A economia sob Bolsonaro: mais desigualdade e tensão social

“O mais liberal dos programas”. Assim a economista Esther Dweck classifica a plataforma do candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL). Ela analisa as principais propostas econômicas do militar da reserva e resume: “É um perigo, é a completa destruição do Estado”. E qual seria o impacto disso na vida dos brasileiros? Para a professora da UFRJ, o resultado deve ser aumento da desigualdade e, consequentemente, das tensões sociais, que seriam enfrentadas com autoritarismo.

Por Joana Rozowykwiat

Bolsonaro - Reprodução da Internet

"É um projeto de Estado repressor justamente para fazer frente a esses conflitos sociais que vão emergir de uma desestruturação do Estado de bem-estar social”, avalia.

O plano de governo de Jair Bolsonaro possui 81 páginas. Dezessete delas são dedicadas especialmente à economia. O tom do conteúdo já está dado na primeira seção, sobre valores e compromissos, onde na primeira página logo se lê uma defesa da propriedade privada e nenhuma menção aos direitos sociais.

As propostas, em geral, são vagas. “Emprego, renda e equilíbrio fiscal. Oportunidades e trabalho para todos, sem inflação”, diz o documento, sem explicar como tudo isso vai acontecer.

“É o pior que a gente poderia imaginar da direita. É ultrarreacionário do ponto de vista dos costumes e ultraliberal do ponto de vista econômico. Pressupõe um desmonte acelerado do Estado, um aprofundamento da agenda do Temer. É destruir tudo. Claro que muitas coisas dependem de aprovação do Legislativo, mas [caso Bolsonaro seja eleito] muitas das coisas devem surgir no debate com uma pressão enorme do mercado”, diz Esther Dweck sobre a plataforma do PSL.

E é justamente para atender aos interesses desse tal mercado que o programa parece ter sido construído. Com o objetivo de atrair a simpatia da elite econômica, Bolsonaro abriu mão de posicionamentos antigos, herdados de sua origem militar. É o caso das privatizações, que ele antes rejeitava e agora glorifica.

Dentro dessa estratégia, ele tinha delegado ao economista Paulo Guedes todo o poder sobre sua agenda econômica, algo que mudou desde que o guru decidiu propor a recriação de um imposto sobre movimentação financeira, a exemplo da CPMF, desagradando aliados e apoiadores. Guedes foi desautorizado a falar sobre novos tributos e o episódio explicitou ainda mais – para o próprio mercado, inclusive – a falta de rumo e substância da candidatura.

“É engraçado, porque no início Bolsonaro foi aplaudido na Confederação nacional da Indústria (CNI), pelo mercado financeiro, pela elite econômica. Agora houve uma reação. Depois que se falou em CPMF, todo mundo levou um susto. Quer dizer, quando começou a abordar uma coisa mais concreta, as pessoas levaram um susto”, analisa a professora da UFRJ.

Orçamento base zero: sem garantias para áreas sociais

De acordo com ela, toda a plataforma econômica de Bolsonaro é “um horror”. A primeira proposta apresentada no plano de sua coligação é a implantação de um “orçamento base zero”. A ideia também é defendida abertamente pelos presidenciáveis Ciro Gomes (PDT) e Álvaro Dias (Podemos), além de também integrar o documento do PMDB, Ponte para o futuro.

Na prática, Orçamento Base Zero pressupõe que toda a discussão sobre a quantidade de recursos que o governo irá usar no ano, em cada área, deve começar do zero, e não do que foi gasto no ano anterior. “Não haverá mais dinheiro carimbado para pessoa, grupo político ou entidade com interesses especiais”, diz Bolsonaro, na sua plataforma.

Esther Dweck considera a medida bastante preocupante. “Significa, em tese, acabar com todos os programas existentes e rediscutir um por um. E, provavelmente, isso inclui a desvinculação de despesas, fazendo com que cada coisa, para entrar no orçamento, tenha que ser discutida”, detalha, prevendo que a mudança deve deixar sem garantia de verbas áreas sociais do governo.

