A saúde do atraso: uma alternativa ao SUS autoritária e seletiva

Na última terça-feira (10) foi realizado em Brasília um evento que propõe a substituição do Sistema Único de Saúde pelo “Novo Sistema Nacional de Saúde”. A ideia central é que este “novo” sistema seja gerido segundo os ditames dos planos de saúde.

Por Rafael da Silva Barbosa*, no Brasil Debate

Saúde maternidade - Reprodução TV Brasil

Em termos específicos, o "1º Fórum Brasil – Agenda Saúde: a ousadia de propor um Novo Sistema de Saúde", organizado pela Federação Brasileira de Planos de Saúde, com participação do ministério da área, de deputados e senadores, nada mais é do que o desdobramento do lobby do setor privado que desde 2014 faz enormes investidas contra o Estado para se apropriar dos recursos públicos (detalhes no site da Fiocruz).

Este evento em particular é resultado direto da publicação “Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde”. A publicação busca por meio de chavões desconstruir os alcances do Sistema Único de Saúde, sem analisar as reais causas da insuficiência do sistema público, no qual há flagrante sabotagem econômica, institucional e política.

Ou seja, a partir de uma análise descontextualizada da criação democrática do SUS e das suas condições mínimas, o documento desvirtua questões sociais prementes do avanço civilizatório mundial, limitando suas conclusões a um universo mercantil individualista.

Dentre as diversas considerações sobre o documento, quatro são imperativas, a saber: a primeira delas diz respeito ao contexto internacional, ao comparar o SUS com demais sistemas de saúde do mundo, é preciso contextualizar o desenvolvimento social dos respectivos países tendo em mente os aspectos geográficos, populacionais, riqueza e desigualdade. O Brasil é um país continental, o que implica que os seus custos com logística são maiores do que os de menor extensão territorial.

Ou seja, uma coisa é realizar um rastreamento (screening) em um país europeu, com média de 150 mil quilômetros quadrados, outra coisa é fazê-lo num país com mais de 8 milhões de quilômetros quadrados como o Brasil. Isto sem mencionar que, embora o Brasil seja uma das maiores economias do mundo, o PIB per capita é baixo (14.454,94 dólares – a preços constantes de 2001) e muito mal distribuído (GINI de 52), realidade diversa dos países desenvolvidos utilizados para a comparação com média per capita de 46.850,84 dólares e baixa desigualdade próxima dos 27 pontos.

Em segundo lugar, ao longo de todo o documento, o SUS é analisado, prioritariamente, diante do desempenho do sistema de saúde norte-americano. Mas é preciso lembrar que o país utilizado no estudo como parâmetro de sucesso é o ponto fora da curva, outlier, do mundo desenvolvido, em sentido negativo.

Os Estados Unidos, quando comparado aos seus pares desenvolvidos, apresenta os piores níveis nos indicadores de finanças, gestão e desfecho do sistema de saúde. E isto pode ser facilmente percebido ao compará-lo aos seus irmãos anglo-saxões.

O seu gasto per capita em saúde é três vezes maior do que o inglês e o dobro em relação ao canadense e, mesmo assim, obtém desfecho bem inferior. A mortalidade infantil é quase 60% e 30% maior do que no Reino Unido e Canadá, respectivamente, evidenciando a ineficiência do gasto em saúde.

Este resultado é fruto do perfil do gasto do país, a participação pública do gasto dos EUA se aproxima muito mais dos países subdesenvolvidos do que da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com 46%.

A partir desse aspecto, chega-se à terceira consideração do estudo, para a qual, em termos concretos, até o momento não estão claras as evidências que comprovem a eficiência da promoção do setor privado em qualquer nível dos sistemas de saúde.

Existem vários exemplos no mundo de sistemas de saúde públicos eficientes, mas o contrário não é verificado. O gráfico abaixo é a prova. Todos os países desenvolvidos com participação pública superior à privada apresentam melhores níveis de efetividade. Nesse sentido, o estudo não qualifica o perfil do gasto público ao desempenho do sistema, sendo esse aspecto o maior determinante das distorções teóricas e práticas dos sistemas de saúde.

Em quarto, verifica-se a ausência de análise das políticas públicas. O documento avalia os dados sem levar em consideração os determinantes democráticos das políticas públicas de saúde, em que as decisões são tomadas a partir de consensos dos mais diversos grupos de interesse da sociedade.

Os ciclos políticos são fortes condicionantes das tomadas de decisão, e é preciso compreendê-los para ponderar seus resultados. A descentralização dos serviços de saúde foi exemplo disso. Esse processo esteve casado com o sentimento da abertura democrática do período que, de certa forma, abafou as diretrizes de regionalização previstas na Constituição de 1988, sem eliminar, entretanto, seu caráter positivo com a efetiva desconcentração dos recursos as regiões mais carentes do país.

Além dos quatro pontos destacados do documento “Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde”, cabe pontuar de forma sucinta alguns outros:

(i)
A população brasileira vem envelhecendo e o número de habitantes acima de 60 anos deve triplicar até 2030.

É preciso considerar a dinâmica tecnológica da economia. As revoluções industriais mostram que a cada avanço tecnológico a produtividade por trabalhador aumenta, o que, por sua vez, eleva a capacidade de geração de riqueza. Uma previsão de acima de 10 anos deve incorporar a dinâmica capitalista.

