Saúde para quem? As OSs e a crise nos hospitais paulistas

Em 2018, comemoramos 30 anos da “Constituição Cidadã” de 1988. Seu artigo 6º estabeleceu direitos fundamentais importantes, como a educação, a saúde, o trabalho e o lazer. Foi sob esse contexto que nasceu o SUS (Sistema Único de Saúde).

Por Zizia Oliveira*

Saude - Hospital São Paulo

Detentora de um artigo próprio, a saúde foi reconhecida como direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O acesso a esse direito deve ser universal e igualitário, por meio de ações e serviços que garantam sua promoção, proteção e recuperação.

No governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), antes mesmo de a Constituição de 1988 completar dez anos, surgiram brechas para seu não cumprimento. FHC editou a Medida Provisória Nº 1.591/1997 e sancionou a Lei 9.637/1998, que qualificam as organizações sociais (OS’s). São entidades de pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com atividades sociais dirigidas à saúde e a outras áreas.

A legislação permitiu que recursos públicos possam ser destinados a entidades privadas, para serem geridos por estas, eximindo-as da responsabilidade direta da gestão de equipamentos e da implantação de políticas públicas de interesse social. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar Nº 101/2000) – que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal – estimula essas parcerias.

Em São Paulo, o processo foi facilitado pela sucessão de governos de direita, como os seis últimos mandatos do PSDB no Executivo. O ex-governador José Serra, por exemplo, substituiu a Lei Complementar Nº 846/1998 pela Lei Nº 62/2008, que autoriza a transferência às OS’s do gerenciamento de todos os hospitais públicos paulista, novos e antigos – a lei anterior tratava apenas dos novos. A medida foi tomada sem diálogo com trabalhadores e a sociedade, desconsiderando o controle social da saúde.

As OS’s

As Organizações Socais atuam em áreas típicas do setor público com interesse social, a fim, supostamente, de facilitar parcerias e convênios com todos os níveis de governo (federal, estadual e municipal). A administração outorga a essas entidades determinados benefícios (dotação orçamentária, isenções fiscais e afins) para realização de seus fins, que devem ser necessariamente de interesse da comunidade. É como se gestores públicos, eleitos pelo voto direto, passassem parte da gestão à iniciativa privada.

As OS’s são responsáveis por gerir 37 dos 90 hospitais da rede estadual paulista – número que tende a crescer. No site da Secretaria Estadual de Saúde, porém, não há uma lista com os equipamentos de saúde, hospitais, ambulatórios médicos e de especialidades administrados por OS’s.

A gestão tucana afirma que, por meio dessa parceria, é possível a contratação de pessoal – especialmente nas especialidades médicas – com salários compatíveis ao mercado, de modo mais ágil, sem a necessidade de concursos e licitações. Mas o discurso “oficial” não se sustenta. Em 2013, o Tribunal de Constas do Estado (TCE) fez uma comparação entre hospitais geridos por OS’s e os geridos pelo poder público. Em média, as OS’s pagam três ou quatro vezes mais ao médico do que o governo

As Organizações Sociais, além disso, fazem compras sem licitações, não privilegiando o menor preço, e ainda cobram uma taxa administrativa junto ao governo. Segundo o TCE, em ambas as modalidades de gestão há carência de profissionais (sobretudo médicos especialistas) e há desabastecimento de insumos médicos e farmacêuticos. Apesar das denúncias e dos desmandos, existe uma forte blindagem na impressa, que nada fala sobre as arbitrariedades cometidas contra o que preconiza a Constituição e, em particular, a Política Nacional de Saúde.

Foi o que ocorreu em 2013, ano em que o governo estadual anunciou uma PPP com a empreiteira Construcap por 20 anos, para a construção de três hospitais públicos, em Sorocaba, São José dos Campos e na capital paulistas. O contrato incluía a gestão de serviços não relacionados ao atendimento clínico, como segurança e alimentação. Os serviços médicos ficaram a cargo de organizações sociais. Na época, foi anunciado um investimento R$ 772,2 milhões, que seriam pagos em 30 meses.

A PPP foi assinada em julho de 2014, mas somente em 2018 o Hospital de Sorocaba foi entregue à população – com dois anos de atraso. O Hospital Regional de São José dos Campos, planejado para ser referência em média e alta complexidade, foi inaugurado no mesmo ano apenas com atendimento ambulatorial e enfermaria. Sua gestão será partilhada por duas OS’s – uma voltada a serviços administrativos, logísticas e infraestrutura e a segunda, a serviços médicos.