“Essa é uma ideia da década de 70, nos Estados Unidos, justamente num período em que se buscava um grande ajuste fiscal. Como todo orçamento tem um certo grau de inércia, dificuldade de flexibilidade, surgiu essa proposta, que abandona a ideia de orçamento-programa – que reflete as demandas da sociedade – e parte para o Orçamento base zero, em que cada coisa incluída é discutida pelo seu custo-benefício, digamos assim. Na verdade, é uma proposta de corte bastante draconiana e isso com certeza prejudicará o orçamento de áreas como saúde e educação”, projeta.

A economista lembra que, até a implementação da Emenda Constitucional 95, que criou o teto de gastos, as despesas com Saúde e Educação precisavam obedecer a um percentual mínimo da receita. Agora, os valores investidos nessas áreas são os mesmos do ano anterior, corrigidos apenas pela inflação. “Essas áreas já foram prejudicadas pela EC-95. Com essa proposta de Bolsonaro, isso deve ser aprofundado e a gente pode nem ter a correção pela inflação”, aponta.

Superministério: Subordinar todas às áreas à lógica fiscal

A candidatura de Bolsonaro também propõe criar o Ministério da Economia, que abarcará as funções hoje desempenhadas pelos Ministérios da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio bem como a Secretaria Executiva do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).

A ideia não é nova, foi implementada, com visível fracasso, pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello. “A ideia do superministério é ruim. É algo para que todas essas áreas fiquem subordinadas à área da Fazenda. É submeter tudo a uma lógica puramente de análise fiscal e, não, do mérito das propostas”, defende Esther.

Para ela, o objetivo da junção é dotar de superpoderes um único ministro e diminuir as pressões que vinham das diferentes áreas. “Hoje, a Secretaria de Orçamento [do Ministério do Planejamento] tem uma visão melhor dos problemas que o Tesouro [vinculado à Fazenda]. Ela defende mais os gastos, porque tem conhecimento mais profundo das propostas. Isso ajuda a evitar cortes em áreas importantes. Submeter tudo à lógica de um só ministro é submeter tudo à lógica da Fazenda, que é sempre a mais forte. Foi o que Collor fez e não deu certo”, diz.

Banco Central: independente do povo, subordinado ao mercado

Tema polêmico e que vira e mexe volta à cena, a independência formal e política do Banco Central está proposta no documento de Bolsonaro. “Isso é a desgraça da desgraça. Porque é independente de quem esse Banco Central, né? É independente da população, do que a população decidiu nas urnas, mas totalmente depende do mercado financeiro. No fundo, essa é a proposta: entregar o BC para alguém do mercado financeiro controlar”, critica a economista da UFRJ.

Segundo ela, estudos mostram que ter um Banco Central independente produz aumento da taxa de juros – já que isso interessa ao mercado financeiro – e não gera impacto efetivo sobre o controle da inflação, como alegam os defensores da proposta. “É puramente uma captura de uma parte da área monetária e da área da determinação a taxa de juros”, indica.

Ajuste inviável às custas do povo

Fiel ao receituário neoliberal, a plataforma de Bolsonaro tem a questão fiscal como centro. “O déficit público primário precisa ser eliminado já no primeiro ano e convertido em superávit no segundo ano”, compromete-se o texto.

Resta saber como isso poderá ser feito. Em 2017, o déficit primário foi de R$ 124 bilhões. Para 2018, a previsão é que ele seja de cerca de R$ 148 bilhões. “Para zerar esse déficit em 2019, precisa de um mega ajuste fiscal. Como ele diz que vai cortar receita [reduzir carga tributária], precisa de um corte de mais de R$140 bilhões do orçamento, que é mais do que há de despesa discricionária [não obrigatória]”, calcula Esther.

Na sua avaliação, isso significará parar todas as áreas do governo. “É totalmente inviável e, se for feito, é às custas de um sofrimento da área social gigantesco”, afirma.

Abrir mão do patrimônio público para beneficiar financistas

Ainda em relação às contas públicas, o candidato do PSL estima “reduzir em 20% o volume da dívida por meio de privatizações, concessões, venda de propriedades imobiliárias da União e devolução de recursos em instituições financeiras oficiais”. Ocorre que a dívida pública federal, hoje, está em R$ 3,748 trilhões.  

Segundo Esther Dweck, a proposta de Bolsonaro “é uma loucura, não dá”. Além disso, ela sublinha que se trata exatamente do que fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – promover privatizações para pagar dívida pública, ou seja, abrir mão de bens públicos para beneficiar uma minoria do setor financeiro.

