A atualidade da Revolta da Vacina

O modo como o governo federal resolveu enfrentara atual grave crise econômica, política e social do Rio de Janeiro, é familiar. A ênfase em medidas de segurança, com a intervenção do Exército, tendo como alvo a população mais pobre, remete à crise da cidade em 1904.

Por Carlos Azevedo

A revolta da vacina - Divulgação

Naquela ocasião, o autoritarismo e a repressão resultaram na Revolta da Vacina. 114 anos nos separam daqueles acontecimentos, mas é espantoso perceber como, na sua essência, a maneira como a elite no poder encara o povo pobre mudou tão pouco.

No livro A Revolta da Vacina, escrito em 1984 e reeditado em 2010, o historiador Nicolau Sevcenko, desvela as impressões digitais daqueles acontecimentos, que podemos comparar com as dos dedos de agora.

Nicolau Sevcenko, filho de refugiados políticos da URSS, nasceu em 1952 em São Vicente, SP, logo após a chegada de seus pais ao Brasil. A mãe, esperançosa de voltar após a queda do regime soviético, que imaginava próxima, não lhe ensinou português. O menino voltou do seu primeiro dia de aula dizendo que fora à escola errada, pois ali se falava uma língua “estrangeira”.

Encontrou grandes dificuldades para se adaptar. Muitos anos depois, Sevcenko, intelectual refinado e professor na USP, em Harvard, e Londres, disse numa entrevista que dedicara sua vida a entender o Brasil e a América Latina. Seu livro indica que ele entendeu.

A seguir, um resumo, o que não dispensa o leitor de conhecer essa obra de uma lucidez cristalina, definidora da nossa sociedade.

O Cenário

Na transição do século 19 para o século 20, as condições de vida se degradaram muito na cidade do Rio de Janeiro. A população de 522 mil habitantes em 1890 praticamente dobrara dez anos depois. Afluiam em massa para a capital os negros afastados das fazendas após a Abolição, brasileiros de todas as partes chegavam à procura de trabalho, assim como grandes contingentes de imigrantes estrangeiros atraídos pelas promessas dos cafeicultores ávidos de mão de obra barata. Os casarões coloniais, transformados em imensos pardieiros acomodavam essa população miserável, transbordante, um torvelinho humano em busca de sustento cada vez mais escasso.

Aqui Sevcenko traça um retrato que pode se aplicar ao Rio de Janeiro de hoje: “A imprensa trovejava reprimendas ao governo pela sua inépcia diante do aumento da criminalidade urbana. A crônica policial ganhava espaços cada vez maiores com a descrição enraivecida do aumento escalonado dos roubos, assaltos, arrombamentos, homicídios, assim como da vadiagem, prostituição, da mendicância e do alcoolismo.”

O fazendeiro de café paulista, Rodrigues Alves, presidente do Brasil de 1902 a 1906, ao assumir o governo, declarou que seu programa era muito simples: “o saneamento e o melhoramento do porto do Rio de Janeiro.” De fato, apesar de ser o principal do país o porto do Rio apresentava ainda uma estrutura antiquada e restrita, incompatível com sua condição de polo catalizador de toda a atividade econômica nacional. E as ruas da cidade eram vielas coloniais estreitas, que dificultavam o transporte e o armazenamento das mercadorias.

“Em suma — diz Sevcenko – “a cidade com desenho e proporções coloniais, não era mais compatível com a função de grande metrópole que a atividade febril do porto lhe impingira. Ou seja, o projeto do melhoramento do porto era indissociável de um outro, muito mais ambicioso, mais drástico e de terríveis consequências sociais: o de remodelação urbana do Rio de Janeiro”.
E ele acrescenta: “mas havia um outro problema, em íntima conexão com os dois primeiros. A cidade era foco endêmico de uma infinidade de moléstias: febre amarela, febre tifoide, impaludismo, varíola, peste bubônica, tuberculose, entre outras (…) sua fama era internacional e tornava o Rio de Janeiro conhecido no exterior como “o túmulo dos estrangeiros”.

Para que se pudesse criar condições para a campanha de atrações de capitais estrangeiros, imigrantes, técnicos e equipamentos, seria indispensável o saneamento da cidade. Essa seria a estratégia de Rodrigues Alves e o modo como iria articular os interesses dos cafeicultores paulistas e as finanças internacionais.

Na sua primeira mensagem ao Congresso, o presidente foi categórico: “os defeitos da capital afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional”. Contando com maioria folgada no Parlamento, garantida pela “política de governadores”, lançou-se à ação sem respeitar protestos dos que tinham seus interesses atingidos.

