A desconstituição do projeto de desenvolvimento nacional
No plano político, o avanço do autoritarismo; no econômico, a desconstituição do projeto de desenvolvimento nacional com autonomia. Como pano de fundo a crise institucional, o conflito, agora não mais surdo, entre os Poderes, prenunciando uma temida instabilidade do regime, em cuja direção forcejam aquelas forças, inclusive militares, ainda hoje inconformadas com a redemocratização de 1988 e o pacto político que a viabilizou.
Por Roberto Amaral*
Publicado 15/08/2019 15:21
A caserna é ainda uma esfinge e sobre seus humores muito pouco é antevisto fora de seus limites. Assim, não se pode estimar como assiste à desnacionalização da economia e à renúncia a qualquer veleidade de independência ou soberania, e mesmo de segurança nacional, com o desfolhamento da Petrobrás, a doação da Base de Alcântara, a venda da Embraer, o virtual congelamento dos projetos dos caças negociados com a Suécia e dos submarinos de propulsão nuclear fabricados em cooperação com a França, além da anunciada desmontagem da Eletrobrás, pondo sob risco o sistema nacional de geração e distribuição de energia.
Em entrevista a um semanário de grande circulação nacional, e com larga expertise em golpes e sabotagens políticas, o ministro Toffoli narra suas idas e vindas (registram-se três dezenas de reuniões entre os chefes dos três poderes), ora para conjurar ameaças às instituições, ora para impedir a deposição do presidente da República.
Segundo Veja, um grupo de parlamentares teria decidido tirar da gaveta um projeto que, numa reprise do golpe de 1961 contra João Goulart, previa a implantação do parlamentarismo, relegando o capitão, no poder, a figura meramente decorativa, quando à inquietação do Congresso se somavam as apreensões dos militares: “Simultaneamente [ao abalo político], uma ala do Exército começou a discutir a incapacidade do presidente de governar, enquanto outra, mais radical e formada por militares de baixa patente, falava em uma sublevação contra as ‘instituições corruptas’ [leia-se STF e Congresso]. Um dos generais próximos ao presidente chegou a consultar um ministro do Supremo para saber se estaria correta a sua interpretação da Constituição segundo a qual o Exército, em caso de necessidade, poderia lançar mão das tropas para garantir ‘a lei e a ordem’. Em outras palavras – conclui a revista – o general queria saber se, na hipótese de uma convulsão, teria autonomia para usar os soldados independentemente de autorização presidencial”.
Ou seja, para intervir, como é da tradição de nossas forças armadas, como lembra a história de 1954, de 1955, de 1961 e de 1964, para ficarmos nos episódios mais recentes.
“Longe de Brasília – volta a revista – , a insatisfação também era grande. Empresários do setor industrial incomodados com a paralisia da pauta econômica discutiam a possibilidade de um impeachment de Bolsonaro”.
Dias Toffoli teria intervido nas diversas maquinações evitando a quebra da legalidade, da qual o STF tornar-se-ia o fiador, assumindo por autoproclamação o imprevisto papel de ‘Poder Moderador’ da República.
É do depoimento do presidente do STF: “Tive várias conversas com parlamentares e meu foco foi sempre reforçar que o presidente foi legitimamente eleito, tem a respeitabilidade de quem recebeu 57 milhões de votos e seus projetos e programas precisam ser vistos com esse potencial. […] O Supremo deve ter esse papel moderador, oferecer soluções em momentos de crise. Estávamos em uma situação de muita pressão, com uma insatisfação generalizada. Mas o pacto funcionou. A reforma da Previdência foi aprovada, as instituições estão firmes”.
A direita estaria satisfeita com o bolsonarismo que tantos ganhos tem oferecido ao chamado ‘mercado’, mas se incomodaria ainda com os atos e fatos gerados pelo capitão, que já lhe teria oferecido o que mais aspirava a Avenida Paulista, a saber, impedir a volta do lulismo ao governo. Agora, ganha as eleições, ou mais precisamente derrotado o lulismo, vencida (pelo menos parcialmente) a batalha pela reforma da Previdência, era chegada a hora de aprofundar a reforma econômica, é a conclamação da Avenida Paulista.
