Reforma trabalhista sem MP agrava concentração de renda e desigualdade
A não votação da MP 808/17, que estabeleceria novas regras sobre o trabalho intermitente e a jornada de mulheres grávidas em condições insalubres, entre outros pontos aprovados na reforma trabalhista que entrou em vigor no final do ano passado, demonstra que os setores favoráveis à reforma “não farão nenhum tipo de concessão, não estão absolutamente dispostos a negociar o que quer que seja, mesmo salvaguardas muito modestas e moderadas”, avalia o sociólogo Ruy Braga.
Publicado 28/04/2018 13:21
Para ele, a votação da MP, que expirou na última segunda-feira, teria salvaguardado “questões absolutamente mínimas e, nesse sentido, seria importante que tivesse havido a votação da reedição da MP, pensando naturalmente no horizonte imediato, ou seja, naquilo que estamos vivendo neste e no próximo ano”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Braga comenta as implicações dessas medidas e frisa que “a liberdade do contratante de demitir e recontratar imediatamente, por meio de terceirização ou do trabalho intermitente, é devastador para a classe trabalhadora brasileira, quer seja do ponto de vista da garantia da massa salarial da renda, quer seja do ponto de vista das jornadas e das condições de trabalho”. Entre as principais consequências do trabalho intermitente, ele explica que elas giram em torno da renda e da jornada de trabalho. “O trabalho intermitente é um expediente que comprime a renda do trabalhador, tendo em vista a porosidade da jornada de trabalho. Se você contrata alguém por intermédio de trabalho intermitente, você pode fazer com que ele receba apenas as horas trabalhadas e não aquilo que está previsto num contrato normal de trabalho”.
Ruy Braga destaca ainda que a reforma trabalhista aumentará as desigualdades entre os trabalhadores. “Não tenho dúvidas a respeito dos efeitos relativos à concentração de renda e à massa salarial no país. (…) É possível imaginar cenários levando em consideração os dados. Se você avalia os dados do trabalho terceirizado e do trabalho contratado que ocorria até 2015, é possível perceber que o nível salarial do trabalhador terceirizado era de 23% a menos do que o do trabalhador diretamente contratado. Isso nos indica um parâmetro, ou seja, o trabalhador terceirizado e submetido ao trabalho intermitente, provavelmente num período de tempo curto, perceberá seu salário cair em cerca de 20%”, compara. E lamenta: “O que se multiplicou foi o trabalho indecente, que avança sobre o tempo livre, com acréscimo da insegurança, que multiplicou o subemprego e a sub-remuneração, que não paga o mínimo para que as pessoas possam se manter”.
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic). É autor do livro A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012). Recentemente publicou A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).
Confira a entrevista.
Como o senhor avalia o processo político envolvido na não votação da Medida Provisória 808/17?
É importante frisar que o resultado era bastante previsível, porque as forças políticas e sociais, particularmente oriundas do empresariado brasileiro, já haviam aprovado a toque de caixa uma reforma trabalhista absolutamente draconiana, que representa o desmonte da proteção do polo protetivo do trabalho no país, que foi construído a duras penas entre 1930 e 1980. O resultado do desmonte desse polo protetivo, tendo em vista os interesses por detrás, não poderia ser menos exuberante do que a vitória cabal, sem nenhum tipo de concessão.
O que me preocupa mais com a queda da MP são as demissões de efetivos para que o trabalhador possa ser recontratado por intermédio de trabalho intermitente e, também, a autorização para que gestantes trabalhem em locais insalubres. Esses dois pontos mostram de maneira clara para a população em geral, e em especial para os trabalhadores, até onde as forças políticas e sociais por trás da reforma trabalhista estão dispostas a chegar. Ou seja, não farão nenhum tipo de concessão, nenhuma forma de contemporização, não estão absolutamente dispostos a negociar o que quer que seja, mesmo salvaguardas muito modestas e moderadas como essas duas que citei.
É um jogo brutal que está sendo proposto para a classe trabalhadora brasileira. Isto evidentemente aprofunda e não mitiga a insegurança jurídica, porque muitos pontos da reforma trabalhista, e aqueles pontos que serão liberados pela não votação da MP, contradizem a própria Constituição Federal. Ou seja, se existe alguma expectativa de que a reforma ou a não edição da MP possam eventualmente garantir uma maior segurança jurídica para o empregador e o empregado, isso não vai acontecer. Eventualmente pode cair ou diminuir o número de processos na Justiça do Trabalho, mas unicamente por causa do medo e do desalento dos trabalhadores de buscarem seus direitos.
