Haroldo Lima: O “bestialógico” está a serviço de que?
Três meses se passaram de governo da extrema-direita e o país vive sobressaltado, sob a égide da incerteza. Nos Estados Unidos, o presidente disse ser preciso “desconstruir muita coisa” no Brasil. Desnudou-se, em seguida, como entreguista, ele que já se mostrara incompetente, corrupto e alucinado. O povo começa a se dar conta do tamanho da derrota que sofreu na eleição passada e prepara uma resistência, que pode ser prolongada.
Por Haroldo Lima*
Publicado 04/04/2019 12:23
Bolsonaro afronta valores sensíveis de nossa gente. Com seu falso patriotismo de boca, substitui a política soberana do país por uma repugnante postura servil aos Estados Unidos. Seus atos deixam os investidores retraídos. Em três meses, o capitão, que ia ser expulso do Exército, viu cair sua aprovação de 49% em janeiro, para 34% em março. Sinais de ingovernabilidade aparecem, causando preocupação entre os endinheirados.
A economia fica estagnada. O que já era grande, cresce, o desemprego. A distribuição de rendas foi suspensa, o rentismo agiganta-se e concentra mais riquezas. O patrimônio público vai sendo privatizado, os serviços decaem, o Ministério da Educação vai à beira do colapso, o das Relações Exteriores aprofunda-se no ridículo.
O governo sai humilhado das peripécias do aniversário de 55 anos do golpe de 1964. Quis comemorá-lo, não conseguiu. O povo, instituições e personalidades disseram “não” ao pretendido engodo de negar o golpe. Nem os militares entraram nessa.
Agora, volta-se para a “reforma da previdência”, aniquiladora de direitos. Para justifica-la, lançou mão de monumental manipulação de dados falsos, mobilizou empresários e grande mídia e amedrontou parcelas da população. Seu ministro Paulo Guedes foi à Câmara defende-la. Embaraçou-se todo e a sessão teve que ser suspensa.
O governo trama também dar à polícia “o direito de matar” pobres e negros nas periferias, como quer o “juiz” Sergio Moro, a título de combater o crime organizado. Mas há outros riscos de consequências imprevisíveis.
A facção mais ensandecida do governo é a do presidente, seus filhos, seus ministros mais bizarros, o da Educação, Relações Exteriores e o da Mulher. Esse segmento de doidivanas orienta-se pelas ideias tresloucadas de uma figura sinistra que se esconde há anos nos Estados Unidos, um tal Olavo de Carvalho, que se declara “filósofo”, sem nunca ter concluído qualquer curso, e que toca a emitir opiniões delirantes sobre coisas básicas, insurgindo-se contra cientistas como Isaac Newton, (“espalha burrice”), Charles Darwin (“ autor de teorias toscas e confusas”), Einstein (“a teoria da relatividade é uma empulhação elegante”).
Tipo incomum de lunático, o “filosofo” não concorda que a Terra gire em torno do Sol, (“não existe a menor prova do sistema heliocêntrico”), critica as vacinas (“vacinas matam ou endoidam”), ridiculariza o aquecimento global, ( “uma fraude”), questiona o malefício do tabagismo (“eu fumo há meio século, dois ou três maços por dia, e o meu pulmão está intacto”), agride as religiões africanas (“religiões afro atraem a desgraça”).
Estranho nisso tudo é que o autor dessas ideias estapafúrdias demonstra um prestígio incomum no núcleo bolsonarista do governo. Indicou ministros, dois dos mais abilolados, o da Educação e o das Relações Exteriores, é considerado “guru” por alguns maníacos, como um dos filhos do presidente, e foi a personalidade mais destacada em jantar na embaixada brasileira nos Estados Unidos, quando da recente visita que o Bolsonaro fez àquele país.
Até com os militares ele se choca! Chamou o Mourão de “idiota” e advertiu-o de que ele, o vice Mourão, era "voz dissonante" no governo, estava “desalinhado com o programa do presidente Bolsonaro" e, nessa medida, era um ser “perigoso”. De onde vem essa força? É só a irmandade dos dementes? Há uma pista diferente.
O autoproclamado “filósofo” tem ligações com o Steve Bannon, responsável pela campanha de Donald Trump à Casa Branca, ex-estrategista da Casa Branca e de Donald Trump e assessor da campanha de Bolsonaro a presidente. Atualmente articula uma organização de extrema-direita, "The Movement", sediada em Bruxelas, cujo objetivo decantado é o de eleger governos populistas de direita pelo mundo. O “The Movement” tem estreitas relações com líderes da extrema-direita da Europa, como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán e o ministro do interior italiano, Matteo Salvini. No já referido jantar na embaixada brasileira nos Estados Unidos, enquanto o “filósofo” Olavo sentou-se de um lado presidente, ele se sentou do outro.
