Bispo no Espírito Santo sobre crime da Samarco: "Não vamos esquecer"

“Não vamos nos esquecer”. Esse é o nome do quarto manifesto apresentado pelo Bispo Dom Wladimir Lopes Dias, da Diocese de Colatina, desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), controlada pela Samarco, Vale e BHP Billington, que despejou, há três anos milhões de metros cúbicos de lama contaminada por metais pesados e resíduos tóxicos da mineração.

4º Manifesto Unidos Pelo Rio Doce foi divulgado após a celebração de uma missa no dia 10 de novembro - Marcos Corbari e Maíra Gomes/Midia Ninja

O 4º Manifesto Unidos Pelo Rio Doce, divulgado após a celebração de uma missa no dia 10 de novembro, o dia em que a lama contaminada atravessou a região há três anos, destruindo a vida do rio e desconstituindo modos de vida, tradições e profissão de milhares de ribeirinhos. Desde a publicação do primeiro manifesto – alguns dias após o crime – até o momento atual, a injustiça segue: as empresas renegam suas responsabilidades, os governos se omitem, a justiça se movimenta com lentidão e a população vive o cotidiano de insegurança e marginalização.

Sem meias palavras, o documento expressa a revolta de um povo que foi privado do convívio com seu recurso natural mais importante. “Hoje não sabemos o quanto a água está contaminada, não são feitas as análises que apontariam a presença de metais e outras substâncias tóxicas como deveriam ser feitas”, explica Dom Wladimir, relembrando que é do Rio Doce contaminado que é extraída a água que abastece o município de Colatina e diversas outros da região, sendo utilizada para beber, para preparar a comida, para tomar banho, entre outras finalidades. “Essas análises deveriam ser diárias, realizadas por laboratórios com independência em relação às empresas”, denuncia.

Confira abaixo a íntegra da entrevista com Dom Wladimir, feita pelo coletivo de comunicação da Marcha “Lama no Rio Doce: 3 anos de injustiça”, promovida pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que vem percorrendo desde o dia 04/11 todo o percurso das comunidades atingidas pela lama da Samarco/Vale/BHP, até seu ponto culminante, onde os resíduos chegaram no Oceano Atlântico, no litoral capixaba.

MAB: Como é o seu envolvimento com a pauta dos atingidos e atingidas pelo crime da Samarco?

Dom Wladimir Lopes Dias: Assumi como bispo na Diocese de Colatina no início de 2015, onde já atuava um ano antes como administrador apostólico. Logo em seguida, aconteceu o rompimento da barragem com minérios da Samarco, essa tragédia socioambiental anunciada. Nós vimos o volume de lama que vinha descendo ao longo do Rio Doce e tivemos uma preocupação imediata muito grande em alertar as pessoas quanto à sua segurança, aos animais, às plantações, porque até aquele momento não sabíamos nada sobre o que essa lama trazia junto dela e o que poderia causar.

Quais foram as ações da Diocese diante da chegada da lama?

Quando os resíduos chegaram aqui nós vimos que a lama estava matando o Rio Doce. O rio foi totalmente morto, um tiro fatal que eles deram. Percebemos que essa situação não se resolveria rapidamente. Nós conhecemos a caminhada do povo e então assumimos esse compromisso, conscientes de que quando as coisas acontecem todo mundo se assusta, todo mundo ajuda, todo mundo é solidário, mas com o tempo a situação cai no esquecimento e só ficam as pessoas que sofrem as consequências diretas da tragédia. A princípio nós pensamos em 10 anos, como prazo inicial para a recuperação do rio. Imaginamos que seria necessário que a Samarco investisse um montante de R$ 2 bilhões por ano para a recuperação. Mas logo percebemos que seria preciso mais, possivelmente R$ 20 bilhões para todo esse processo de restauração e de recuperação.

Você conseguiu perceber as consequências do crime no cotidiano do povo?

De imediato! A lama chegou destruindo tudo. Primeiro tirou a pesca dos pescadores, que sobreviviam dessa atividade. Depois tirou a água que os camponeses utilizam para irrigar as lavouras. Em seguida tirou a qualidade da água que consumimos, fazendo chegar até as pessoas algo que não sabemos ao certo o que é. Nós vimos que as pessoas perderam o emprego, pousadas precisaram ser fechadas, empreendimentos turísticos que haviam realizado investimentos tendo as reservas canceladas sem ter os recursos que já haviam sido investidos para devolver. Há ainda o pânico que as pessoas sentiram naquele momento, em que nos perguntamos o que seria de nós, o que iria acontecer, a incerteza era e ainda é muito grande. Eu até hoje não arrisco tomar essa água, eu não me adaptei, ela faz mal até para tomar banho. Gera alergias, queda de cabelo, problemas na pele, entre outros fatores.

Como foi a idealização do primeiro manifesto?

