e a “desdinheirização" da política, porque “não é mais possível que a política tenha de passar por relações espúrias ou de mendicância” junto ao empresariado.

Equívocos da esquerda

A ex-deputada Angela Albino iniciou sua apresentação homenageando o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, cujo suicídio, destacou, foi "fruto do Estado de exceção que vivemos no Brasil”.

Na sequência, a advogada elencou algumas das dificuldades da esquerda que precisam ser superadas para o enfrentamento do momento atual. Um deles é o não reconhecimento do real inimigo, o imperialismo. “Na hora em que o Brasil diz que é uma nação soberana, que passa a ter assento na ONU, que faz acordos que vão além dos acordos aos quais historicamente estivemos submetidos como quintal dos EUA, a partir deste momento, deveriam ter sido adotadas medidas que nos protegessem deste grande e real inimigo”.

Outro ponto colocado por Angela é que “a melhor política de direitos humanos é o desenvolvimento econômico”. “Em algum momento, tivemos a impressão de que as nossas lutas segmentadas eram maiores do que a luta de classes”, explicou.

O terceiro equívoco destacado por Angela foi a "incompreensão dos limites da correlação de forças”. “Esperamos que deste momento tão doloroso que estamos vivendo, possamos aprender que o inimigo não está entre nós; o inimigo não é aquele com o qual se disputa uma eleição num mesmo segmento; o inimigo está do outro lado. E precisamos construir, sobre bases concretas, essa correlação de forças mais favorável”.

Por fim, o último equívoco apontado pela ex-deputada foi uma profunda ilusão de Estado e do republicanismo. Ela abordou as carreiras de estado neste processo atualmente vivido. Para exemplificar, lembrou o jejum prometido pelo procurador Daltan Dallagnol que busca pressionar o STF com relação à decisão de condenação em segunda instância. “É uma lástima que não tenham jejuado pelo fim do auxílio-moradia”, brincou.

Angela Albino também destacou que a grande votação de Marine Le Pen na França e a vitória de Donald Trump nos EUA acendem um alerta importante: “demonstram que tem muita gente que precisamos disputar no campo das ideias, incansavelmente, todos os dias”. Para ela, essas votações, bem como certas candidaturas de extrema-direita no Brasil, não têm como base apenas o discurso de ódio. “Elas falam da vida concreta, do cara que tem medo de sair com o celular e ser assaltado. Como disputar essas pessoas?”, questionou.

Para ela, o papel da esquerda é "disputar essas pessoas que estão nesse discurso de ódio porque por trás disso há uma angústia profunda com a segurança e com a perspectiva de futuro". E defendeu a necessidade de uma frente ampla para construir um novo projeto nacional de desenvolvimento. "Nossas divergências, se somos leninistas ou trotskistas, não têm importância agora porque estamos numa encruzilhada civilizatória no Brasil e temos de ter a responsabilidade de conduzi-la da melhor maneira”.

Aprofundar a democracia

A última palestra da noite foi feita pelo jornalista e ex-prefeito de Canoas, Jairo Jorge, que se focou no aprofundamento da gestão democrática no campo governamental. “Vivemos tempos de intolerância, ódio e violência. Tempos de desconstrução de um projeto nacional e de ações para solapar conquistas sociais e avanços democráticos”, disse.

De acordo com Jorge, há uma crise de legitimidade entre o representante e o representado. "As pessoas não vêm nos eleitos práticas e propostas que estejam conectados com seus anseios e perspectivas e isso é um fenômeno mundial”, destacou.

Segundo ele, o grande desafio, hoje, “é re-encantar os indivíduos com a política e a esfera pública; não podemos dar velhas respostas para novas perguntas”. Para o capital, explicou, “a democracia deixa de ser essencial” e “há um processo de desconstrução da política na cena mundial, em que os temas da corrupção e da ineficiência surgem como aríetes para derrubar governos progressistas e colocar em seu lugar a necessidade de soluções técnicas sem colorações ideológicas ou partidárias”.
Neste sentido, disse que “a versão neoliberal do desencanto se manifesta de diversas formas; uma delas é a apologia dos governos técnicos, apresentando o político como responsável por todos os males, como algo antiquado, uma espécie de tumor que precisa ser extirpado”.

Diante deste novo momento, destacou, “defendo que a melhor resposta da esquerda é estimular a cultura da participação popular, aprofundar a democracia fortalecendo as atuais e criando novas ferramentas de participação”. Para ele, é preciso “dessacralizar a autoridade e aproximar cada vez mais os cidadãos de nossos políticos” e a "vontade popular precisa estar no centro da administração”, um contraponto ao conceito de “choque de gestão” formulada pela direita neoliberal, na qual o cidadão é mero consumidor.

"Hoje, infelizmente, há um processo crescente de criminalização da política, afastando as pessoas do engajamento cívico. Isso leva ao afastamento de inúmeros talentos da construção de um Estado compromissado com a justiça e a garantia de direitos, com a promoção da democracia e de um projeto de desenvolvimento a serviço do povo”. Neste sentido, também defendeu a convergência e a unidade do campo da esquerda para a superação dos atuais desafios.

A mesa de abertura do evento contou com a participação e saudação do deputado Altemir Tortelli, representando a presidência da Alergs; Raul Carrion, da Fundação Maurício Grabois; Jorge Branco, da Fundação Perseu Abramo; Miguelina Vecchio, da Fundação Leonel Brizola/Alberto Pasqualini; Francisvaldo Mendes de Souza, da Fundação Lauro de Campos — que prestou homenagem à vereadora Marielle Franco e ao seu motorista, Anderson Gomes, assassinados no dia 14 de março no Rio de Janeiro; Vicente Selistre, da Fundação João Mangabeira; da ex-deputada e atual dirigente do Cebrapaz-RS, Jussara Cony; Miguel Frederico do Espírito Santo, do Instituto Histórico e Geográfico do RS; Benedito Tadeu Cesar, do Comitê Gaúcho em Defesa da Democracia e Mark Kuschick, da Sociedade de Economia do RS.

O seminário segue no dia 09/04 com a mesa "Soberania nacional e integração internacional não-subordinada”, com as participações de Renato Rabelo (Presidente da FMG), do historiador Gilberto Maringoni (Fundação Lauro Campos e UFABC), do sociólogo Miguel Rossetto (ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário) e da historiadora Analúcia Danilevicz (NERINT/UFRGS).

De Porto Alegre,
Priscila Lobregatte.
Fotos: Beto Rivera (1 e 5) e Walmaro Paz (2,3 e 4)

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