Rodrigues Alves nomeou o engenheiro Pereira Passos prefeito do Rio e lhe deu carta branca por meio de uma lei, de novembro de 1902, que criava um novo estatuto de organização municipal para o Distrito Federal. “A lei era equívoca, arbitrária e visivelmente inconstitucional, atribuindo poderes tirânicos ao prefeito e retirando qualquer direito de defesa à comunidade”, diz Sevcenko. Afonso Arinos de Melo Franco biógrafo de Rodrigues Alves, iria apontar o caráter espúrio da lei.

Citando, por exemplo, o artigo 23, conta que “quando se tratasse de demolição, despejo, interdição e outras medidas, haveria apenas um auto afixado no local, que previa penalidades contra as desobediências. Daí vieram os numerosos casos de demolição, com as famílias recalcitrantes ainda dentro dos prédios”. Essa ficou conhecida como a “ditadura Passos”. Ruy Barbosa se manifestou: “… nas mãos de um só homem essa autoridade, ele poderá ser o senhor absoluto desta capital, um ditador insuportável…”

Convidado para a coordenação da campanha pela erradicação das endemias, o médico Osvaldo Cruz exigiu do presidente da mesma forma condições severas e a mais completa independência. E estabeleceu-se o que povo chamou de “ditadura sanitária”. A lei de março de 1904 permite ao autoritário médico “invadir, vistoriar, fiscalizar e demolir casas e construções.” Ficam vedados os recursos à justiça comum. A lei seguinte, que tornou obrigatória a vacina, veio ampliar e fortalecer esses poderes, colocando toda a cidade a mercê dos funcionários e policiais a serviço da Saúde Pública. Se alguém escapara dos furores demolitórios de Pereira Passos não teve como escapulir dos poderes inquisitoriais de Osvaldo Cruz. Sevcenko: “o pesadelo tornou-se realidade. Nada mais natural, portanto, quea população inerme reagisse, transformando a realidade em pesadelo”.

O arrocho liberal

A política liberal do antecessor de Rodrigues Alves, o presidente Campos Sales, foi de um arrocho intenso. Para controlar o descalabro em que a economia se encontrava, retirou de circulação grande quantidade de papel moeda, em seguida incinerado. Isso provocou uma imediata valorização da moeda nacional, produzindo uma nova relação cambial. Que foi compensada com um grande aumento das taxas de importação. Sem recursos, o governo restringiu ao máximo as despesas públicas, com graves consequências sociais: dispensa maciça de funcionários e operários, suspensão de serviços e pagamentos, criação de novos impostos e majoração dos já existentes. A população mais pobre, já afetada pelo desemprego em massa e a retração financeira, enfrentou um dramático aumento do custo de vida. Essa política favoreceu apenas a cafeicultura, que obteve melhores preços para exportar o café. O que mostra a quais interesses ela servia. Campos Sales deixou o poder pesadamente vaiado desde as portas do palácio de governo; o trem em que partia para São Paulo, foi sendo apedrejado enquanto passava pelos subúrbios.

Foi nessas condições de miséria desesperadora da população que Rodrigues Alves assumiu. A pesada tensão e as manifestações de insatisfação que chegavam às ruas foram percebidas pela oposição, que procurou tirar proveito. A oposição tinha duas vertentes, a militar, composta por oficiais seguidores do ex-presidente marechal Floriano. A outra ala era a dos monarquistas tentando reinstalar a monarquia. Ambas procuravam incentivar a população à revolta, servir-se de sua indignação para assaltar o poder.

O "Bota abaixo"

O prefeito Pereira Passos esteve em Paris enquanto o barão Haussman fazia o replanejamento da cidade, eliminando vielas tortuosas e abrindo boulevards que tornaram inviáveis as revoltas e as barricadas. Para Sevcenko, pode-se deduzir que a transformação do desenho urbano do Rio de Janeiro obedeceu uma diretriz política, que consistia em deslocar aquela massa temível do centro da cidade. Essa reforma foi saudada com entusiasmo pela imprensa conservadora. Era a voz daqueles que herdariam, “para seu impávido desfrute, um espaço amplo, controlado e elegante onde antes não podiam circular senão com desconforto e sobressalto. (…) E as vítimas, uma multidão de humildes, dos mais variados matizes étnicos a massa trabalhadora, os desempregados, os subempregados e os aflitos de toda espécie”.