Na véspera do Natal de 2015 nós resolvemos fazer esse manifesto para mobilizar a sociedade e informar que nós sofremos uma agressão, o nosso rio foi destruído. Nós precisávamos sensibilizar as pessoas naquele momento, pedindo solidariedade para aqueles que foram atingidos e reparação na Justiça para que a Samarco realmente começasse esse processo. Era uma grande tragédia e precisava começar a ser reparada rapidamente. Nos reunimos para a sociedade se manifestar, pedir ao Ministério Público Estadual e Federal para que se iniciasse de imediato o processo de reparação para todos.

Chegamos à quarta edição do Manifesto e continuamos notando a impunidade e omissão dos responsáveis.

Nós pedimos ao longo desses três anos uma reparação e também por providências para que outras barragens que estão em risco também não venham a se romper e assim evitar uma nova tragédia. Nos manifestamos sempre através da igreja, da imprensa, pelo manifesto, através da conscientização das pessoas que nos procuravam aqui. Essa é uma situação muito grave e temos o dever de nos manifestar também para evitar que outras tragédias assim aconteçam. Fomos até Governador Valadares, até Mariana, estivemos em Bento Rodrigues onde aconteceu a catástrofe e 19 pessoas morreram. Todo mundo queria informações e notamos que nada se resolvia. Não tivemos de imediato nenhum tipo de visita da Samarco, nem de órgão estaduais ou federais, para esclarecer o que estava acontecendo, para que nos orientassem sobre a água que estávamos tomando, não tínhamos nenhum tipo de profissional técnico que nos orientasse.

E passados três anos, como você vê o posicionamento da Samarco?

Eu acho que a Samarco montou a Renova, uma estrutura muito grande, para se defender e não apara ajudar ou acolher o atingido. Todo esse dinheiro que ela gastou até agora poderia ter feito uma visita aos atingidos, desde Bento Rodrigues até aqui, visitando local por local, vendo as famílias, cadastrando e já indenizando as pessoas. Veja, essas pessoas não tinham dinheiro guardado, elas não tinham reservas, elas ganhavam no seu dia-a-dia, por isso essa reparação já deveria ter sido feita de maneira adequada. Sobre o cartão, ele é um cartão insuficiente, que leva a renda da família lá para baixo. Outro detalhe é que esses cartões discriminam as mulheres, destinando metade do benefício (meio salário mínimo) em relação ao que os homens recebem (1 salário mínimo). A mulher que trabalhava junto, dedicava-se de maneira igual, as vezes ganhava até mais que o homem passa a receber a metade, atingindo diretamente a renda da família.

A economia local sentiu o impacto?

Abalou muito toda a região. Abalou a agricultura, o comércio, a indústria. Nós já estávamos em uma crise econômica, o que torna ainda mais grave. E as pessoas que foram atingidas mais diretamente não tiveram nenhum maior amparo imediato de proteção.

Há alguma reparação ou ação positiva para os atingidos?

Nós ficamos desamparados, a Renova fez muito pouco nesses três anos. Há ainda outros problemas graves. A Renova deveria fornecer um laudo da água que estamos bebendo. Informar se tem algum tipo de metal pesado, de contaminação, se vai gerar algum problema futuro. A população não tem condições de comprar água mineral, as fontes naturais secaram neste período, muita gente simplesmente não tem alternativa. Eles se preocuparam de dar uma pequena indenização de um salário mínimo – que para ter acesso, a pessoa precisava assinar um termo de compromisso de que não faria outro tipo de ação contra a Renova – e não cumpriram com obrigações importantes relativas aos direitos de cada atingido e atingida.

A igreja tem assumido um papel de mobilização, ao lado dos atingidos e atingidas, mas como você vê o papel da justiça e dos órgãos de estado ao longo desses três anos?

Nós procuramos fazer o nosso papel que é estar ao lado do povo, das pessoas mais simples, mobilizando, esclarecendo, alertando. Fizemos algumas palestras, alguns fóruns e acolhemos pessoas que vieram de fora para ajudar os atingidos. Sabemos que o Ministério Público está tentando resolver essa situação, mas também estamos cientes que isso compete a uma esfera superior. O governo do estado e o governo federal não deram aquela assessoria que se esperava, não estiveram ao lado dos atingidos e atingidas como gostaríamos que estivesse. Nós gostaríamos de fazer mais, mas não temos recursos enquanto igreja para contratar uma assessoria técnica ou advogados. Se tivéssemos condições, nós mesmos faríamos mais, até a análise diária da água conforme seria preciso, mas infelizmente é muito caro.

O que faltou para que nesses três anos se alcançasse resultados melhores para os atingidos e atingidas?

Faltou justiça nesses três anos. O povo não merece isso. Muitos mudaram seu ofício e estão fazendo outras coisas, mas muitos não sabem fazer outra coisa na vida e estão privados de exercer sua profissão, temos muitos casos de depressão, de abuso de bebida, de uso de drogas. A gente esperava que muito mais coisa fosse feita, a gente confia ainda que algumas providências sejam tomadas para melhorar as condições do povo, mas é inquestionável que depois de três anos até hoje muito pouco foi feito. Clamamos por justiça, nós não vamos parar enquanto não for possível ver a situação modificada. São três anos de impunidade, mas nós não nos esquecemos. A igreja é uma voz que não se cala.

