Marx e o “socialismo”

 Karl Marx não deixou nenhuma obra dedicada especificamente à análise do socialismo. No entanto, no conjunto de seus trabalhos encontramos elementos teóricos importantes para a sua análise.

Por Luciano Cavini Martorano

Marx

Nessa breve nota, nos limitaremos a destacar alguns pontos de referência central apresentados em dois de seus textos: a chamada Crítica do programa de Gotha, de 1875 (originalmente intitulado “Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão”); e a A guerra civil em França, escrito entre abril e maio de 1871. Esses trabalhos tiveram enorme influência nas primeiras tentativas de transição socialista do século XX, e, em vários de seus aspectos, ainda são o ponto de partida para os debates sobre o socialismo no século XXI.

“Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal; depois de o trabalho ter se tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de, com o desenvolvimento omnilateral dos indivíduos, as suas forças produtivas terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza cooperativa jorrarem em abundância – só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira : De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!” (1)
 

A primeira coisa a se observar nessa passagem é a referência a uma “fase superior da sociedade comunista”, o que pressupõe a existência de uma fase interior da mesma sociedade que, porém, não é apresentada como sendo o socialismo. Foi Lenin, posteriormente, que indicou esse processo de transformação com os termos socialismo para a primeira fase, e comunismo para a segunda fase. Abandonando a ideia de fases sucessivas e intercaladas, o líder bolchevique contribuiu, de alguma maneira, para uma compreensão da passagem do capitalismo ao comunismo como sendo um processo único de transição mais dinâmico e dialético. Por outro lado, essa terminologia pode ensejar a discussão sobre as características próprias de cada uma delas e sobre a natureza de sua relação: socialismo e comunismo seriam concebidos como modos de produção autônomos ou não? Se o socialismo é a passagem do modo de produção capitalista a um novo modo de produção, não seria melhor designá-lo como sendo uma formação social específica e não um modo de produção com estrutura própria e mecanismos de reprodução específicos? Ou, em outros termos, quais seriam os elementos fundamentais da transição, para se evitar o risco da banalização do termo? Por fim, a natureza da relação entre o socialismo e o comunismo é conflituosa, com a continuação da luta de classes, ou harmoniosa, pressupondo mera diferença de grau, mas não de qualidade?

Ainda sobre a citação de Marx feita acima, já se observou a necessidade de se levar em conta a ordem das questões enunciadas, envolvendo três aspectos fundamentais da transformação econômica:

a) Em primeiro lugar, o fim da divisão entre o trabalho físico e o trabalho mental, vista como característica fundamental das relações de produção capitalistas e, portanto, incompatíveis com o avanço da transição socialista. Sobre a importância desse problema, basta lembrar aqui as enormes dificuldades surgidas na antiga União Soviética, China e outros países no século passado: a permanência da divisão capitalista do trabalho provoca o surgimento de novos grupos ou classes sociais em condições de se apropriarem de parte do trabalho excedente em benefício próprio. O que, no limite, representa a manutenção da exploração capitalista sob a forma da propriedade estatal;

b) Em segundo lugar, no socialismo, o trabalho continua sendo meio de subsistência, sendo remunerado por uma mesma medida e desconsiderando as diferenças objetivas e subjetivas existentes entre os trabalhadores. Daí a permanência, assinalada por Marx, do direito burguês. Desse modo, o trabalho não deixa se ser uma coerção, pois aquele que não trabalhar, não terá o que comer e como se manter – como lembrou novamente Lenin mais tarde.

c) Em terceiro lugar, o avanço das forças produtivas está associado ao desenvolvimento multilateral dos trabalhadores, e não é apresentado como determinante único e independente. Ou seja, não é um objetivo em si mesmo separado das condições políticas, econômicas, sociais e culturais. Assim, não pode ser concebido separado das demais dimensões da totalidade social.

