Verdadeiro Roberto Marinho não compareceu em sua biografia

Biografia ou coluna social? O primeiro volume do livro Roberto Marinho – o poder está no ar, do jornalista Leonencio Nossa, está mais para uma crônica de bastidores do que para um trabalho de relato da verdadeira dimensão do biografado. O segundo volume ainda não tem previsão de lançamento, segundo o autor.

Por Osvaldo Bertolino

O Globo

Na apresentação da obra, que vai do nascimento ao Jornal Nacional, Leonencio Nossa diz que se baseou em arquivos e entrevistas com mais de 100 pessoas para compor "uma biografia independente", buscando “rigor jornalístico”. Se ele cumpriu o que disse, é uma avaliação que precisa se referenciar nos fatos. E não faltam episódios em que Leonencio Nossa faltou com o rigor jornalístico.

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O que mais chama a atenção é a sua obsessão por enredar a esquerda em tramas fictícias de maneira absolutamente desnecessária e provocadora. Como em outras obras do autor, o alvo predileto das suas barbeiragens é o Partido Comunista do Brasil. Em diferentes passagens, ele recorre a essa muleta, sem deixar pistas para se saber o motivo da citação. Deve ser opção editorial. Ou comercial. Ou ideológica.

Um caso emblemático é a associação que Leonencio Nossa faz do jornal A Manhã com o Partido Comunista do Brasil – à época com a sigla PCB –, aparentemente pelo simples fato de Pedro Motta Lima, histórico jornalista e escritor comunista, ter sido um dos fundadores e diretor da publicação, que surgiu para ser o órgão semioficial da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Isso é bem diferente de ser do PCB. Mas para o autor, o jornal era comunista e, como tal, inimigo de Marinho. Não o contrário.

Plano soviético

Ele relata um caso do assassinato brutal de um estudante que militava na Juventude Comunista que O Globo, numa série de matérias, associou a uma relação homoafetiva. Pedro Motta Lima teria reagido, no A Manhã, dizendo que se tratava de uma “ignóbil campanha de provocação a que se entregam jornais a serviço do imperialismo e de seus agentes no país”. A indignação, segundo Leonencio Nossa, foi porque o PCB teria ficado incomodado com as revelações d’O Globo.

O autor não diz exatamente o que o jornal de Marinho publicou, mas, a julgar pela resposta de Pedro Motta Lima, foi algo muito pesado. “O Globo à frente (da campanha de provocação dos jornais), não pode (a campanha) ser apreciada apernas sob o aspecto da veracidade, da seriedade, da ética jornalística”, afirmou ele. “Já desse ponto de vista, o alarmismo policialesco é dos que provocam náuseas, excedendo o cinismo”, completou.

O suposto assassino acabou não sendo acusado pelo Ministério Público por falta de provas, mas, na versão de Leonencio Nossa, o PCB – o A Manhã, na verdade – passou a exaltar a militância comunista do jovem morto. Sem mais nem menos, ele fecha o assunto afirmando que “alguns pesquisadores (quem seriam?) dizem que o jovem foi sentenciado por um tribunal revolucionário do PCB”, repetindo uma conhecida infâmia de embusteiros e provocadores, como Hugo Studart no caso da Guerrilha do Araguaia.

Mais adiante, o livro relata um caso com o típico  padrão Globo de jornalismo – até hoje é assim – ao citar que em 1935 o jornal de Marinho “informou ter tido acesso a trechos de um ‘engenhoso plano soviético”, discutido numa reunião de Vargas com seus ministros. O jornal disse: “Esse plano, que é abundante de minúcias, ao que a reportagem do Globo logrou apurar, defende o ataque fulminante a todas as instituições.” A provocação, na versão de Leonencio Nossa, foi respondida pelo “jornal comunista” – o A Manhã –, ou “a folha comunista” com dureza.

