Sergio Moro não é Judas

A confirmação de que o ex-juiz Sergio Moro aceitou participar do governo Jair Bolsonaro em troca de uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) não deveria chocar. Há algo de escandaloso na confissão do presidente. Mas cabe falar em surpresa? Ainda que figuras como o veterano Gilberto Dimenstein só tenham admitido a decepção agora, o que faltava mesmo para que as máscaras caíssem?

Por André Cintra

Judas

Bolsonaro prometeu o STF a Moro durante a campanha eleitoral de 2018. Em 2 de outubro, a menos de uma semana do primeiro turno, o então juiz federal levantou o sigilo sobre a delação premiada de Antonio Palocci (PT), na qual o ex-ministro acusava o ex-presidente Lula de saber de esquemas de corrupção na Petrobras.

Nem Palocci apresentou provas de sua denúncia, nem tampouco Moro justificou as razões para liberar a delação na reta final da campanha. Mas o ato discricionário ajudou a estancar o crescimento do candidato do PT à Presidência, Fernando Haddad. Para agravar as suspeitas, a medida partia do mesmo juiz e do mesmo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que, seis meses antes, haviam condenado Lula à prisão.

É preciso reconhecer que, em diversas entrevistas e lives (transmissões ao vivo nas redes sociais), Bolsonaro já anunciava que, se eleito, convidaria Moro ao Supremo. E também cabe lembrar que o juiz da midiática operação Lava Jato, quando confrontado com as declarações de Bolsonaro, jamais firmou posições de independência ou contrariedade. Nem sempre basta olhar para ver, mas já havia evidências de um consórcio entre magistrado e presidenciável.

O acordo

Com o triunfo bolsonarista nas urnas, as negociações foram retomadas, e cada lado impôs seus termos. O presidente eleito deu o valor inicial: antes de chegar ao STF – cuja próxima vaga só deve ser aberta em novembro de 2020 –, Moro precisava necessariamente participar do novo governo.

Não se tratava de estágio probatório, mas, sim, de atestado de fidelidade. Desde quando um governo conservador aceita esse republicanismo de araque e faz nomeações incondicionais à Suprema Corte? Além do mais, com Moro no ministério, o presidente-mito poderia surfar no prestígio do juiz-herói e reforçar a popularidade da gestão.

Moro também pôs as cartas na mesa. Citou nominalmente o astronauta Marcos Pontes, que aceitara o convite para assumir o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Nenhum ser pensante no Planeta acreditava que a mera presença de Pontes seria suficiente para turbinar a pasta – em recursos, poderes ou visibilidade. O astronauta, militar de carreira, tinha a reputação de ser discreto e cooperador. Em outras palavras, Pontes aceitava um status secundário no governo Bolsonaro.

Já Sergio Moro queria muito mais. Alegava que não podia renunciar a 22 anos de uma carreira cada vez mais midiática na magistratura para tocar um ministério desidratado. Foi de Bolsonaro – à revelia dos filhos e do núcleo militar – a ideia de fundir os ministérios da Justiça e da Segurança Pública. Mas foi de Moro o pedido para agregar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) à futura pasta.

“Eu estava na mesa quando o Moro conversava com Jair recém-eleito presidente e pediu para levar o Coaf com ele”, contou ao Estadão, neste domingo (12), o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente. “Jair falou: ‘problema nenhum, é seu’. Nunca tínhamos ouvido falar de Coaf na vida.”

Em dezembro, já depois do anúncio de que Moro seria o “superministro” da Justiça e Segurança Pública, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu investigações contra Flávio Bolsonaro. O motivo: relatório do Coaf identificara uma movimentação atípica de R$ 1,2 milhão, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, na conta corrente de Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do filho mais velho do presidente. O clã foi forçado a conhecer o Coaf.

“Desculpa, desculpa, desculpa”

O presidente da Câmara Federal, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que Bolsonaro não “veste a camisa” da reforma da Previdência. É como se o presidente da República conduzisse a contragosto a proposta ultraliberal apresentada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas Bolsonaro morre ainda menos de amores pelo “pacote anticrime” – a vitrine da gestão de Moro no governo. Quando a Câmara começou a agir para tirar o Coaf do Ministério da Justiça e Segurança Pública, esvaziando os poderes de Moro, o Planalto não mostrou nenhuma disposição efetiva para evitar a reviravolta.

Agora, o desastrado presidente procurou afagar Moro – e, na prática, o constrangeu – ao explicitar o pacto para torná-lo ministro do STF. O homem da Lava Jato será indicado à Suprema Corte na “primeira vaga que tiver”, conforme declarou Bolsonaro em entrevista à Rádio Bandeirantes: “Tenho esse compromisso com o Moro e, se Deus quiser, cumpriremos esse compromisso (…). Eu fiz um compromisso com ele, porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura. Eu falei: a primeira vaga que tiver lá, vai estar à sua disposição”.

A entrevista foi ar neste domingo. Horas depois, Dimenstein admitiu ter vendido Moro como “um dos heróis nacionais” e fez mea-culpa: “Desculpa, desculpa, desculpa”. Terá Dimenstein se sentido traído? Cabe ao caso Moro a etiqueta da traição?

O Novo Testamento nos ensina que Judas Iscariotes, o mais ambicioso dos apóstolos, o mais vulnerável ao dinheiro e a Satanás, aceitou trair Jesus Cristo por 30 moedas de prata – o “preço de um escravo”. Ciente do plano, Jesus revelou, na última ceia, que um dos 12 apóstolos o entregaria. Não deu nomes. Mas quando Judas o beijou em público, a fim de identificá-lo às autoridades, o Nazareno desmascarou a cena com uma frase: “Traído com um beijo!”.

Talvez o ex-juiz justiceiro da Lava Jato tenha traído, sim – e em primeiro lugar –, a si próprio e à sua narrativa heroica. Há mais dimesnteis por aí a escancarar o desencanto. Não houve beijo nem moedas de prata, mas as circunstâncias da aproximação entre Moro e Bolsonaro começam a sobressair com um inconfundível fedor de imoralidade.

Credibilidade

Sergio Moro não é Judas. O apóstolo traidor, tomado pela culpa e pelo remorso, foi ao chamado Campo de Sangue e se enforcou. Há quem fale num Evangelho de Judas, apócrifo e controverso, segundo o qual Jesus e Judas agiam em comum acordo. Para todos os fins, porém, a versão que prevaleceu foi outra e indica que Judas desceu ao Inferno.

Bolsonaro pode ter, involuntariamente, jogado uma forca para Moro. O ministro recusou o sacrifício precoce, sem conseguir, no entanto, dissipar a (nova) suspeição a seu respeito. Disse ter entrado para o governo sem tratar de STF. Deixou, porém, uma brecha sobre o futuro: “Se ele [Bolsonaro] formular o convite, aí eu vou avaliar se eu vou aceitar”.

É pouco para contornar a crise. A única forma de “limpar a sujeira” é arrancar de Moro o compromisso de que não aceitará uma indicação ao STF – ao menos sob o governo Bolsonaro. Poderia ser o gesto de maior grandeza em sua trajetória pública, ainda que soe inicialmente tão questionável quanto o Evangelho de Judas. Se até as palavras do traidor de Cristo carecem de credibilidade – mas ainda tem um e outro adepto –, Moro ainda será ouvido pelos reincidentes órfãos de “heróis nacionais”.