 

É nessa perspectiva totalizante, e não reducionista, que Marx acrescenta:

“Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma a outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.” (2)
 

Isso significa que a transição só pode ocorrer com a socialização da economia e a socialização da política como um processo único, indissolúvel e simultâneo – ainda que com ritmos diferentes -, como já indicaram vários comentadores. Lembrando que isso pressupõe um acontecimento inicial indispensável: a revolução política dos trabalhadores visando a conquista do poder de Estado, não para reformar o Estado burguês, e sim para substituí-lo radicalmente pelo novo Estado socialista.

Quais seriam algumas das características desse novo Estado? Para responder a isso, recorremos à famosa análise de Marx sobre a Comuna de Paris de 1871, apresentada em A guerra civil em França. Logo de início, vale a pena registrar a observação do próprio autor ao afirmar que “a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria do Estado já pronto e fazê-la funcionar para seus próprios objetivos.” (3)  Observação essa que motivou uma retificação do próprio Manifesto do Partido Comunista sobre a questão do Estado. Ou seja, seria uma perigosa ilusão pensar que o Estado burguês possa promover qualquer medida de caráter socialista, pois o seu papel é garantir as condições de reprodução do capitalismo.

Seguindo as indicações de Marx, podemos notar que o Estado socialista, a exemplo do que fez a Comuna de Paris, negaria o acesso ao seu aparelho às classes dominantes, se proclamando abertamente como um Estado operário. Ou seja, ele não ocultaria o seu caráter de classe, como faz o Estado burguês que procura se apresentar como representante do povo-nação.

No lugar do critério da competência, o novo Estado adotaria o novo critério da representação política de classe no trabalho de recrutamento e de promoção dos seus funcionários. E essa representação teria que ser verificada na prática pelo empenho real desses funcionários no processo de construção do socialismo. Não bastaria, portanto, meras declarações formais de fidelidade à revolução; no lugar do discurso, se adotaria a prática como critério da verdade.

Mesmo sendo um Estado proletário, ele estaria submetido ao constante controle popular, que se daria basicamente sob três formas:

1) Eleição dos funcionários pelos trabalhadores;

2) mandato imperativo, criando um novo tipo de responsabilidade funcional, voltada para baixo e não para cima – ou seja, não para o superior hierárquico, mas para os legítimos portadores e executores dos interesses coletivos;

3) aplicação do princípio da revogabilidade para os burocratas que perdessem a confiança dos seus eleitores.

 

Sem esquecer de outras medidas práticas essenciais aprovadas pela Comuna de Paris, como o fim do exército profissional, e sua substituição pelos trabalhadores em armas; no lugar da pretensa separação entre os três poderes (executivo, legislativo e judiciário), a sua fusão em um mesmo organismo; e o fim dos privilégios materiais dos funcionários com a adoção do salário operário, buscando-se eliminar o carreirismo e a disputa por cargos.

Sem o propósito de concluir, mas para estimular o debate atual, sabemos hoje que várias dessas medidas não foram realmente aplicadas nas primeiras tentativas de transição socialista do século XX. Isso significa que elas devam ser descartadas como utopia irrealizável? Não. A nossa ver elas ainda podem orientar o debate sobre o socialismo no século XXI, sem esquecer dos novos desafios da ciência, da economia, da política, da administração, etc. Pois, o próprio fato de que não tenham sido implementadas pode ser interpretado não como sua inviabilidade congênita, mas sim como o indicador da derrota dos trabalhadores na transição. Se o socialismo foi derrotado e o capitalismo restaurado, tanto na economia, como na política, no processo de luta de classes que atravessa toda a transição e que não tem um vencedor pré-definido, é compreensível a restauração das próprias formas econômicas e políticas capitalistas. Se isso é plausível, podemos deduzir que esse conjunto de medidas ainda não foi testado historicamente em toda a sua extensão e plenitude, e que novas experiências de luta poderão ajudar a esclarecer melhor esse problema crucial para o socialismo nesse século.

1.Crítica do programa de Gotha, in https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm .
Acesso em 03.05.2018.

2. Idem, ibidem.

3. A guerra civil em França, in: https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/guerra_civil/index.htm Acesso em 03.05.2018.