Jornalismo “burguês”

Mais adiante, Leonênci.lo Nossa afirma, sem nenhum motivo e sem nenhum contexto, que Pedro Motta Lima, agora assinando a direção do jornal comunista Tribuna Popular (fundado em 1945), “não deixou Roberto Marinho em paz no pós-guerra”. Ele não cita que o jornal do PCB era dirigido por um coletivo integrado por Pedro Mota Lima — o diretor de redação —, Aydano do Couto Ferraz, Álvaro Moreira, Dalcídio Jurandir e Carlos Drummond de Andrade, o poeta famoso. Pedro Pomar assumiria a direção do jornal alguns meses depois.

Em outra provocação fútil, Leonêncio Nossa diz que Pedro Motta Lima “pediu licença ao leitor para seguir o modelo de jornalismo ‘burguês’” para relatar a saída de Luiz Carlos Prestes da prisão, sem contextualizar a afirmação, em um texto publicado exatamente no jornal O Globo. Qual seria a diferença entre um modelo de jornalismo burguês e um jornalismo proletário num jornal burguês? O leitor fica sem saber a resposta.

A resposta talvez possa ser encontrada em outra leviandade – a afirmação de que a esquerda construiu uma imagem de Marinho como “um capitalista representante do ‘império americano’”. A “rede de jornais comunistas de Motta Lima” (a rede era do PCB, dirigida por Pedro Pomar) seria uma das responsáveis pela fama do dono d’O Globo. Na verdade, o anticomunismo de Roberto Marinho estava mais ativo do que nunca.

Leonencio Nossa cita o caso de dois jovens que se “enfurnaram” na floresta da Tijuca para imitar Tarzan, inspirados no personagem de um gibi publicado pela empresa de Roberto Marinho. “A Tribuna Popular, de Pedro Motta Lima, narrou a história” como sendo “vítimas da literatura infantil e juvenil da empresa O Globo procedente dos Estados Unidos e graças à qual o senhor Roberto Marinho tem enriquecido vastamente nesses últimos anos”, teria dito o jornal comunista.

Círculos mundanos

A citação tem conteúdo seletivo, como se o jornal comunista estivesse tomado por um surto moralista. Na verdade, a edição da Tribuna Popular citada, de 19 de abril de 1947, não deu o menor destaque ao assunto. O tema dominante sobre a juventude era a cassação da União da Juventude Comunista (UJC) pelo governo do general Eurico Gaspar Dutra, uma violação flagrante da Constituição. A edição citada fez um relato minucioso do debate protagonizado pela bancada comunista na Câmara dos Deputados.

O Globo abriu fogo contra a UJC, conforme relatou a Tribuna Popular. Roberto Marinho movia uma campanha venenosa pela sua cassação. Um editorial e uma “manchete escandalosa” do seu jornal teriam recebido da “caixinha imperialista” uma importância determinada, segundo a tabela por centímetro de “matéria de propaganda política inserta na parte editorial”, ironizou o jornal do PCB. O dono d’O Globo tentava “alarmar a opinião do país, falando em nome de ‘Deus, pátria e família'”, prosseguiu a ironia.

De acordo com a Tribuna Popular, a juventude tinha “os seus problemas, que os comunistas se propõem a enfrentar e resolver”. “Quem não têm problemas, e por isso hostilizam a organização da UJC, são os milionários do tipo do próprio senhor Roberto Marinho. O diretor d’O Globo, conforme foi fartamente comentado nos círculos mundanos e hípicos (ele gostava de cavalos), estava de viagem marcada para a Europa com uma pequena corte de serviçais e três cavalos. A viagem foi adiada por motivos ligados à sua ‘cruzada anticomunista’”, prosseguiu.

Ainda segundo o jornal do PCB, “não pode evidentemente agradar ao Globo e ao senhor Roberto Marinho uma organização que se propõe ‘organizar e unir a juventude para uma vida digna e feliz’, como fiel continuadora das tradições da juventude brasileira que vem das lutas da Independência, do heroísmo da Coluna Invicta e a epopeia dos combatentes na guerra patriótica contra o nazismo”. “Não, positivamente isso não é com O Globo”, concluiu o texto.

