Rosemberg Cariry: In Tenebris

"Diante do fundamentalismo mais tosco, do absurdo e da obscuridade em que estamos mergulhados, fico pensando que Júlia, a doida mansa e lírica, talvez pudesse devolver as estrelas que devorou, curando com luz essa loucura coletiva que tomou conta do País”.

Por Rosemberg Cariry*

Menino espalhando estrelas - Divulgação

Júlia Doida, era assim que a chamavam. Perambulava esfarrapada, em sua assustadora magreza, pelas ruas do Crato. Inofensiva em sua loucura, ria das ofensas e jamais revidava os insultos que lhe eram dirigidos. Uma noite a vi, sentada nos degraus do cruzeiro de pedra, no alto do seminário, ruminando, mastigando algo, sem que nada houvesse na boca, porque eram raras as vezes em que ela se alimentava, pois até o lixo da cidade do Crato era avaro de restos de alimento. Intrigado, perguntei-lhe o que comia. Ela respondeu-me: Estrelas.

Deu-me uma resposta tão inusitada e mágica que me fez calar.

Anos depois, já em Fortaleza, lembrei-me de Júlia Doida e escrevi um livro de contos fantásticos chamado "A Lenda das Estrelinhas Magras", em que rememoro esse acontecimento. No conto, envolto nas asas livres da ficção, eu narrava que Júlia Doida, depois de comer as lâmpadas da cidade do Crato, começou a comer estrelas e devorou muitas constelações, até que a escuridão tomasse conta do mundo.

A imaginação criativa resvala quantas vezes no vivido, deixando-nos naquele limiar de dois mundos, em especial, quando o real se mostra imerso em completa escuridão. Causam-me espanto outros personagens que agora parecem querer devorar as nossas luzes e razões, fazendo entrar em colapso a nossa já frágil esperança de sermos uma nação, ao pé da letra. Bem distintos da inofensiva e lírica Júlia Doida, armados de ódio e intuito destrutivo inusitado, vejo hoje devoradores de luzes e energias humanas (como vampiros), verdadeiros algozes dos sonhos de justiça e bem-estar social. São eles os neofascistas, os fundamentalistas religiosos, os racistas, os machistas, os misóginos, os xenófobos e os políticos conservadores. Um conjunto assombroso de disposições ideológicas e de maldades.

Diante do fundamentalismo mais tosco, do absurdo e da obscuridade em que estamos mergulhados, fico pensando que Júlia, a doida mansa e lírica, talvez pudesse devolver as estrelas que devorou, curando com luz essa loucura coletiva que tomou conta do País, evitando o risco de uma epidemia de cegueira, como profetizou Saramago.

*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor.

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