Já o terceiro hospital – que deveria ser a sede própria do Hospital Pérola Byington, conhecido centro de referência da saúde da mulher – ainda está sob um impasse entre a Prefeitura de São Paulo, o governo estadual e o Ministério Público. O terreno escolhido se situa em uma área de interesse social, no meio da Cracolândia, na região da Luz. No entanto, as obras estão atrasadas há 30 meses.

Crise nos hospitais

O problema avança para outros hospitais, como o Santa Marcelina, regido por uma entidade filantrópica, credenciada como OS de saúde. Maior hospital da Zona Leste e um dos quatro de grande porte da Cidade, a unidade tem cerca de 87% de seus serviços prestados pelo SUS e 13% via saúde complementar, atendendo diariamente a mais de 3 mil pessoas. Desde 2015, o Santa Marcelina passa por dificuldades, tendo seu Pronto-Socorro interditado e fechado em algumas ocasiões.

O HU (Hospital Universitário), na Zona Oeste, tem leitos fechados, médicos pedindo demissão, estudantes sem estrutura para aulas e população sem atendimento, além de operar com apenas 60% dos leitos da terapia intensiva. Em 2017, falta de recursos, fechou o Pronto-Socorro pediátrico e, na sequência, o adulto.

O Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC/Unicamp), apesar do pequeno porte, é a principal referência em atendimento oncológico à população local e realiza mais de 500 atendimentos por ano – de pronto-atendimento até transplantes. Desde 2012, sua verba está congelada (em 16% do orçamento da Unicamp). Mais de 60% de seus recursos são destinados a despesas de pessoal – o que sufoca a capacidade de atendimento e a qualidade de serviços.

A Santa Casa de São Paulo, maior hospital filantrópico da América Latina, mantida por recursos do Ministério da Saúde e do governo estadual, vive uma aguda crise financeira. Seu pronto-socorro chegou a ser fechado por falta de pessoal e de condições mínimas. Em 2017, alegando que o déficit mensal da instituição é de R$ 10 milhões, o provedor Antonio Penteado Mendonça anunciou o cancelamento de contratos e a demissão de funcionários. As ações tiveram impacto direto para os usuários do SUS, que geram uma demanda de mais de 90 mil atendimentos e 2 mil cirurgias por mês.

No Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamsp), há um intenso processo de terceirização, que envolve mais de 20 empresas privadas e serviços de péssima qualidade. Até mesmo a marcação de consultas foi terceirizada – e, conforme os trabalhadores, não funciona. A falta de manutenção em um dos elevadores resultou num acidente fatal, com a morte um funcionário. O Iamsp padece de toda sorte de problemas – das instalações elétricas com fiação exposta e forro de teto desabando à defasagem no salário dos funcionários, passando por atrasos no repasse de verba.

HC

Um dos casos mais dramáticos é o do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), maior complexo hospitalar da América Latina, referência em cirurgias de transplantes e tratamentos de alta complexidade em diversas doenças. O HC é classificado como autarquia do governo paulista, vinculada à Secretaria Estadual da Saúde para fins de coordenação administrativa e associado à Faculdade de Medicina da USP para fins de ensino, pesquisa e prestação de ações e serviços de saúde destinados à comunidade.

Em 2017, seus três maiores centros de atendimentos – o Instituto Central (ICHC), o Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp) e o Instituto do Coração (InCor) – registraram queda de internações. Em parte, foi reflexo da diminuição de procedimento eletivos (não urgentes), que foram suspensos por falta de verbas ou “readequação dos serviços”,

No ICHC e no InCor, o atendimento é “dupla porta”, ou seja, os hospitais atendem pelo SUS, por convênios e particulares. Já o Icesp é 100% SUS e atende apenas a pacientes que foram diagnosticados com câncer e encaminhados pela rede estadual. Em 2018, o InCor noticiou a quitação de dívidas de mais de R$ 464 milhões. Parcerias com instituições privadas, como o Sírio Libanês, tem garantido a pacientes do SUS intervenções cirúrgicas estimadas em mais de R$ 600 mil.

Ainda assim, o complexo hospitalar segue às voltas com quadro de pessoal reduzido e condições insuficientes de trabalho e atendimento. Não foi por acaso que, em 2016, o Sindicato dos Trabalhadores da Saúde liderou uma histórica greve por melhores salários e condições de trabalho. No ano seguinte, o HC, realizou concurso público para preencher 140 vagas, além de formação de cadastro reserva.