A ação do governo não foi só contra os seus alojamentos: suas roupas, seus pertences, sua família, suas relações vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, suas formas de subsistência, sua cultura. Tudo, enfim, é atingido. Sem falar que a especulação imobiliária havia desalojado outras tantas famílias. A população mais humilde foi empurrada para a periferia da cidade, para bairros mais distantes e degradados. Os morros e os mangues começam a forrar-se de casebres de caixotes e cobertos de latas, muitos deles abrigando várias famílias. O extremo dessa agonia social foi o que se chamou de “zungas”, hospedarias paupérrimas onde se amontoavam aqueles que não tinham como pagar um quarto numa casa.

Relatório de uma comissão do Ministério da Justiça, de 1905, informa que já haviam sido demolidas cerca de seiscentas habitações coletivas e setecentas casas.
“Gesto brutal, disciplinador e discriminador, que separava claramente o espaço do privilégio e as fronteiras da exclusão e da opressão”, conclui Sevcenko.

A revolta 

O acontecimento que deflagrou a revolta foi a lei que tornou a vacina obrigatória. Os termos eram extremamente rígidos, abrangendo desde recém-nascidos até idosos, impondo-lhes vacinações, exames e reexames, ameaçando-os com multas pesadas, demissões sumárias, limitando as oportunidades de recursos, defesas. Não se cogitou da preparação psicológica da população, da qual se exigia submissão incondicional.

A oposição bradava que não se era contra a vacina, mas contra os métodos violentos, arbitrários. Funcionários, enfermeiros, fiscais e policiais pouco confiáveis, de instintos brutais e moralidade discutível, que cometiam abusos contra as famílias, principalmente mulheres e crianças.

A lei foi publicada em 9 de novembro de 1904. No dia seguinte, as agitações já se iniciavam com fúria. Oradores populares chamavam o povo à rebeldia. A Polícia tratou de prender os oradores, mas foi atacada a pedradas. Contingentes policiais de grandes proporções foram às ruas com ordens de agir prontamente e com desembaraço contra as ameaças à ordem pública. No dia 11, a Liga contra a Vacina Obrigatória havia marcado um comício desafiando a proibição policial. Seus líderes não compareceram. Oradores populares comandam a manifestação. A polícia ataca com uma carga de cavalaria, de sabre em punho. O sangue mancha o calçamento das ruas, o tumulto se generaliza. Tiros e pedradas chovem sobre a brigada de policiais.Os grupos populares se dispersam pelas ruas centrais, Rua do Teatro, do Ouvidor, Sete de Setembro, Praça Tiradentes.

O combate era intenso, em nenhum lugar a polícia conseguia assumir o controle da situação. Aproveitando-se do material que estava sendo usado nas obras para a abertura das novas avenidas, os populares se armaram de pedras, paus, ferros, instrumentos e ferramentas contundentes e se atracaram com os policiais. A tropa da policia se compunha de infantaria armada de carabinas e de piquetes de lanceiros da cavalaria. A população se refugiava nas casas vazias, se metia pelos becos estreitos. O barulho do combate era ensurdecedor, tiros, gritos, tropel de cavalos, vidros estilhaçados,, correrias, vaias, gemidos. O número de feridos crescia de ambos os lados e a cada momento chegavam novos contingentes de policiais e de amotinados.

Por volta das oito horas da noite, a multidão – cerca de 3 mil pessoas – se aglutina no Centro das Classes Operárias. Após uma série de discursos, a massa se dirige ameaçadoramente contra o Palácio do Catete, sede do governo da República. Para a sua defesa não bastaram batalhões policiais, mas o Exército é convocado para reforçar a defesa do palácio presidencial. Depois de vaiar muito o governo, a multidão retorna ao Centro. Na altura do Largo da Lapa cruza com o carro do chefe da polícia, acompanhado de uma escolta de lanceiros. O tiroteio se generaliza, tombam feridos, um civil cai morto. Chegam mais tropas. A multidão se espalha, apedreja bondes, lâmpadas da iluminação. A cidade começa a se transformar em praça de guerra.

Nos três dias seguintes, a rebelião ganha um vigor inimaginável, numa fúria incontida contra praticamente todos os veículos, destruindo todas as lâmpadas de iluminação pública, arrancando o calçamento das ruas, erguendo-se redes de barricadas e trincheiras interligadas, assaltando delegacias e repartições públicas, distribuindo-se armas, querosene e dinamite, roubadas das casas de comércio. As autoridades perderam completamente o controle da região central e dos bairros periféricos. As tropas eram sumariamente expulsas dessas áreas, por mais que as assaltassem armadas até os dentes.