Reproduzimos abaixo a íntegra do Manifesto:

"4º Manifesto Unidos pelo Rio Doce: a igreja é uma voz que não se cala!

No dia 5 de novembro de 2018, a sociedade lembra, estarrecida, os 3 anos da maior tragédia socioambiental cometida na história do Brasil: o rompimento da barragem de rejeitos de minério da empresa Samarco (Vale e BHP Biliton), que destruiu toda a bacia do Rio Doce e boa parte do litoral capixaba.

Apesar da gravidade do caso, as políticas de reparação não tem sido vistas como satisfatórias pela população atingida. E é por isso que a Diocese de Colatina, reafirma, mais uma vez, de não deixar cair no esquecimento essa tragédia sem precedentes e suas graves consequências.

A cada ano, vamos manifestar nosso repúdio e cobrar a reparação dos danos causados.

A seguir apresentamos alguns fatos que nos preocupam:

1. Processo de reparação:

– O processo de reparação integral acordado entre governos e empresas por meio do termo de ajuste de conduta (TTAC) vem sendo sistematicamente descumprido pela Fundação Renova;

– Três anos se passaram e nem todas as vítimas foram reconhecidas e devidamente reparadas, sendo inclusive possível apontar a gravidade do não reconhecimento das mulheres como atingidas;

– A reconstrução das áreas afetadas não está contando com a participação dos atingidos e atingidas, sujeitos centrais nesse processo e conhecedores dos modos de vida das referidas regiões;

2. Saúde das populações atingidas:

– Há falta de informação sobre os danos causados à saúde, principal desafio para a recuperação da dignidade da vida das famílias;

– Depois da tragédia, não encontramos sequer uma comunidade atingida que não apresente abalo psicológico por inúmeros motivos :perda dos laços com o rio, perda da renda, ansiedade diante de um futuro incerto, falta de dinheiro. São inúmeros os casos de depressão, alcoolismo, violência doméstica e outros problemas psicossociais;

– A falta de estudos sobre a potabilidade da água, somada à sua turbidez, em grandes regiões, como Colatina e Governador Valadares, é acompanhada de problemas de pele, quedas de cabelo e doenças gástricas;

3. Violação de Direitos legais:

– A maioria das famílias está sendo alvo de extorsão diante da falta de informação sobre seus direitos, como acesso à justiça gratuita, sendo vítimas de toda uma indústria da indenização construída em paralelo a tragédia ;

– Há falta de prepara do sistema judiciário em acolher um caso emblemático como esse, atuando em detrimento dos direitos dos atingidos e atingidas;

– A demora no andamento das ações implica em maior vulnerabilidade das vítimas;

– Outro grande problema é o acesso à justiça para a reparação das comunidades. A ausência de informação tem levado os atingidos a ser influenciados por muitos oportunistas que propõem indenizações e acordos abaixo dos valores dignos para restabelecimento da vida. Os atingidos estão desprotegidos no que se refere ao sistema de justiça que nada entende de direitos humanos;

– O predomínio do acordado frente ao legislado leva os atingidos e atingidas em situação de pobreza a ter que negociar sozinhos, sem assessoria jurídica, nos escritórios da Fundação Renova ;

– Há magistrados que desconhecem a realidade e magnitude do problema e da matéria de direitos fundamentais.

4. Criminalização das organizações da sociedade civil e Igreja

– Ao homologar dois TAC’s celebrados entre o Ministério Público Federal e a Samarco com o objetivo de impedir que a mineradora continue a poluir o meio ambiente (Rio Doce) e repare os danos causados com o rompimento da barragem de Fundão , um juiz federal de Belo Horizonte (MG), determinou algumas sanções que , de certa forma, impõe o voto de silencio, coíbem a liberdade de expressão e dificultam a atuação de entidade religiosas, bem como das organizações da sociedade civil na luta e na defesa dos direitos dos atingidos.

Diante dessas nossas preocupações, percebemos que os 3 anos do maior crime socioambiental do Brasil são marcados pela reprodução de Injustiças. De um lado temos, os atingidos e atingidas, que não possuem acesso a informação adequada sobre seus direitos, nem assessoria técnica de sua confiança e imparcial perante as empresas. Essas pessoas vem sendo desrespeitadas na garantia de seu direito à participação e livredeterminação na construção do processo reparatório por parte dos representantes do sistema de justiça. Esse é o lado frágil de uma sociedade desigual, agravado num contexto de insegurança e vulnerabilidade .

De outro lado, temos as empresas que dominam os mecanismos negociais e afirmam a primazia dos interesses econômicos frente a garantia dos direitos humanos. Há exemplos de situações que foram colocados 12 advogados dessas empresas contra um atingido em situação de analfabetismo funcional para estabelecer uma negociação. Isso é descabido!

São 3 anos de impunidade, mas nós não esquecemos!

Colatina/ES 10 de novembro de 2018."