David Harvey, um marxista pop star

O geógrafo britânico lança novo livro no Brasil e arrebata legiões de jovens em encontros destinados a analisar a atualidade à luz de Karl Marx

Por Eduardo Nunomura

David Harvey - Divulgação

Pergunte a David Harvey se ele se considera um pop star marxista e ele negará. Isso não o impede de dizer que se orgulha de manter vivo o pensamento do filósofo alemão. Um dos cientistas sociais mais citados no mundo, o geógrafo britânico de 82 anos é capaz de lotar auditórios de universidades, como ocorreu em São Paulo (USP) e nas Federais do Ceará e do Maranhão, há duas semanas.

Harvey traz em seu novo livro, A Loucura da Razão Econômica, Marx e o Capital no Século XXI (Boitempo), uma espécie de síntese de suas cinco décadas de estudos econômicos à luz das obras de Karl Marx. Relaciona questões atuais a partir de leitura original sobre o legado do alemão, sobretudo nos volumes de O Capital. Na sua concepção, o mundo vive um estado de loucura por conta da financeirização crescente do capital, que acaba por alienar a população. Isso a tem tornado incapaz de enxergar a real origem dos problemas, fermentando uma raiva que se volta contra a classe política.

Parte dessa desorientação se deve ao poder que o capital exerce sobre a sociedade, controlando o discurso. “A mídia especializou-se em dizer que o problema não é o capital. Então culpa os negros, os imigrantes, os refugiados. Culpa todos, mas nunca a questão central das contradições do capital”, diz. Em sua passagem pelo Brasil, o intelectual falou com exclusividade a CartaCapital.

CartaCapital: Em sua palestra na USP, o senhor disse que as políticas brasileira e americana competem em termos de insanidade. Como vê o Brasil hoje?

David Harvey: Minha primeira visita ao Brasil foi em 1972 ou 1973, durante a ditadura militar, e vim outras vezes para cá. Para mim, parece que o país nunca se estabeleceu e, de fato, há sempre forças em disputa. A democratização chegou quando havia uma pressão da economia mundial pela sua liberalização e, desde então, o País tem procurado encontrar um equilíbrio. Fico impressionado como os brasileiros rapidamente sentem que tudo vai piorar. Quando estive aqui em 2015, a economia ia bem, todo mundo parecia feliz, havia muito dinheiro em circulação, considerando que a economia global tinha passado por uma grande crise, e o Brasil se saiu muito bem. E, agora que a economia regrediu, a tendência é que a política desmorone. E, como não há uma tradição de manter uma alternância de poder entre esquerda e direita, as coisas acabam se radicalizando. Os Estados Unidos têm uma história diferente. Os dois partidos, de esquerda ou de direita, na maioria das vezes atuando juntos, dependem do poder dos financistas. Houve uma coordenação direta entre a crise de 2008 e a chegada de Donald Trump ao poder, e da loucura que está associada, que é uma forma de mascarar a continuidade do projeto neoliberal com uma guia autoritária.

CC: O senhor afirma que a loucura da razão econômica tem provocado uma loucura paralela na política. E de raiva, no caso dos protestos brasileiros que começaram em 2013. Por que essa raiva se volta contra a política?

DH: Por que os políticos pegam um momento bom e o transformam em um ruim? Acredito que o Brasil estava num momento bom. Quando chega uma fase ruim, não sabemos o que fazer, o que nos conduz ao que chamo de alienação. A população fica alienada das perspectivas de emprego. Há descontentamento com a questão do transporte, a qualidade da educação e da saúde, os serviços públicos, que parecem não estar funcionando bem. As pessoas deixam de gostar de sua vida cotidiana. Veem as classes mais altas se saindo muito bem, e elas não. A alienação torna-se real, voltando-se contra o processo político. As promessas feitas pelo PT ou por outro partido não aconteceram como elas esperavam, e a alienação alastra-se. Quem está alienado se comporta de forma errática. Há um movimento entre ficar passivo e agressivo, “eu não tenho nada a ver com isso”, e a raiva vai para as ruas. Na atual situação global, é provável que haja mais alienação do que já houve no passado. A mídia especializou-se em dizer que o problema não é o capital, que é algo que você não pode culpar. Então culpa os negros, os imigrantes, os refugiados. Culpa todos, mas nunca a questão central das contradições do capital.

CC: E por que essa raiva coletiva não chega a balançar o capitalismo?