Uma série de elementos revelam tanto a brutalidade da imposição dessas medidas absolutamente deletérias do ponto de vista do trabalho do país, quanto também o anúncio de um futuro tormentoso do ponto de vista jurídico. Temos um cenário crítico e delicado que precisa ser enfrentado de uma maneira contundente pelas forças sociais do trabalho, pelos sindicatos e partidos políticos comprometidos com os trabalhadores.
Teria sido importante ter aprovado a MP, especialmente por conta desses pontos que o senhor mencionou, isto é, o trabalho intermitente e o trabalho de mulheres grávidas em condições insalubres?
Entendo que na impossibilidade imediata de revogação da reforma trabalhista, a MP foi algo que salvaguardava questões absolutamente mínimas e, nesse sentido, seria importante que tivesse havido a votação da reedição da MP, pensando, naturalmente, no horizonte imediato, ou seja, naquilo que estamos vivendo neste e no próximo ano.
Ao contrário do que diz o governo, essa situação de reprodução de altas taxas de desemprego deve perdurar, levando-se em conta o fato de que não há propriamente um robusto aumento do investimento capitalista no país. Então, quando se pensa nessa situação de um longo período de desaquecimento econômico associado à reforma trabalhista, percebemos que medidas imediatas precisam ser tomadas. Por exemplo, a questão da liberdade do contratante de demitir e recontratar imediatamente, por meio de terceirização ou trabalho intermitente, é devastador para a classe trabalhadora brasileira, quer seja do ponto de vista da garantia da massa salarial da renda, quer seja do ponto de vista das jornadas e das condições de trabalho. Então, temos aí um horizonte muito complexo e ao mesmo tempo um desafio enorme de fazer com que esse tipo de iniciativa patronal não progrida, porque isso é devastador para os trabalhadores.
Quais são os problemas de se permitir a contratação de trabalho intermitente? Uma das críticas é que esse tipo de trabalho vai causar uma fragilização no financiamento da Seguridade Social. Esse é o principal problema? O que mais está envolvido nesse tipo de contratação?
A questão fundamental é a renda e a jornada de trabalho. Ou seja, o trabalho intermitente é um expediente que comprime a renda do trabalhador, tendo em vista a porosidade da jornada de trabalho. Se você contrata alguém por intermédio de trabalho intermitente, você pode fazer com que ele receba apenas as horas trabalhadas e não aquilo que está previsto num contrato normal de trabalho. Então, quando o trabalhador está à disposição da empresa sendo um trabalhador subalterno, ele fica à disposição da empresa porque não tem como preencher as suas horas de trabalho.
Um exemplo simples para se entender o trabalho intermitente é o trabalho do jornalista. Se ele for contratado para um trabalho intermitente e a pauta aparecer às 18h da tarde, ele vai trabalhar uma ou duas horas, e não interessa que ele tenha ficado à disposição do jornal o dia todo, ele recebe pelo que trabalhou; esse é o princípio do trabalho intermitente. Isso é devastador do ponto de vista da renda do trabalhador, do ponto de vista da arrecadação, e do que se gera de tributos e de arrecadação para a própria previdência social. Mas também as jornadas de trabalho passam a ser incertas, erráticas, inseguras, o que acrescenta uma enorme carga de insegurança para o trabalhador, especialmente relacionada à quantidade de horas que ele vai trabalhar e o quanto vai receber. Nessa rotina, ele perde completamente o controle sobre a sua jornada, o seu dia e, consequentemente, sobre a sua vida, porque vai viver esperando que a empresa o acione para que ele possa trabalhar algumas horas por dia.
A renda do trabalhador intermitente seria menor do que a de um trabalhador normal?
Não há a menor sombra de dúvida. Todos os estudos que existem sobre trabalho intermitente apontam nessa direção. O trabalhador contratado por intermédio desse tipo de contrato tem um decréscimo da sua renda e é natural que isso aconteça, porque ele não vai trabalhar uma jornada cheia. Ainda que se diga que ele pode empreender e se transformar numa espécie de empreendedor de si, se vendendo para diferentes patrões, em termos práticos não é isso que acontece, porque o trabalhador em geral fica na dependência de um ou poucos patrões e recebendo por aquilo que trabalha. Naturalmente vai haver um rebaixamento da renda.
Qual é a diferença entre o trabalho intermitente e o trabalho de PJ?