O enunciado em série de posições bestialógicas, na frente de uma porção de livros, com ares de inteligência, pode ter um efeito perverso, o de questionar, nas cabeças menos instruídas, o conhecimento humano e o próprio método científico. Porque, semelhante comportamento provoca, na parte mais bem formada da população, espanto e repulsa, mas pode, pela repetição, plantar a semente da dúvida no meio dos despreparados, das pessoas sem cultura, dos ignorantes sistêmicos, ou dos letrados com convicções frágeis.
Daí porque, como consequência do bestialógico que os ideólogos desse governo propagam, pode advir, nos setores mais incultos da sociedade, e nas cabeças menos centradas, indagações políticas absurdas, tipo: o “golpe de 1964” existiu mesmo? foi mesmo um “golpe”? O nazismo era de extrema-direita? A Terra é mesmo redonda?
Bolsonaro, agora em Israel, apoiando seu desvairado ministro do Exterior, disse ser o “nazismo” um fenômeno da “esquerda”, não se importando com o ridículo de dizer isso quando, no Museu do Holocausto que visitava, estava escrito que o “nazismo surge como uma manifestação antissemita da extrema direita, reagindo ao comunismo”.
Agora bem. Os que rezam pelo bestialógico referido, e os que o suportam, mais ou menos envergonhados, aparentam estar de acordo com o aforisma do banqueiro Paulo Guedes, de “privatizar tudo”. O que é esse “tudo”?
O peso das empresas estatais brasileiras já foi grande, o “tudo” era enorme. Mas já foram vendidos a Usiminas, a Cia. Siderúrgica Nacional (CSN, Volta Redonda), a Embraer, a Cia Vale do Rio Doce (a Vale), a Acesita, a Açominas, a Cosipa, a Telebrás, a Eletropaulo, o Banespa, a Excelsa, a Ultrafértil, a Goiasfértil e mais 28 grandes ou enormes empresas, pois que 41 delas foram privatizadas nos últimos 20 anos.
Pela década de 1980, tínhamos 213 empresas estatais. Com as privatizações e fusões, esse número passou a 186 em 1990 e hoje está muito diminuído. O governo federal tem 137 estatais, mas 90 delas são subsidiárias da Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, BNDES, Caixa e Correios. Das grandes, restam a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o BNDES, os Correios e poucas mais. Vão querer mexer nelas? Terão força? Os próprios militares aceitarão? Por onde se vê, que o “tudo” que resta, pode ser pequeno. Os vorazes privatistas se contentarão com isto?
O “privatizar tudo” pode incluir outros setores da coisa pública que não sejam apenas empresas, mas, por exemplo, a Previdência e a Educação.
A Previdência pública não teria condições de se manter se os planos dessa “reforma” prevalecessem. E aí sim, a privatização cresceria, de mãos dadas com a chamada “capitalização”. As camadas mais pobres estariam excluídas do benefício, as camadas médias ficariam em dificuldades, mas a aposentadoria pública no Brasil seria privatizada.
E por que manter à frente do Ministério da Educação um desqualificado? Com ele será possível melhorar a educação pública no país? Mas, “melhorar a educação pública” seria objetivo desse governo? Ou seu objetivo seria desmoralizá-la, para liquidá-la?
Logo depois do golpe de 1964, a 23 de junho de 1965, o Ministério de Educação firmou Acordo com a United State Agency for Internactonal Development, a USAID, de fatídica memória. O acordo seguia as diretrizes para a educação superior para toda a América Latina e estavam expostas no Relatório Atcon, de um certo Rudolf Atcon que, entre outras coisas dizia ser necessário “…transformar a universidade estatal em uma fundação privada…colocar o ensino superior em bases rentáveis, cobrando matrículas crescentes durante um período de 10 anos…". Era a privatização do ensino superior.
Na época, a estudantada se levantou, a ditadura fez desabar a repressão e a luta se generalizou.
Agora, pode estar em curso um processo de desmanche do sistema público de escolas do país, das primárias às superiores, através do corte dos seus meios de manutenção e desenvolvimento e através do rebaixamento de sua reputação. Afinal, o pessoal do magistério e os estudantes podem ficar desmotivados, ao verem, na direção máxima da atividade educacional, um desajustado.
Imediatamente, duas grandes batalhas devemos travar, em defesa da previdência pública e da escola pública.