“FHC privatizou, pagou, mas a dívida só aumentou. Vender patrimônio para pagar dívida é a coisa mais maluca que pode existir, do ponto de vista econômico. A ideia é liquidar o patrimônio público para dar dinheiro ao mercado financeiro. É mais uma das propostas extremamente concentradoras”, condena a economista.

Capitalização da Previdência: Exército de velhinhos pobres

Bolsonaro informa em sua lista de propostas que pretende introduzir paulatinamente no país um modelo de capitalização da Previdência (contas individuais capitalizadas), no qual a ideia é que cada trabalhador guarde dinheiro para sua própria aposentadoria no futuro.

Desta forma, o governo retira os recursos do trabalhador, mas o coloca em um fundo. Quando a pessoa se aposentar, pode ter acesso ao seu próprio dinheiro com juros. Se ele contribuiu pouco, seja porque esteve desempregado ou em um emprego precarizado, receberá pouco ao se aposentar.

“Isso é uma maluquice dos que querem acabar com nosso regime solidário de seguridade social. A lógica hoje é um regime que dá segurança para toda a sociedade. A capitalização é uma lógica individualista, e super arriscada do ponto de vista individual, porque, se esses fundos falirem, tiverem baixa rentabilidade, as pessoas vão ter contribuído durante boa parte da vida para depois não terem acesso a nada ou quase nada”, coloca.

De acordo com ela, esse tipo de iniciativa deve gerar aumento da pobreza e piora dos indicadores sociais, já que expõe os beneficiários a uma situação de maior vulnerabilidade. O resultado negativo pode ser conferido no Chile, onde o modelo de capitalização foi implementado durante a ditadura de Augusto Pinochet. Com o baixo valor recebido pelos aposentados, o saldo tem sido um exército de velhinhos na pobreza.

Carteira verde e amarela contra os trabalhadores

“Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela, voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais) ”, anuncia o plano de Bolsonaro.

A referência à manutenção dos direitos constitucionais é abstrata, inclusive porque o vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, já defendeu a elaboração de uma nova Constituição sem “os eleitos pelo povo”. Para ele, o texto de uma nova Carta não precisaria ser aprovado por uma Assembleia Constituinte, eleita pela população, e poderia ficar sob responsabilidade de um grupo de “notáveis”.

Implementada pós-reforma trabalhista, a carteira verde e amarela poderia ser ainda mais devastadora para os já prejudicados trabalhadores brasileiros. “Essa proposta pressupõe que, de fato, os trabalhadores terão algum poder de decidir sobre isso [sobre qual carteira querem], e é obvio que eles não terão. Assim como a reforma trabalhista, é para acabar com a capacidade de dar, minimamente, algum poder ao trabalhador”, acusa Esther.

Reforma tributária para concentrar renda

A reforma tributária defendida por Bolsonaro e Paulo Guedes não só não resolve a injustiça contida hoje no sistema brasileiro, como a aprofunda. A plataforma da dupla prega “gradativa redução da carga tributária bruta brasileira” e “simplificação e unificação de tributos federais eliminando distorções e aumentando a eficiência da arrecadação”.

“Reduzir carga tributária é reduzir o papel do Estado e esse é o objetivo principal dessas propostas todas”, alerta a professora de economia. Ela cita ainda a recente proposta apresentada por Guedes de criação de uma alíquota única de Imposto de Renda, de 20%, que acaba com a progressividade do tributo e, portanto, extingue seu papel na redução das desigualdades.

Caso a mudança anunciada inicialmente se concretizasse, a alíquota de quem ganha até R$2.800 por mês saltaria de 7,5% para 20%. Já os contribuintes que ganham acima de R$4.700 e hoje pagam 27,5%, também passariam a desembolsar 20%. A alteração é tão impopular, que o próprio economista correu para explicar que iria “apenas” congelar a tarifa máxima do IR para 20%, o que, de qualquer forma, também reduz a progressividade do imposto, ampliando o fosso entre pobres e ricos.

“O que ele quer, na verdade, é reduzir a carga para os mais ricos e aumentar para os mais pobres, e isso é extremamente grave. Nossa carga já é extremamente regressiva e essa é uma reforma regressiva e com uma proposta clara de redução da capacidade de transferir renda. E, no fundo, é isso que está em jogo”, encerrou a professora da UFRJ.