DH: Acredito que balançou o capitalismo. O que não conseguiu é balançar a classe capitalista. Até 2007, as classes capitalistas iam muito bem. Havia bilionários brotando por todos os lados, incluindo no Brasil, México e Índia. E nos Estados Unidos as crises nunca eram severas. Usavam as crises para enriquecer eles mesmos à custa dos outros povos. O aumento da riqueza nunca teve a ver com o aumento de produção. O capitalismo não se tem saído bem no lado da produção, tem se tornado mais poderoso pela especulação financeira.

CC: O senhor critica os marxistas que entendem que o capital não seria mais do que dinheiro sendo usado para gerar mais dinheiro por qualquer meio possível. Ou seja, em vez de ver o capital como valor em movimento, seria o dinheiro em movimento. Por que acha que eles erram?

DH: Marx dividiu o sistema capitalista de uma forma complicada. Ele utilizava atalhos para dizer que o que estamos vendo aqui é o dinheiro sendo usado para ganhar mais dinheiro, a partir apenas de aspectos monetários, e analisava a circulação do capital. Mas aí via diferenças claras na circulação do dinheiro e na circulação de produtos. Algumas circulações eram mais privilegiadas do que outras. Quando vejo a totalidade, preciso dizer que não se pode privilegiar uma parte, porque todas são fundamentos das outras. Se você insiste com a ideia de que, simplesmente, dinheiro gera mais dinheiro, então poderia dizer que a especulação e os contratos cambiais são atividades produtivas. Até os anos 1970, a atividade bancária não era considerada parte da renda nacional. Era só um serviço que lubrificava a economia real. Como seria a renda nacional dos americanos hoje se tirasse tudo o que vem dos serviços financeiros? Os Estados Unidos seriam considerados pobres e a China se pareceria com uma gigante econômica.

CC: O sistema financeiro tornou-se uma força incontrolável e insaciável?

DH: Eu coletei algumas frases dos bancos centrais, recentemente, e algumas diziam “quando Adam Smith estava escrevendo sobre o sistema bancário, ele assumia que seria algo para ajudar produtores e consumidores”. E estavam lá para ajudar os interesses maiores. Agora chegamos numa situação em que nós servimos ao sistema financeiro, em vez de ele servir a nós. Podemos ver isso na resposta à crise de 2007 e 2008. Nos Estados Unidos, se o governo tivesse atuado para resgatar as dívidas que os proprietários de imóveis tinham em financiamentos, teríamos tido uma solução completamente diferente, que foi “ok, deixe eles falirem, deixe a vida deles ser destruída, só vamos salvar os bancos”. Isso aconteceu na Grécia também. Quem foram os credores da dívida grega? Os bancos da França e da Alemanha. Se fossem realmente capitalistas, deveriam ter assumido o custo de uma má decisão. Mas o que fizeram foi se tornar protetores do sistema financeiro. Esse é o mundo em que vivemos, e é isso que está por trás do neoliberalismo, do que faz o FMI em termos de ajustes econômicos no qual as pessoas pagam a conta e os bancos são resgatados.

CC: Como podemos combater isso?

DH: Grande parte da economia estava nas mãos do setor público até os anos 1960 e 1970. Educação, saúde e muito da habitação. O que vimos na investida neoliberal foi a privatização disso tudo. Toda a habitação social foi vendida na Grã-Bretanha por Margaret Thatcher, virou um mercado especulativo. A mercantilização cresceu nas economias capitalistas nos últimos 30 ou 40 anos. Podemos ter políticas públicas agora que querem mudar essa trajetória. Alguns movimentos sociais estão tentando criar meios de cair fora desse sistema, como, por exemplo, criando um mercado habitacional em que as pessoas não tenham de pagar os preços praticados pelo setor privado.

CC: Marx investigou o capital fixo como valor, mas não o conhecimento propriamente. Hoje, o conhecimento tornou-se uma forma de valor que circula como capital. O senhor acha que ele subestimou o capital cognitivo?

DH: Bem, me diga uma época em que o capital não era cognitivo. Nós agora temos a ideia de que algo diferente está acontecendo, embora não tenhamos ideia do que seja. Mas em algum momento decidimos que o conhecimento tinha valor. Como eu concebo, o conhecimento tem valor zero e devia ser um produto gratuito. O que aconteceu é que o conhecimento ficou próximo dos direitos intelectuais de propriedade, e para isso devemos pagar. Marx dizia claramente em O Capital que há coisas que não têm valor, nem preço. Ele fala de consciência, honra, e pode ter falado de reputação, conhecimento. Marx diz que a inteligência do trabalho foi incorporada à tecnologia da máquina. Foi o que fez a Revolução Industrial. A ideia é a de que vivemos uma situação diferente, porque vemos empresas como o Google. Mas isso não faz sentido. Estou bastante preocupado com a forma como o conhecimento agora tem um preço, mesmo que não tenha um valor.