As diferenças são pequenas. A principal diferença é que no trabalho intermitente ainda se consegue ascender a um patamar de direitos trabalhistas que não dizem respeito ao PJ, que é um contrato civil de prestação de serviços. Do ponto de vista prático, é muito parecido. O que produz a grande diferença é que, normalmente — mas isso está mudando —, o contrato PJ se concentra em fatias de trabalhadores que são mais qualificados, profissionais, que tiveram a oportunidade de passar pela universidade e ter um diploma, enquanto o trabalho intermitente incide com mais frequência sobre aqueles trabalhadores semiqualificados ou não qualificados, ou seja, no tipo de trabalho que não é profissional, mas é subalterno. No agregado o que se tem hoje é uma aproximação desses dois universos: de um profissional submetido ao pejotismo e de um trabalhador subalterno submetido ao trabalho intermitente. O que se tem é uma espécie de convergência tanto em termos de renda quanto em termos de jornada de trabalho.
Hoje uma parcela dos trabalhadores liberais com formação universitária prefere trabalhar como PJ a trabalhar com carteira assinada, inclusive por conta da tributação. O que isso sinaliza?
Isso já foi assim. Com o aumento do desemprego e do subemprego, as pesquisas têm demonstrado que esse perfil de trabalhador liberal que preferia trabalhar como PJ para não pagar tanto imposto, tem mudado. O valor que propriamente tem prevalecido é a segurança da renda e a segurança do trabalho e, consequentemente, o trabalho formal passa a ser mais atraente.
O trabalho intermitente deve seguir essa mesma tendência ou o trabalhador menos qualificado ficará refém desse tipo de jornada?
O trabalho intermitente é um tipo de trabalho de carteira assinada, mas com uma quantidade menor de direitos, em especial em relação à jornada de trabalho. O trabalho intermitente basicamente bloqueia o acesso a férias e décimo terceiro, e o que se tem é uma situação na qual o trabalhador perde muito e ganha pouco, a não ser a promessa de um emprego que, na verdade, é um subemprego. Então, me parece que se fizermos uma pesquisa entre aqueles que eram diretamente contratados e passaram a ser contratados como trabalhadores intermitentes, eles preferirão uma situação mais estável de jornada de trabalho e previsibilidade em relação à renda.
A Casa Civil está estudando a possibilidade de fazer um decreto específico sobre o trabalho intermitente. Como avalia essa possibilidade?
A grande vantagem para o trabalhador teria sido a de não ter havido uma reforma trabalhista tal como ela foi aprovada. Não estou dizendo que não havia a necessidade de uma reforma trabalhista no país, mas ela precisaria ter tido outras características totalmente opostas às que foram aprovadas. Tudo o que eventualmente servir para diminuir o estrago para o mundo do trabalho, ou seja, tudo que for feito no sentido de mitigar esse estrago, não deixa de ter importância, em particular quando pensamos na situação atual do mercado de trabalho.
Parece que o jogo está sendo jogado, mas não tenho muitas esperanças, porque esse foi o governo que aprovou uma reforma trabalhista atendendo exclusivamente aos interesses do setor patronal. Duvido que esse governo tenha disposição para que de alguma forma se diminua a contratação intermitente.
O senhor tem dito que a reforma trabalhista terá como uma das suas consequências o aumento das desigualdades. Que pontos da reforma sinalizam para isso?
A rigor o que a reforma fez foi incidir sobre três pontos: 1) sobre a questão da negociação, fragilizando os sindicatos; 2) sobre a questão da flexibilidade das jornadas, ou seja, aprofundando as múltiplas possibilidades de uso pelo empregador; e 3) sobre uma legalização e estímulo à multiplicação de formas de contratação. Todos esses elementos aumentam a desigualdade de renda e de acesso a direitos, e a flexibilidade aumenta a insegurança do trabalhador em ter o mínimo de controle e autonomia sobre a sua vida.
Então, quando se pensa no agregado, se percebe que a reforma trabalhista anuncia uma maior concentração de renda e uma menor autonomia sobre o tempo social do trabalhador. Esses são dois eixos nítidos que apontam na direção da desigualdade social. Poucos terão muita liberdade e acesso a rendas acrescidas e muitos não terão liberdade alguma de dispor sobre seu tempo social e perceberão sua renda diminuída. Evidentemente, esses são fatores de aprofundamento da desigualdade social.
O senhor faz alguma estimativa sobre as diferenças que vão existir entre os salários dos diferentes trabalhadores?
Não tenho dúvidas a respeito dos efeitos relativos à concentração de renda e à massa salarial no país. No entanto, é muito difícil fazer estimativas precisas a respeito de quanto a renda irá cair e quanto se concentrará. É possível imaginar cenários levando em consideração os dados. Se você avalia os dados do trabalho terceirizado e do trabalho contratado que ocorria até 2015, é possível perceber que o nível salarial do trabalhador terceirizado era 23% a menos do que o do trabalhador diretamente contratado. Isso nos indica um parâmetro, ou seja, o trabalhador terceirizado e submetido ao trabalho intermitente, provavelmente num período de tempo curto, perceberá seu salário cair em cerca de 20%.
