Um facho de luz atinge o obscurantismo

 As denúncias contra o médium João de Deus, que atua em Abadiânia (GO) e levaram à decretação de sua prisão no dia 14 de dezembro espantam o país. 

Por Carlos Pompe*

João de Deus - Foto: Fotos Públicas

Após ser publicizada uma denúncia de abuso sexual por parte dele, algumas centenas de outras surgiram e o obscurantismo ficou exposto. Mulheres afirmam que recebiam um aviso de “procurar o médium João” quando foram à sua casa de “curas” (não, não se trata de um hospital) Dom Inácio de Loyola, na cidade goiana, após o atendimento coletivo.

Segundo as denunciantes, na sessão particular ele as molestava (crianças, adolescentes, adultas) sexualmente a pretexto de realizar uma “limpeza espiritual”. Para tal “limpeza”, apalpava-as, levava as mãos delas ao seu pênis e, inclusive, as penetrava – uma das denunciantes diz que tinha 16 anos quando o caso aconteceu, engravidou e depois ele a induziu ao aborto. São essas as acusações, até o momento.

Está sendo feita a apuração e, em algum momento, poderá ser revelada sua veracidade ou não e, no caso de comprovadas, quem sabe ocorra até a condenação e cumprimento de pena do culpado (sempre é imprevisível os meandros do Judiciário brasileiro, que o diga, aliviado,

Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana, condenado por 56 condutas de abuso de pacientes mulheres caracterizadas como estupro, que está em liberdade favorecido por um habeas corpus concedido por um ministro do Supremo Tribunal Federal).

A atuação do curandeiro do século XXI não é muito diferente de um relato do século XIV. Em uma das 100 histórias que Giovanni Boccacio compilou entre 1348 e 1353 no Decamerão, ele conta o feitiço que Donno Gianni realiza para transformar a esposa de seu compadre Pedro em égua, sob a supervisão deste. Quando a deixa de quatro e vai copulá-la a pretexto de colocar-lhe o rabo da égua, Pedro, aos prantos, declara que não deseja a cauda e arruina o efeito de todo o feitiço. É um dos episódios adaptados para o cinema por Pier Paolo Pasolini, em 1971.

Em comum entre os casos, se as acusações contra o De Deus forem verídicas, o abuso da fé alheia para obter proveito próprio (no caso medieval, libininoso; na acusação atual, libininoso e financeiro, pois João Teixeira de Faria, que se autointitula João de Deus, fatura financeiramente com seus serviços).

Uma das características do atual episódio é que mostra o como a credulidade se mantém, através dos séculos, apesar dos avanços científicos. A mediunidade já foi investigada cientificamente, e nunca comprovada. No entanto, ganha reputação de eficiente através de pessoas que se dizem curadas através delas (sem comprovação científica) e o apoio de grandes meios de comunicação – que a divulgam acriticamente – e de personalidades mediáticas. João de Deus foi fotogrado e amplamente divulgado quando recebeu visitas da multimídia norte-americana Oprah Winfrey, as atrizes brasileiras Giovana Antonelli, Cissa Guimarães e Xuxa, o jogador Ronaldo, além de políticos, geralmente, mas não só, de direita. Aliás, o goiano também foi enaltecido em um filme (O silêncio é uma prece), lançado em 2017.

Tal situação mostra, mais uma vez, a atualidade do pensamento de Karl Marx. Escreveu o então jovem alemão (1843, 25 anos), na sua Crítica da filosofia do direito de Hegel: "É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”.

Nestes tempos em que o obscurantismo foi vitorioso nas urnas, mostrando a sua força e permanência e sua ameaça contra os avanços civilizatórios (vide a proposta da Escola Sem Partido, a atacar o ensino e os professores), vale reafirmar o materialismo militante e ecoar o dialético Marx, no mesmo livro: “A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola”.