Tempo de incerteza e rejeição

O título do livro ‘Um copo de cólera’ do escritor brasileiro Raduan Nassar é emblemático para resumir o estado de espírito das sociedades em todo o mundo, com as consequências que sofrem sob os resultados das políticas adotadas pelo establishment.

Por Eduardo Bomfim*

bandeira brasil

Ou seja, os repúdios contra governos e partidos políticos que se alternaram sucessivamente durante o período em que predominou, ainda predomina, a globalização financeira, a supremacia absoluta dos grandes especuladores globais que acumularam fortunas de trilhões de dólares em detrimento do crescimento econômico das nações e dos povos.

Pode-se argumentar que alguns partidos fizeram, nessa realidade hegemônica do capital predador, muito mais em favor das maiorias que outros. E é verdade, fizeram sim.

Mas a realidade imposta aos indivíduos tem sido a sistemática queda da qualidade de vida em todos os aspectos que se possa olhar: desemprego, saúde, educação, criminalidade e o que é pior, a perda do sentimento de esperança por dias melhores. E isso acontece a nível global.

Ao invés de se afirmar, a exemplo do Brasil, que forças de conteúdo “obscurantistas”, “profundamente conservadoras”, que ressuscitam velhos fantasmas como a volta do comunismo sob a liderança de uma inexistente internacional marxista, ganharam as eleições, como diria o Conselheiro Acácio, porque a “Direita” avança em todo mundo, seria mais útil fazer um balanço da realidade e dos próprios rumos.

Li um dos livros publicados pelo professor Mark Lilla, ensaísta e titular da Universidade Columbia dos Estados Unidos. Mark é, além do mais, engajado nas causas progressistas, tem posição e lado definido.

Ele faz uma retrospectiva da luta de ideias nas últimas décadas da política norte-americana, e quando se lê o seu livro, a sensação que se tem é que ele poderia ser usado para a situação do Brasil, com as modificações das distintas realidades entre os dois Países.

Sobre hegemonia política Mark lembra a observação de Abraham Lincoln: “o sentimento público é tudo. Com ele, nada fracassa; contra ele, nada dá resultado. Quem molda o sentimento público vai mais fundo do que quem promulga leis ou profere decisões judiciais”.

Mark Lilla diz que a vitória de Trump “é uma mistura de verdades, meias verdades, mentiras, teorias da conspiração, invencionices, num caldo tóxico engolido com vontade pelos crédulos, indignados, e pelos perigosos”.

A crise da economia global promovida pelo capital especulativo é tão brutal que o que nós estamos assistindo pelo mundo é a assertiva da frase emblemática de Lincoln. Quem está moldando a cólera da opinião pública tem sido a fórmula com que o autor define Trump. A pergunta é: por quê?

Uma das respostas de Mark é que os partidos ditos progressistas se cercaram, como referência teórica central, das agendas de Políticas Indentitárias desde os anos oitenta nos EUA. E depois, pelo mundo.

Abandonaram a ideia e a visão central da nação, do sentimento de solidariedade, do espírito da oportunidade para todos e do dever público. Envolveram-se nessa Agenda Identitária, perdendo o sentido do que compartilhamos como cidadãos e do que nos une como nação.

Nos anos sessenta e setenta, a luta pelos direitos significava a batalha de grandes grupos de pessoas em defesa dos direitos das mulheres, contra o racismo, pelo reconhecimento efetivo das minorias, que tinha a simpatia e adesão entusiasmada das grandes maiorias.

Mas nos anos oitenta, nos EUA, essa política cedera lugar a uma pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente, promovendo sucessivas fragmentações internas, visões tribais e a condenação das grandes maiorias que não pertenciam a essas especificidades, que seriam responsáveis pelas alegadas injustiças históricas, fazendo voltar-se a juventude para a própria interioridade e praticamente condenando o mundo exterior não pertencente aos grupos indentitários.

Isso deixou os jovens despreparados para pensar no bem comum, que é fundamental para assegurar todos os direitos, e na tarefa política nada glamorosa de persuadir a todos em participarem de um esforço comum para o bem da coletividade, da nação.

O identitarismo passou a ser visto, pelas grandes maiorias sociais, como uma “doutrina” professada basicamente por determinados setores das elites urbanas instruídas sem contato com o resto do País, cujos esforços se resumem em zelar e alimentar movimentos hipersensíveis, que dissipam em vez de concentrar as energias da sociedade como um todo.

De outro lado, o identitarismo ao contrário de negar as agendas do neoliberalismo econômico radical reforça-o, porque reduz o espírito de comunidade nacional ao indivíduo, ao grupo. Em consequência, afirma Mark, o identitarismo deixou de ter projeto político relevante e se metamorfoseou num programa de evangelização.

Mas a diferença, diz Mark, é que evangelizar é dizer “verdades” ao poder. Fazer política é conquistar o poder para defender as verdades.

Assim, e por várias outras razões, os cidadãos se sentem abandonados por esses partidos políticos que não respondem ou não propõem alternativas básicas, reais, concretas, assimiláveis, às sociedades que naufragam em uma violenta crise econômica, social. Quer dizer, não os representam.

Porém, afirma Mark, não existe antes em política, só o depois. O que nós estamos vendo nos Estados Unidos, nos levantes populares na França, na Itália, no crescimento parlamentar do grupo VOX na Espanha, na recente eleição no Brasil, Grã Bretanha, e tudo indica, vem muito mais por aí, são imensas revoltas sociais contra as consequências das políticas da globalização financeira, a miséria crescente, a insegurança brutal com o amanhã, a criminalidade crescente, o desemprego, a desesperança. Enfim, é o copo de cólera transbordando.

Ou as forças políticas lúcidas substituem a linha das políticas indentitárias como eixo central programático, oficial ou oficioso, ou as sociedades vão abraçar “as verdades, meias verdades, mentiras, invencionices, teorias da conspiração, o caldo tóxico que atrai os crédulos, os indignados”. E os “perigosos” vão liderar os clamores das sociedades.

De nada adianta afirmar, como no Brasil, que os “obscurantistas”, os “conservadores” estão vencendo, diria o Conselheiro Acácio, porque há uma onda de “direita” no mundo. Ou mais grave “o povo não sabe votar”, “é atrasado e conservador”. Isso é errático, uma fuga da realidade. E o que é pior, de nada adianta.

“Eles” estão crescendo porque estão dizendo “suas verdades, meias verdades, mentiras, invencionices, teorias da conspiração” e falando à alma, o coração das sociedades.

Enquanto os demais se “refugiam nas cavernas das suas autossatisfações das políticas identitárias” proclamando-se “moralmente superiores”, isolando-se das sociedades que clamam por soluções urgentes e abrangentes.

É pertinente acreditar firmemente na capacidade de unir as amplas maiorias em torno do bem comum, das grandes soluções sociais, inclusas todas as minorias, na defesa dos interesses nacionais, no desenvolvimento que abrigue as aspirações da sociedade, na defesa da nação, da sua identidade cultural, na convivência entre os povos.

Mas para isso é fundamental a vontade crítica de reunir um conjunto de propostas que unifique o espírito coletivo, individual, que atinja os corações e as mentes das sociedades e, em nosso caso, do povo brasileiro.