Jornal sem comunista

Roberto Marinho “mergulhou fundo” na cassação do registro do PCB, diz Leonencio Nossa, que continuou afirmando que os jornais comunistas eram de Pedro Motta Lima e seguiam perseguindo o dono d’O Globo. A desinformação chega à criação de outro jornal, a Imprensa Popular, que, na versão fantasiosa de Leonencio Nossa, teria surgido pela determinação de Motta Lima de “levar às ruas uma folha que servia de núcleo para outras publicações país afora”.

Essas “publicações país afora” existiam bem antes do surgimento da Imprensa Popular, que “foi às ruas” seguindo um plano do PCB, comandando por Pedro Pomar, para substituir a Tribuna Popular, sistematicamente empastelada pela repressão. Num dos episódios mais desonestos do livro, Leonencio Nossa, na sua obsessão por Pedro Motta Lima – que há muito tempo deixara a direção do jornal do PCB, ainda nos tempos da Tribuna Popular -, afirma que o jornalista “mirou novamente nos ‘capitães da imprensa’” e o jornal comunista atacou Marinho e outros donos de jornais que defendiam a o envio de jovens brasileiros para a Guerra da Coreia.

Essa obsessão por Pedro Motta Lima é para justificar uma suposta amizade entre ele e Roberto Marinho, apesar da divergência ideológica – o jornalista comunista trabalhou em O Globo e teria sido ajudado pelo dono jornal, já na década de 1950, numa campanha por sua anistia. Esse é apenas um episódio em que o livro de Leonencio Nossa relata a tolerância de Marinho com jornalistas comunistas.

Dessas versões surgiu a lenda de que Marinho teria dito, já na ditadura militar, que nos seus comunistas mandava ele. O dono d’O Globo teria se queixado a Assis Chateaubriand que seu jornal estava cheio de comunistas. “Ô, Roberto, o que você quer? Não se pode fazer jornal sem comunista, a mesma coisa que não se pode fazer balé sem veado”, teria respondido grosseiramente o dono do grupo Diários Associados.

Implicância com a UNE

Outro episódio do livro que mostra a implicância de Leonêncio Nossa com os comunistas refere-se à União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1962, em plena efervescência política, com as forças democráticas lutando contra a marcha golpista. Segundo o autor, a entidade dos estudantes estava “fechada à força de Marinho e outros homens da imprensa ligados ao movimento anticomunista”. A entidade havia trocado “o movimento de profusão de experiências culturais” pelo “duelo entre esquerda e direita”.

Aldo Arantes, que seria uma das principais lideranças do Partido Comunista do Brasil, agora com a sigla PCdoB, assumiu a presidência da UNE em julho de 1961, em meio à crise nacional da renúncia do presidente Jânio Quadros. Como presidente da entidade, ele participou, ao lado do governador Leonel Brizola, da campanha da legalidade para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, vetada pelos ministros militares. “A UNE estava no auge do prestígio após a UNE-Volante com o CPC e a campanha pela reforma universitária”, diz ele.

Dentre as várias eminências pardas de Roberto Marinho que aparecem no livro, sem que seus papeis sejam elucidados, está o advogado Herbert Moses, que foi presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Era, segundo Pedro Pomar, o tesoureiro d’O Globo. Outras figura que fez história na ditadura, Armando Falcão – foi ministro da Justiça de 1974 a 1979 –, “surgiu na história de Marinho como um interlocutor do empresário na política”.

Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurou as negociatas de Marinho com o grupo Time-Life, Falcão foi um dos seus interlocutores. O assunto é tratado artificialmente no livro, assim como o surgimento da TV Globo e do Jornal Nacional. Mas esses são temas que não estão entre as prioridades do autor. Pode-se concluir que na biografia de Roberto Marinho o verdadeiro Roberto Marinho não compareceu.