Carlos Drummond de Andrade: a eternidade faz 116 anos

Nestes tempos de excesso de celebridades e de escassez de artistas, Carlos Drummond de Andrade é um vulto consistente que pontua com seu facho de luz o horizonte poético da língua portuguesa.

Por Edival Lourenço

Carlos Drummond de Andrade - Divulgação

As comemorações do Dia D de Drummond são sem sombras de dúvida um marco que ajuda a fixar a imagem do poeta e a disseminar sua obra no presente e na perspectiva das gerações futuras. “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno. Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo. Mas com tamanha intensidade que se petrifica…”

No poema “Eterno”, Drummond tece algumas reflexões sobre si mesmo no contexto da eternidade. Na imortalidade pela memória dos sobrevivos. Na eternidade humana. Nessa em que se é eterno não pela durabilidade infinita. Mas pela intensidade com que se vive no instante. No horizonte de um tempo finito.

“O que se desatou num só momento não cabe no infinito, e é fuga e vento”, como diz o poeta em “Instante”. Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta da língua portuguesa, depois de Camões, antes de Ferreira Gullar, ao lado de Fernando Pessoa. Uma opinião pessoal, claro, e controvertidíssima. Para muitos entendidos do ofício, Drummond é o maioral e o seu melhor poema é “A Máquina do Mundo”. O melhor poema da língua portuguesa.

Melhor que “Os Lusíadas”, de Camões, melhor que “Poema Sujo” de Ferreira Gullar, melhor que “Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Melhor que, sei lá, não sei quê, não sei de quem. Há quem ache que gosto não se discute e o que se discute é a preferência. Quem achar que gosto não se discute, pergunte antes a um chef de cozinha.

Mas quem teria as ferramentas de aferir assim com precisões matemáticas as qualidades objetivas de um poeta e de um poema, um objeto tão imponderável e subjetivo? Quem poderia estabelecer qualidades comparativas de poetas e poemas de tempos tão díspares, de circunstâncias tão diversas, quanto os que a língua portuguesa abriga em sua placenta ao longo da história? Arbitrariedades à parte, Drummond é um poeta monumental e sua poesia é eterna.

Drummond veio com a marca do gênio. Não o gênio da lâmpada que retira objetos do nada para atender a desejos descabidos e disparatados de viajores em apuros. Normalmente em número de três. Mas o gênio que implementa rupturas no recinto da tradição. Ele foi o poeta que mais encarnou a modernidade da poesia em língua portuguesa, rompendo com aquela sisudez formal, com aquela crosta parnasiana, feito carapaça de quelônios a adornar a poesia vernácula.
Estendeu enormemente os recursos da língua portuguesa.

A marca do Gênio com certa precocidade. Seu poema, “No Meio do Caminho”, que escandalizou o meio literário e segundo a suas próprias palavras “serviu para dividir as pessoas no Brasil em duas categorias mentais”, foi publicado na “Revista Antropofágica”, em 1928, quando o poeta contava 26 anos. Dois anos antes da publicação seu primeiro livro, “Alguma Poesia”. Drummond talvez pudesse ter publicado em livro antes. Bem antes. Mas certamente, obedecendo ao conselho de Monteiro Lobato que em seu livro “A Barca de Gleyre” recomenda que ninguém deve publicar livro antes dos 30 para não se arrepender o resto da vida, ele deixou pelo menos aproximar dessa idade de superação do temerário. Poucos textos, em qualquer língua do mundo, provocaram tanta polêmica quanto o poema “No Meio do Caminho”. Provocou e continua provocando. Uma pedra no meio do caminho se instalou como um neo-arquétipo da condição humana. Quer seja escriba, quer não.

Em seu poema “Nosso Tempo”, Drummond nos confidencia: “Tenho palavras em mim buscando canal…”. A poesia em Drummond não é propriamente um dom, mas uma sentença condenatória. Se ele não dissesse o que tinha para dizer, com toda a dor do parto que o dizer poético pressupõe, ele poderia ter sofrido na alma uma embolia poética, uma aterosclerose na aura ou mesmo um vazio existencial das retinas tão fatigadas.

Em seu poema mais aclamado, tido como o melhor poema vernáculo, “A Máquina do Mundo”, o poeta esnoba as oferendas que essa mítica alegoria lhe faz. Vale lembrar que a máquina cósmica é parte integrante da cultura ocidental e se desenvolve em textos seminais como a “Divina Comédia”, de Dante, e “Os Lusíadas”, de Camões.

No famoso poema, Drummond, ao fim da tarde, enquanto palmilhava uma estrada pedregosa de Minas, bem à sua frente a Máquina “Abriu-se majestosa e circunspecta”. A máquina o convida para investir “sobre pasto inédito da natureza mítica das coisas”. O poeta reluta. A máquina insiste: “Abre teu peito para agasalhá-lo”. O poeta caminhante retoma a jornada, á boca da noite, por uma estrada pedregosa de Minas, por conta e risco. O poeta não queria lançar mãos de recursos externos, maiores que a própria condição humana.

No entanto, como se pode ver, a máquina do mundo é tinhosa. Mesmo o poeta rejeitando sua proposta de pacto, de colher a fartura ofertada e se eternizar como homem de letras, o poeta vai se eternizando. Como na citação do início, em que intuitivamente, afirma (e não é bravata de poeta inebriado): “Ficou chato ser moderno. Agora serei eterno”.

As bronzinas do coração da máquina do mundo devem estar soltando faíscas de contentamento. Mesmo sem querer, talvez por secreta osmose, o poeta se aplicou no pasto a ele ofertado e deu robustez transcendental a seu engenho, de um modo extraordinário. O dia D de Drummond é sinal inequívoco de que ele está furando o sinal dos tempos. E começa a se orientar pelo calendário da eternidade. Não é antigo nem moderno, mas, eterno.