Como a força policial não dava conta, o governo lançou mão de todas as forças possíveis do Exército e da Marinha. Não foi suficiente. Precisou chamar unidades do Exército paulistas e mineiras. Ainda não bastou. Apelou para bombardeios a partir dos navios da Marinha, Armou os bombeiros, convocou a Guarda Nacional. Só com essa espantosa massa repressiva pôde o governo, aos poucos, sufocar a insurreição.

Para aumentar a sensação de desordem e colocar o governo em polvorosa, ocorre uma sedição militar visando a tomada do poder, encabeçada por jacobinos e florianistas, mas ironicamente financiada pelos monarquistas. Os alunos da academia militar da Praia Vermelha se encaminharam para tomar o Palácio do Governo. Foram interceptados por uma força de infantaria e, na escuridão da noite houve um intenso tiroteio com inúmeros mortos e feridos. Os alunos voltaram para o quartel da Praia Vermelha, que foi bombardeado durante toda a noite pelos canhões do encouraçado Deodoro e as metralhadoras da Guarda Costeira. Depuseram as armas na manhã seguinte.

O golpe militar fracassara, mas a revolta continuou acesa até o dia 16, quando o governo recuou revogando a obrigatoriedade da vacina. A cidade ressurge da revolta irreconhecível, em ruínas. Um número incalculado de mortos e feridos. Sem demora, o governo desencadeia um furor repressivo. Líderes militares e civis são presos, os alunos da Praia Vermelha mandados para regiões de fronteira. Os populares perseguidos e presos aos magotes.

O Terror

A insurreição popular serviu de alegação providencial para dar curso às medidas que a reurbanização e o saneamento exigiam. A violência policial se distingue não só pela sua intensidade e amplitude, mas sobretudo pelo seu caráter difuso. Não importava definir culpas, investigar suspeitas ou conduzir os acusados aos tribunais. O objetivo era mais amplo: eliminar da cidade todo excedente humano potencialmente turbulento. Os alvos eram todos os miseráveis, carentes de moradia, de emprego e documentos, que eram milhares. Essa repressão brutal e indiscriminada não se restringiu aos dias que se sucederam ao término do motim. Prosseguiu por meses. O escritor Lima Barreto testemunhou: “trinta dias depois, o sítio é a mesma coisa. Toda a violência do governo se demonstra na Ilha das Cobras. Inocentes vagabundos são aí recolhidos, surrados e mandados para o Acre”.

Os magotes de pobres da cidade eram embarcados em navios-prisão, onde se amontoavam de maneira bárbara, seminus, em condições precaríssimas de alimentação e respiração, sufocando sob o calor, os excrementos, piolhos, ratos e chibata. Muitos, é evidente, não resistiram a uma viagem tão longa em tais condições. Isso se dava “com tal selvageria e desumanidade que a imaginação recua espantada, como se diante das cenas do navio negreiro que inspiraram Castro Alves”, declarou o senador Barata Ribeiro.

No Acre, eram amontoados brutalmente em vapores e levados às pressas para o coração da floresta amazônica. O escritor Euclides da Cunha descreveu esse espetáculo melancólico; “a multidão martirizada, perdidos todos os direitos sobre os laços de família, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido”. E lá nos fundões do sertão era abandonada.

Esses acontecimentos desnudaram a intimidade da sociedade em transição do Império para a República. O estilo da repressão adotado na Revolta da Vacina era indicativo de outros elementos discriminatórios e brutais, visando a contenção e controle das camadas humildes. A inspiração dessa estratégia procede do modelo de tratamento reservado aos escravos e que vigorou até a Abolição. A revelação notável é que o que antes fora uma justiça particular, aplicada no interior das fazendas e casas senhoriais, tornou-se prática institucional da própria autoridade pública no regime republicano. O escritor Lima Barreto registra com fina ironia: “o Brasil já estava habituado a essa história. Durante quatrocentos anos não se fez outra coisa”. Para ele, a República “democratizou” a senzala. Situação que se tornou um elemento estrutural e indissociável da ordem republicana.

Essa sociedade que entronizou a desigualdade que se mantém até nossos dias, que discrimina e nega a cidadania à maioria dos brasileiros, mostra suas vísceras em episódios como a intervenção militar no Rio Janeiro, que se desencadeou neste ano de 2018, cercando e oprimindo os moradores de morros e favelas, os mais pobres da sociedade carioca. A Revolta da Vacina mantém sua atualidade como um poderoso farol a iluminar a escuridão da inconsciência que muitos de nós brasileiros temos de nossa realidade.

P.S. Esse texto foi escrito antes do assassinato da vereadora Marielle, em 14 de março de 2018.

A Revolta da Vacina
Nicolau Sevcenko
142 páginas
Cosac Naify, 2010