Com direitos políticos cassados, Doria coleciona decisões duvidosas

Há pouco menos de dois anos, o publicitário João Agripino da Costa Doria Júnior foi eleito prefeito de São Paulo sob o slogan "acelera, São Paulo", apresentando-se com o apelido de "João trabalhador" e dizendo-se "não-político". Em diversas oportunidades, durante a campanha e depois de eleito, prometeu que concluiria o mandato de prefeito, mas resolveu renunciar à cidade com apenas 15 meses de gestão para concorrer ao cargo de governador.

Joao Doria - Rovena Rosa/Agência Brasil

Se valeu quebrar a promessa de administrar o município por quatro anos para dar continuidade a seu projeto político no governo estadual, o objetivo de "pular" diretamente para o novo cargo hoje parece mais distante: na última sexta-feira (24), a Justiça cassou os direitos políticos de Dória por ter praticado publicidade irregular do programa SP Cidade Linda, "demonstrando desvirtuamento da finalidade da propaganda oficial". Cabe recurso e sua candidatura se mantém, sub judice.

Mas não são apenas a excessiva promoção pessoal e a publicidade agressiva –e, segundo o entendimento presente da Justiça, ilegal– que caracterizam as idiossincrasias de um gestor, realmente, diferente, mas não necessariamente para melhor.

Metas esquecidas

Enquanto esteve à frente da Prefeitura, Doria cumpriu menos que 10% das metas estabelecidas por seu próprio plano de governo, como mostra um levantamento da Rede Nossa São Paulo, federação de organizações da sociedade civil que reúne mais de 700 entidades com o objetivo de discutir a as questões da maior cidade da América do Sul.

Américo Sampaio, gestor de projetos na Rede Nossa São Paulo, analisa que o discurso do não-político é, na verdade, um discurso que faz parte de um projeto de poder individual, que não pautou as desigualdades sociais e econômicas da sociedade.

"É um projeto pró-mercado, que valoriza e estimula melhorias e certas vantagens para o setor empresarial, que ele representa. No entanto, na outra ponta, quem saiu penalizado na gestão João Doria foram as classes populares, a parcela mais pobre da população, que mais necessita de políticas sociais, como habitação, saúde pública, escola, creche etc."

Mas teve desfile de fantasias. Logo no primeiro dia de sua gestão, o prefeito se vestiu de gari para sinalizar que priorizaria a zeladoria da cidade –ele ainda faria o mesmo vestindo-se de agente de trânsito, trabalhador da secretaria de Serviços Urbanos, pedreiro e até de cadeirante, antes de desistir das ações midiáticas após sofrer críticas pela demagogia.

O programa de limpeza Cidade Linda fez sucesso nas redes sociais do prefeito, mas as ruas dos bairros seguiram sujas, e as praças e os parques, com mato alto.

Na Educação, o ex-prefeito fechou espaços como brinquedotecas e salas de leitura nas escolas municipais. Apesar de ter aberto 27 mil vagas em creches, o governo Dória ficou distante de atingir a promessa de 65 mil novas vagas feita durante a campanha.

O tucano também cortou dois programas de incentivo à cultura nos Centros Educacionais Unificados (CEUs), além de encerrar o funcionamento ininterrupto da única biblioteca pública com atividade nas madrugadas, a Mário de Andrade. Ainda na área da Cultura, o ex-prefeito decidiu concentrar no Autódromo de Interlagos as principais atrações da Virada Cultural, evento que tinha em seu conceito a ocupação e a ressignificação do espaço urbano público. A decisão de levar os shows para um local fechado, distante e pouco atendido pelo transporte público esvaziou a edição de 2017 do que era, até então, o principal evento cultural da cidade.

No transporte, na saúde…

A Mobilidade Urbana também é um dos pontos criticados por especialistas na gestão tucana. Dória e o atual candidato a presidente de seu partido, o ex-governador Geraldo Alckmin, decidiram pelo congelamento da tarifa básica dos transportes coletivos no valor de R$ 3,80 em 2017, mas anunciaram reajustes acima da inflação para a integração e sobre os bilhetes temporais, além de extinguirem a modalidade mensal do bilhete, uma das prioridades da gestão anterior, de Fernando Haddad (PT). O congelamento da tarifa base não se manteve em 2018.

O passe livre para estudantes de baixa renda também sofreu restrições em tempo e número de viagens, impedindo atividades extracurriculares de formação, afirma Diego Soares, integrante do Movimento Passe Livre. "A gestão do Dória foi um retrocesso do ponto de vista dos movimentos sociais e dos direitos não só dos estudantes, mas de todos os usuários do transporte público", afirma.

Na Saúde, a administração Dória gastou quase R$ 805 mil com publicidade para anunciar o fim da fila de exames, uma de suas principais promessas de campanha, por meio do programa Corujão da Saúde.

Segundo a fiscalização do TCM, 112.260 pessoas foram retiradas da fila sem realizar os exames. Elas correspondem a 20% das 588.320 solicitações de exame. Outras 142.818 pessoas – cerca de 30% dos restantes – não compareceram ao agendamento no dia marcado. E não há informações se foram reagendados os procedimentos. Além disso, o número de consultas de retorno não condiz com o aumento dos exames. A quantidade mensal de consultas médicas realizadas entre os meses de janeiro e maio de 2017, período de execução do programa, foi apenas 5% superior à média mensal de outubro a dezembro de 2016.