Mas a política econômica está fazendo água, a euforia em torno da Reforma da Previdência logo se transformará em frustração, pois os resultados irresponsavelmente prometidos não serão entregues. Cresce a crise da economia internacional e logo mais, em 2020, teremos eleições que se podem transformar em antecipado plebiscito sobre o bolsonarismo, com a indústria andando para trás, o consumo travado e o desemprego incontido e o rendimento médio do trabalho anunciando recuo de 0,2% no trimestre encerado em junho.
Nenhum dado objetivo sugere a alteração deste cenário.
O anúncio, que se repete mensalmente, é o da recessão, agora posto de manifesto pelo Índice de Atividade Econômica (IBC-Br) apurado pelo BC e que reúne dados da indústria, dos serviços e da agropecuária. Ele é considerado uma prévia do PIB. Os números apurados pera o segundo trimestre indicam uma queda de 0,13% com relação ao primeiro, trimestre, que já haviam caído em face do trimestre anterior. Retração econômica em dois semestres seguidos tem nome: recessão.
As expectativas relativas ao PIB não são melhores, pois apenas se confirmam as previsões de seu encolhimento em 2019; não passaremos de 0,8%, como prevê o próprio BC, ou mesmo não atingiremos este número. No período de janeiro a março o Produto recuou mais 2% com relação ao último trimestre de 2018. Com a economia em recessão, não há como reagir, senão mediante políticas anticíclicas, para estimular a economia e retomar o crescimento – mas essa alternativa é exatamente o contrário do que propõem nossos Chicago Boys.
Nenhum setor da economia revela seja vitalidade, seja perspectiva de recuperação, mas de todos o mais desalentador é o cenário oferecido pela indústria, acentuando a recessão, gerando o circulo vicioso: menos produção é igual a menos emprego e famílias mais endividadas, donde menos consumo de bens e serviços, o que importa em menos produção e mais ociosidade do comércio e da indústria, donde menos arrecadação, donde menos investimento…
A economia patina e em seguida dá marcha a ré.
A indústria que ainda temos registra recuo de 1,6% no primeiro semestre. São, agora, três semestres consecutivos de queda, com demanda interna fraca, exportações em crise e ociosidade em alta, e, por óbvio, retração dos prometidos investimentos com os quais a Avenida Paulista acenava. A expectativa é de um resultado em 2019 pior que o desastre de 2018 (Valor, 2/8/2019).
Na outra ponta, o superávit comercial recua 43% e tem o pior julho desde 2014, reflexo da queda das exportações, ainda quando não se sabe se o capitão permanecerá em sua ofensiva contra a China, os países árabes e o Mercosul, nossos principais importadores. O acumulado do ano revela um recuo de 16,3% em comparação com 2018.
Atacando o candidato que provavelmente vai ganhar as eleições argentinas o destemperado presidente cria ainda mais dificuldades para os interesses brasileiros no país vizinho e grande parceiro comercial.
O tal ‘mercado’ e as ‘consultorias’ comandadas por ex-diretores do Banco Central e adjacências só têm uma receita: aprofundar as ‘reformas’, panaceia para todos os nossos males, porque vão adiando, para um futuro que não se sabe quando chegará, a solução para problemas presentes e cruciais como o desemprego. Há que se esperar que a ‘reforma’ da Previdência produza resultados, depois aguarde-se a reforma tributária, depois a reforma disso e depois a reforma daquilo outro, e entre uma reforma e outra ainda é preciso esperar pelas privatizações na bacia das almas, fragilizando ainda mais o papel do Estado como indutor do desenvolvimento, ou seja, mandando para as calendas gregas os investimentos essenciais para a recuperação econômica.
O cenário, em sua objetividade, no que rejeita as soluções golpistas – tomadas nas casernas, nos tribunais ou no Congresso – reclama a ação política e o fortalecimento da ordem institucional, assegurando uma oposição firme e sem quartel, tanto mais firme e tanto mais eficaz quanto respaldada na mobilização popular, na medida em que puder falar às grandes massas que compreendem também os trabalhadores sem vínculo formal, os sindicalizados e os não sindicalizados, os organizados mas, igualmente, os não organizados, os milhões de brasileiros que estão se virando como podem.