(ii) Como consequência, no Brasil, a saúde é considerada apenas um “direito de todos”, como manifestado na Constituição, enquanto em outros países a interpretação é de que a saúde também é um “dever de todos”, uma vez que apenas o esforço em comum, tanto individual como coletivo, poderá levar a um estado de saúde melhor para a população. (p.24)

Isto não se aplica ao Brasil, pois o princípio do “dever” é o valor mais presente ao longo da história do país, onde a maior parte dos habitantes, por um bom período, tinha o “dever” de trabalhar compulsoriamente sem qualquer direito, sendo o país do mundo que mais preservou o regime escravista, por longos 350 anos.

Em tempos recentes, somente a partir da Constituição Cidadã de 1988 foi possível conferir os direitos básicos secularmente negados à população brasileira. Direitos esses conquistados pelos países desenvolvidos no início do século passado.

(iii) Os princípios do SUS levam a uma cobertura mais ampla do que a de países com sistemas semelhantes e maior renda per capita. (p. 25)

Essa afirmação remete à seguinte questão: Devem-se cobrir menos os países com maiores necessidades ou cobrir mais aqueles que menos precisam? A perspectiva leva a crer que a responsabilidade do acometimento é da vítima.

Hipoteticamente, a solução para superlotação hospitalar é exatamente fechar o hospital, ao invés de buscar formas mais eficientes de garantir o serviço. O documento sugere que o problema da eficiência passa pela "descobertura" da saúde.

(iv) Uma consequência da cobertura ampla e pouco clara é a judicialização que já custa cerca de R$ 7 bilhões e isso é apenas parte do gasto. (p. 26)

A questão não é a cobertura, mas a gestão dos processos a partir da responsabilização dos agentes (paciente, médico, advogado, indústria farmacêutica), evitando o isolamento decisório do juiz. As sentenças devem incorporar contrapartidas em relação à má-fé do mercado e à efetividade dos tratamentos julgados.

(v) A amplitude da cobertura não vale apenas para o setor público. Ela também se reflete no setor privado por meio do chamado Rol de Procedimentos, imposto pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), órgão que regula os planos de saúde privados. (p. 27)

O setor privado é beneficiário de uma série de mecanismos estatais de financiamento público, gozando de um conjunto não desprezível de incentivos públicos. Sistematicamente, os planos de saúde são beneficiados fiscalmente (desonerações para produtos médico hospitalar), orçamentariamente (renúncia do imposto de renda para pessoa física e jurídica) e operacionalmente (beneficiário dos planos que utilizam o SUS). Por isso, são obrigados a ofertarem o mínimo de serviços aos seus usuários.

(vi) No Brasil, é necessário incorporar indicadores que atendam às novas necessidades do cidadão e ao planejamento adequado do sistema. Para tanto, é necessário aumentar a granularidade dos dados e investir na transparência. (p. 39)

Já existem medidas voltadas para desagregação analítica dos dados. As duas investidas mais atuais são a conta satélite da saúde e o Sistema de Conta em Saúde (System of Health Account- SHA).

Criado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no Brasil o SHA é estudado desde 2013 pelo grupo executivo de Contas de Saúde do Brasil, composto por especialistas brasileiros das quatro instituições participantes do treinamento, além da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

(vii) Caso as condições atuais continuem inalteradas, os gastos da saúde no Brasil deverão chegar a níveis insustentáveis para todos os elos financiadores. (p. 48)

A metodologia utilizada se limita a estimar os custos sem considerar as receitas para os próximos anos e o dinamismo da economia capitalista. Com a inovação tecnológica esperam-se novas revoluções industriais na série analisada.

Ademais, a definição utilizada do gasto em saúde encontra-se ultrapassada, visto que os dispêndios em saúde não devem ser considerados como gastos, mas como investimentos, pois ao lado da educação, essas inversões têm um dos maiores coeficientes de multiplicação da riqueza e renda dos países.

O dispêndio público em saúde não se limita apenas à segurança social da saúde. Os investimentos na área se justificam, também, pelo seu aspecto econômico. Estima-se que para cada dólar, em média, investido na saúde se produz 3 dólares em crescimento econômico no mundo desenvolvido. Isto é, investir em saúde e educação é extremamente positivo para a economia.

No curto prazo, o efeito de conversão dos recursos públicos em trabalho e renda é muito maior do que em outros setores, dada a intensidade em mão de obra. Já no longo prazo, esses investimentos resultam numa mão de obra mais qualificada e saudável.

No Brasil, segundo o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o multiplicador fiscal da Saúde é de 1,70% para o PIB e de 1,44% para a renda das famílias, ou seja, para cada real gasto em saúde gera-se 1,70 de crescimento do PIB e 1,44 na renda das famílias.

A contribuição da Educação é ainda maior para o PIB e a renda das famílias, sendo de 1,85% e 1,67%, respectivamente. O estudo do IPEA deixa claro que os gastos com Educação e Saúde são verdadeiramente investimentos econômicos que acrescentam riqueza ao país, enquanto os gastos com obrigações da dívida são de fato um custo para país, oferecendo variação negativa em relação ao retorno para o PIB.

(viii) O orçamento de saúde do governo cresce mais rápido do que a arrecadação. Apesar do corte em 2014, em 2015 os gastos voltaram a crescer de forma mais rápida do que a arrecadação. O corte de orçamento em 2014 e a manutenção do seu patamar entre 2013 e 2015 sugerem que os gastos do setor público estão próximos do seu limite. A PEC 55 traz incertezas adicionais para o financiamento público da saúde considerando a tendência de crescimento de gastos acima da inflação com a evolução da demografia e maior prevalência de doenças crônicas. (p. 50)

O gasto que mais cresce é o financeiro, e este se encontra fora do controle da Emenda Constitucional nº 95 (teto do gasto).