Em relação à jornada de trabalho, é notório que a jornada do trabalhador terceirizado é maior do que a do trabalhador diretamente contratado. Consequentemente, o que se prevê é que a jornada de trabalho vá se dilatar para o trabalhador intermitente e para o terceirizado nessa situação em que se pode terceirizar todas as funções. Esses são os indícios que podemos perceber para antever um futuro sombrio para os trabalhadores no país.
Quais o senhor diria que são os perfis dos trabalhadores de hoje? O trabalhador de hoje mudou em relação ao trabalhador de três décadas atrás? Ele prefere trabalhar de um modo mais autônomo, flexível, ou num formato tradicional?
Do ponto de vista morfológico, a massa de trabalhadores que ingressou no mercado de trabalho na última década e meia mudou bastante. Comparando com os anos 1990, hoje há uma massa predominantemente feminina, muito mais jovem, concentrada na fatia dos 16 aos 30 anos, uma massa mais negra e mestiça e muito mais orientada para o setor de serviços. Ao mesmo tempo, é uma massa de trabalho que recebe salários menores do que aqueles que eram oferecidos nos anos 80 e 90. Então é um perfil bastante distinto do perfil dos anos 80 e 90, onde havia predominância da indústria na contratação.
Do ponto de vista da segurança do emprego, ainda que as taxas de rotatividade no Brasil sempre tenham sido altas, há um acréscimo de rotatividade a partir dos anos 2000. O tempo que um trabalhador fica numa empresa diminuiu se comparado aos anos 1980. Isso mostra que a insegurança também aumentou bastante. No agregado, quando se vai a campo conversar com os trabalhadores, o que me parece nítido é que eles desejam o que poderíamos chamar de um trabalho decente, ou seja, um trabalho com uma remuneração capaz de garantir a sua reprodução e da sua família, em condições protegidas, que não sejam insalubres, com acesso a direitos como férias e décimo terceiro, com mecanismos de financiamento da previdência social e aposentadoria, e um trabalho numa jornada que permita usufruir de um tempo livre com sua família e amigos, que tenha lazer e possa ter tempo para outras atividades.
É exatamente isso que não temos hoje; esse tipo de trabalho não percebemos no mercado brasileiro. O que se multiplicou foi o trabalho indecente, que avança sobre o tempo livre, com acréscimo da insegurança, que multiplicou o subemprego e a sub-remuneração, que não paga o mínimo para que as pessoas possam se manter, que afasta o trabalhador dos seus direitos, que impossibilita o acesso a férias e décimo terceiro. É uma informalidade mais degradada do que no passado, pois se organiza em torno de um aumento da competição entre trabalhadores que foram desempregados e que hoje encontram-se subempregados. É um mundo devastador para a utopia do trabalho.
No cenário de crise que se vive hoje no país, politicamente, como é possível enfrentar essa reforma?
É difícil prever. Não arriscaria nenhuma previsão com uma margem mínima de acerto. Tudo depende de uma combinação complexa entre solução progressista para o cenário eleitoral, que está nebuloso, uma mobilização dos trabalhadores, dos sindicatos e dos movimentos sociais, e uma solução para a crise econômica brasileira que está no horizonte. Consequentemente, é muito difícil prever o que vai acontecer em termos de reversão dessas tendências que verificamos até o momento. Parece-me que a reforma trabalhista bem como a terceirização e o trabalho intermitente são propostas que vieram para ficar. Não vejo, num horizonte de curto prazo, uma reversão muito drástica desse cenário.
Na próxima terça-feira (1º) se celebra o dia do trabalhador. Que tipo de reflexão o senhor está fazendo sobre essa data simbólica, na atual conjuntura?
O 1º de maio celebra a utopia do mundo do trabalho no mundo todo e em especial no Brasil, e essa utopia está associada ao acesso a emprego, salário, direitos, proteção trabalhista, ou seja, a uma vida decente por meio do trabalho. Tendo em vista esse parâmetro, não temos nada a celebrar do ponto de vista do trabalhador. O que se tem hoje é um ataque a essa utopia e ao polo protetivo, a desestruturação do tecido social que une os trabalhadores e os setores subalternos. O que temos é um desmonte desse horizonte, que mercantiliza o trabalho e destrói seu valor de uso. Não temos nada a celebrar do ano que passou.