CC: O senhor compara o trabalho digital atual com práticas de subcontratação que surgiram nos primórdios da indústria têxtil, no século XVIII. Essa prática, hoje realidade, veio para ficar?

DH: Há diferentes práticas e processos de trabalho. O capitalismo provou ser extremamente sofisticado. Ele diz assim: “Se um lado se torna muito politizado, como a fábrica e o trabalho, se o poder chega nas mãos dos trabalhadores, temos de encontrar uma forma de desempoderar o trabalhador. Mas como vamos fazer isso? Podemos fazer isso com a flexibilização da virtualização, alterando contratos, com mudanças na mercantilização”. Muito da inovação do capitalismo tem a ver com formas de combater as lutas dos trabalhadores. O capitalismo percebeu que havia muitas lutas e não só nos sistemas de produção. Essa foi a grande transformação do fordismo para o neoliberalismo. E, para atingir diferentes tipos de organização trabalhista, introduziu muito mais precariedade, informalidade, subcontratações, o que torna mais difícil a organização dos trabalhadores.

CC: Acredita que as crises capitalistas podem ser fabricadas artificialmente?

DH: Sim, e houve ocasiões em que isso ocorreu. Nos anos 1970, quando o capital enfrentou greves, os trabalhadores estavam muito fortes. Eles queriam derrubar o capital suprimindo seu trabalho, e o capital quis derrubar os trabalhadores suprimindo o capital. O capitalismo extraiu o capital nos anos 1970 e foi doloroso para todos. O dinheiro agiu para controlar um movimento global dos trabalhadores.

CC: O senhor menciona diferentes lutas anticapitalistas nos níveis de produção, realização e distribuição. Mas elas estão esparsas. Seria possível uni-las?

DH: Houve um tempo em que os sindicatos tinham um papel em prover fundos, organizar e financiar a construção das moradias dos trabalhadores. Não há razão para que esse tipo de parceria não ocorra. É uma forma de criar casas acessíveis para as populações carentes. Temos 60 mil moradores de rua em Nova York e um terço das crianças que nascem na cidade está na pobreza. E muito tem de ser feito porque o mercado, o único que existe, não constrói casas para quem precisa. Então, você precisa tirar a habitação social do processo de mercantilização. Já há ações nesse sentido. Foi o que aconteceu no Brasil com o programa Minha Casa Minha Vida, coordenado com o movimento dos trabalhadores.

CC: Como é possível atacar as fraquezas do sistema capitalista e, antes disso, quais são elas nos dias de hoje?

DH: A principal fraqueza é o que aparenta ser a maior força, a instabilidade do sistema financeiro. Se olharmos para trás, vemos crises após crises depois dos anos 1970. Crises em movimento tornando-se mais profundas e duras, e o que está se desdobrando é uma possível crise financeira na China. Eles já produziram habitações, já urbanizaram as cidades. Vemos crises que acontecem em um lugar e não atingem outro. Em 1997 e 1998, houve a grande crise no Leste Asiático e os Estados Unidos disseram que não tinham nada a ver com ela. Aconteceu o mesmo com a Argentina. “Olha só esses argentinos idiotas”, disseram. Com os gregos também. O sistema move as crises pelos países. Quando ela vai se tornar uma crise global? Mesmo em 2007 e 2008 ela não se tornou. Houve partes em que a economia se recuperou rapidamente, como no Brasil, porque vocês estavam conectados com o comércio chinês. A China recuperou-se rapidamente e estabilizou a economia mundial. O que não deixa de ser uma ironia: o comunismo estabilizou a economia global ao criar uma demanda por matéria-prima. Vocês enviaram soja, ferro e outros minérios. E isso fez os brasileiros se recuperarem.

CC: O senhor afirma que a esquerda precisa de uma dose de autocrítica e que deveríamos estar mais preocupados com o resultado do que com a implementação de ideologias. Como?

DH: A esquerda tem de olhar e ir além das questões dogmáticas, das fixações ideológicas. Muitas delas derivaram de situações de muitos anos atrás, e qualquer bom materialista deve olhar a situação atual e imaginar as saídas. É diferente de dizer que minha análise está correta e a do outro está errada. Temos múltiplas saídas, múltiplas formas de organização, e precisamos tentar o que pode dar certo. Encontro muitas pessoas que estão fazendo e me perguntam se elas estão no caminho certo. Respondo: “Eu não sei”. Acho que nenhum de nós sabe. Temos de tentar.