A impulsividade foi uma marca nesses 15 meses. O episódio da "farinata" foi o mais notório. Sem consultar secretários, Dória anunciou a ideia de distribuir um composto produzido a partir de alimentos próximos ao vencimento para alimentar famílias pobres e substituir a merenda das escolas públicas. Diante da repercussão negativa, o ex-prefeito recuou da proposta.

Sampaio destaca que esses episódios integram um cenário promovido pelo próprio Dória, no qual setores do empresariado, e seus interesses diretos, ganharam espaço na administração pública. Neste sentido, o ex-prefeito tentou emplacar um plano de privatizações de patrimônios públicos da cidade, como o Autódromo de Interlagos e o Estádio do Pacaembu.

O tucano também tentou aprovar uma reforma da previdência municipal, conhecida como Sampaprev, que, por pressão dos servidores municipais, foi derrubada. O modelo previdenciário, proposto por Dória, teria sido encomendado pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A entidade doou quase R$ 500 milhões para a prefeitura em setembro de 2017.

"O central da gestão João Dória é que, na verdade, ele trouxe para a agenda da cidade um conjunto de pautas que não eram de demanda da população paulistana, mas ele fez isso, a que tudo indica agora, muito para se promover como um possível candidato à presidência da República", analisa Sampaio.

O gestor de projetos afirma que não foi bem-sucedida a tentativa do ex-prefeito de passar a imagem de um administrador público municipal capaz de resolver problemas nacionais. A popularidade do prefeito caiu ao longo do primeiro ano de gestão, o que coincidiu com sua série de viagens nacionais e internacionais para alavancar o sonho de disputar a presidência.

Para Sampaio, Dória não conseguiu fazer uma articulação política com substância, mesmo dentro do PSDB, e acabou "ganhando um prêmio de consolação saindo candidato ao governo do estado".

"O que vai chamar a atenção agora é que ele leva a ficha de ser um prefeito que abandonou a cidade, vai ser candidato a governador e não vai ter nada para apresentar durante a campanha de feitos concretos e de qualidade para a cidade de São Paulo", afirma.

Atropelos e abusos

Sampaio destaca ainda que conselhos populares foram dissolvidos na cidade durante a gestão Dória e que os investimentos públicos foram reduzidos. Além disso, o ex-prefeito extinguiu as secretarias de Igualdade Racial e Políticas Para Mulheres. As alterações só poderiam acontecer por meio de lei votada na Câmara Municipal, mas o tucano fez a mudança por decreto, em uma só "canetada". A medida foi considerada inconstitucional pela Justiça e foi revertida.

Ainda assim, Sampaio analisa que esses retrocessos fazem parte de um projeto de mercado danoso a longo prazo. "A gente teve problemas de transparência, retrocessos no que diz respeito à participação popular, fim de políticas públicas exitosas como, por exemplo, a política de Braços Abertos, na região da Cracolândia".

A região localizada no bairro da Luz, centro da capital paulista, onde concentram-se traficantes e dependentes químicos, passou por diversas operações policiais violentas durante a gestão Dória. Em maio de 2017, por exemplo, a prefeitura pediu a demolição de imóveis na Cracolândia, onde não apenas usuários de drogas, mas outras pessoas em situação de vulnerabilidade, como moradores em situação de rua, também foram ameaçados pela força policial.

Daniel Carvalho, ativista do movimento A Craco Resiste, argumenta que a violência se tornou uma constante no território sendo marcada pela arbitrariedade de um esforço de higienização em prol da especulação imobiliária. Exemplos disso são os projetos de construção do Conjunto Habitacional Júlio Prestes e o de concessão do Terminal Princesa Isabel para a implantação de um shopping.

Carvalho conta que A Craco Resiste surgiu em dezembro de 2016 na perspectiva de que fosse haver uma ação violenta na região com a posse de Dória, tendo em vista o discurso agressivo que ele já utilizava na campanha. "Eu vou acabar com a Cracolândia", por exemplo, foi uma das frases mais ditas pelo ex-prefeito.

O ativista afirma que o resultado foi um desmantelamento de programas assistenciais e sociais que seguiam a linha da redução de danos na tentativa de aprovar a política de internações compulsórias.

"Tinham os hotéis sociais, eles fecharam vários. A Justiça disse que não podia desarticular dessa maneira, então alguns ainda continuam funcionando, mas as pessoas estão sofrendo. O processo de gentrificação, de expulsão da população pobre da região da Luz continua acontecendo. Duas ou três vezes por semana tem uma grande ação no território com uso de bomba de gás, bala de borracha, diversas pessoas sendo presas".

Ao deixar a prefeitura para concorrer ao governo estadual, Dória atingiu o nível mais alto de reprovação a sua gestão na capital paulista, conforme levantamento do Datafolha. Embora lidere a disputa, o ex-prefeito é o candidato com maior rejeição entre os eleitores. Segundo a pesquisa, 32% do eleitorado paulista não votaria em Dória de jeito nenhum; 49% das pessoas afirmaram que jamais votariam no candidato apoiado por Alckmin.

Procurada por telefone e mensagem de texto pelo Brasil de Fato, a assessoria da campanha de João Dória foi informada a respeito dos questionamentos desta reportagem, mas não respondeu até sua publicação.