Mulheres apontam “sequência de erros” em fala de Moro 

Durante a solenidade que celebrou os 13 anos da Lei Maria da Penha, o ministro da Justiça, Sergio Moro, declarou que alguns homens agridem mulheres porque se sentem atualmente intimidados por elas. “Talvez nós, homens, nos sintamos intimidados pelo crescente papel da mulher em nossa sociedade. Por conta disso, parte de nós recorre, infelizmente, à violência física ou moral para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”, disse o ministro.

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Horas depois, ele publicou sua fala no Twitter e, em um segundo post, completou a afirmação destacando que “o mundo mudou. Temos que aprender. Diz isso não o Ministro, mas o filho, marido e pai de mulheres fortes”. Cinco mulheres de prestígio que se debruçam sobre estudos de desigualdades de gênero afirmam que há uma “sequência de erros” na fala de Moro. Confira abaixo ponto a ponto.

1) Época em que a violência surge
Para a antropóloga Debora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), a afirmação do ministro carrega um amontoado de “equívocos de raciocínio”. A começar por tratar a violência contra a mulher como algo recente, fruto de uma ascensão feminina de poucos anos. “Faz parecer que a violência contra a mulher é um fenômeno recente, quando na verdade existe faz muito tempo”, destaca ela, que tem recebido ameaças de morte por seu protagonismo nas audiências sobre aborto no Supremo Tribunal Federal (STF).

Faz coro com ela a advogada Gabriela Rondon, que integra o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis): “A violência contra a mulher não surgiu agora, como uma reação dos homens às mulheres. O enfrentamento é que é recente. Mas, com essa narrativa, ele [Moro] leva a entender que é algo novo”.

2) Culpabilização da vítima
A advogada ainda ressalta que a declaração de Moro traz uma culpabilização da vítima, que não seria agredida se não estivessem em ascensão social. “É como se a agressão fosse algo provocado pelas mulheres. Você subjetiva e naturaliza os casos de violência. Não é sobre essa ótica que um ministro da Justiça deve atuar, ainda mais um ex-juiz”, diz Rondon.

A argumentação de Moro de que, uma vez que “o mundo mudou”, os homens não podem mais ser violentos com as mulheres é muito questionada pelas especialistas. Na visão de Debora Diniz, essa alegação reforça a ideia de que a culpa é da mulher. “Há uma culpabilização da vítima quando ele diz que há uma parte dos homens que não consegue lidar com o poder das mulheres porque o mundo mudou. O mundo não precisava ter mudado para que a violência contra as mulheres fosse considerada imoral”, diz a antropóloga. “Violência contra a mulher foi sempre um ato imoral e injusto qualquer que seja a localização das mulheres na vida social e política.”

Ela considera que há uma narrativa de vitimação construída na fala de Sergio Moro. “A narrativa da vitimação é típica de sujeitos com poder: eles invertem a ordem de causalidade dos fenômenos quando querem se afirmar como vítimas, e não como sujeitos com poder”, destaca a antropóloga. “A violência contra a mulher foi sempre imoral e injusta. Porém, ela só passa a ser considerada ilegal pelo ordenamento jurídico muito recentemente porque a lei e a ordem eram atributos e poderes masculinos. Mas ainda há dificuldade de considerar essa transformação como uma transformação justa – tanto é que o ministro da Justiça assim a descreve: as mulheres mudaram de lugar, e nós, homens, nos intimidamos e é por isso que alguns de nós ainda violentam as mulheres. Há um equívoco de raciocínio aí.”

Para a professora titular de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em desigualdades de gênero Lena Lavinas, a fala do ministro denota uma visão opressora sobre as mulheres. “A visão do ministro é de que a culpa é sempre das mulheres. É uma mentalidade arcaica, que demonstra falta de conhecimento. O que ele quer é responsabilizar as mulheres como se tem feito nos últimos 10 mil anos. Elas são violadas, a culpa é delas. Elas morrem assassinadas, a culpa é delas. Elas ficam grávidas, a culpa é delas”, afirma Lavinas.

A socióloga e fundadora do Instituto Patricia Galvão, Fátima Pacheco Jordão, afirma que existe, na violência de gênero, um componente de reação à ascensão das mulheres – mas não é daí que a violência se origina. Ela lembra que a violência é usada há séculos como instrumento para manter a mulher subjugada, dependente e em relação desigual.

“A cultura machista não conseguiu entender que a igualdade de gênero valoriza a ambos e melhora a qualidade de vida, a moral e a ética da sociedade para todos”, afirma. “Esse sentimento de perda de poder se manifesta na violência contra a mulher, mas é preciso entender que a igualdade de gênero é um processo irreversível. Não é uma luta das mulheres, é uma luta civilizatória.”

A explicação para violência contra a mulher utilizada pelo ministro, para a socióloga, é “anacrônica”. “É uma explicação da ótica do homem, anacrônica e ressentida. Mas não é uma explicação de um ministro da Justiça”, diz.

3) Falta de entendimento do fenômeno
A antropóloga Debora Diniz estende a crítica a Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que também estava presente na solenidade de aniversário da Lei Maria da Penha. Segundo Debora, é alarmante o modo como Moro e Damares demonstraram desconhecer quão complexo é o fenômeno da violência contra a mulher. “Ele diz algumas coisas que são muito preocupantes. Não só ele, mas também a ministra Damares, que disse que vai acabar com essa ‘palhaçada’ da violência contra a mulher. As duas falas são de uma superficialidade sociológica e de compreensão do que significa o fenômeno da violência contra a mulher que o naturalizam”, lamenta.

Para a antropóloga, faltou o respeito necessário ao tema: “Este é um tema que merece solenidade ao ser falado: são mulheres e meninas que são mortas e violentadas em suas casas e em relações afetivas”, afirma Débora. “Estamos na região do mundo [América Latina] que mais mata mulheres. É a região do mundo que se apropria do conceito de feminicídio como uma palavra para expressar o que acontece no mundo das relações afetivas, que é matar uma mulher por ela simplesmente ser uma mulher. E é muito curioso que nenhum dos dois, e especificamente ele que é o ministro da Justiça, faz referência a esse tipo penal – ele que gosta tanto de falar de política criminal e de criminalização.”

4) Narrativa que justifica a violência
A fala do ministro pode ser interpretada como uma justificativa para a violência contra as mulheres, avalia a cientista política Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). “Existe uma enorme distância entre explicar as causas e justificar a violência contra as mulheres, e a declaração do ministro ficou na fronteira entre uma coisa e outra”, diz a pesquisadora. “Não estou dizendo que ele justificou a violência, mas ficou na fronteira. Só que uma autoridade pública num país com os níveis de violência contra as mulheres que nós temos não pode, de maneira alguma, transitar entre a explicação e a justificação.”

A cientista avalia que a fala reverbera o entendimento de que há algo de errado com a mulher quando ela sofre uma violência: “Ainda que ele diga que isso tem a ver com um sentimento do homem, ele afirma que isso seria provocado pelo deslocamento do papel das mulheres na sociedade. E isso acaba nos levando a uma forma de justificativa da violência.”

Flávia explica que, de fato, a posição das mulheres mudou no Brasil e no mundo. Nunca houve tanta autonomia e tanta reivindicação de direitos. Porém, o deslocamento da posição das mulheres na sociedade não pode ser pretexto para que se cometa violência. Ela lembra que a maior parte dos crimes é cometida por homens muito próximos das vítimas, como companheiros ou ex-companheiros que não aceitam o fim de um relacionamento.

“Não se pode aceitar mais o tipo de hierarquia que envolvia a ideia de posse e de propriedade do corpo de uma mulher por um homem”, afirma Flávia. “As mulheres não estão mais na posição de subordinação em que foram colocadas historicamente. Mas, de maneira alguma, a violência pode ser uma saída para se lidar com mudanças nas hierarquias.”