Abuso de autoridade e 'sabe com quem está falando?'

Roberto DaMatta, destacado estudioso da cultura brasileira, afirma que o “sabe com quem está falando?”, que tanto ecoa no cotidiano do cidadão comum, revela um rito informal de autoridade na vida social do país. Trata-se de um autoritarismo rotineiro, especialmente nos momentos em que os “donos do poder” têm seus interesses pessoais confrontados.

*Felipe Santa Cruz

O presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz - Divulgação

Aos cidadãos comuns, o rigor da lei; aos “donos do poder”, os privilégios e a faculdade de exercer, permanentemente, o arbítrio e, com isso, a possibilidade de dizer que manda e desmanda o país.

A aprovação no Congresso Nacional da Lei de Abuso de Autoridade representou um grande avanço para enfrentar e coibir esse cotidiano de arbitrariedades. A lei anterior datava de 1965 e evidentemente necessitava de atualização.

A nova lei, na forma aprovada no Congresso, inclui tema especialmente importante para a advocacia e a garantia do direito de defesa do cidadão: a criminalização da violação das prerrogativas do advogado. A proposta aprovada vale para todas as autoridades, do Judiciário, do Executivo ou do Legislativo, e significa a subordinação de todos, inclusive dos mais poderosos, ao império da lei. Trata-se, portanto, de preservar e garantir o direito do cidadão diante de eventual abuso da força por um agente do Estado.

Os grandes avanços obtidos nos últimos tempos no combate à corrupção, com a independência e o melhor aparelhamento do Ministério Público e dos órgãos de investigação, estarão preservados e aprimorados. Qualquer denúncia de abuso de autoridade será investigada e julgada pelo próprio Judiciário, e a OAB tem plena confiança que nosso sistema jurisdicional será capaz de fazer cumprir a lei, com razoabilidade e imparcialidade, como determina nossa Constituição.

A sensibilidade das casas legislativas, que aprovaram a legislação com votação de ampla maioria, infelizmente não se repetiu na atitude do presidente da República. A sanção da lei veio com 36 vetos dos 108 dispositivos aprovados pelo Congresso —vetos que desfiguram e anulam os efeitos da legislação. Dentre eles, os artigos que criminalizam a violação de prerrogativas dos advogados, como a inviolabilidade do escritório, comunicação com os clientes, negação do acesso ao interessado —ou ao seu advogado— aos autos investigatórios.

Durante o processo legislativo, a advocacia brasileira, ciente de seu papel de guardiã da sociedade civil, se mobilizou em defesa do projeto. São inúmeras as situações em que os advogados são impedidos de exercer sua profissão, em total prejuízo à defesa. Não são raros os momentos em que o direito de defesa tem sido violado e flexibilizado, inclusive por aqueles que têm o dever funcional de tutelá-lo, como magistrados e promotores.

A argumentação para o veto é, no mínimo, frágil. Ao sustentar que o dispositivo gera “insegurança jurídica por encerrar tipo penal aberto e que comporta interpretação”, o chefe do Executivo desconsidera que as prerrogativas elencadas no artigo 7º da lei nº 8.906/1994, o Estatuto da Advocacia, não são genéricas; ao contrário, são claras, objetivas e individualizadas.

O bem jurídico tutelado, no caso, está intimamente ligado ao direito de ampla defesa. Afinal, o art. 133 da Constituição atribuiu à advocacia um status constitucional, contendo declaração expressa de indispensabilidade do advogado perante a Justiça, e enfatizando, sobretudo, a liberdade de atuação desse profissional para a concretização do Estado democrático de Direito e do acesso à Justiça. Portanto, não há justificativa legal para a desfiguração da lei.

Resta, portanto, a intenção de perpetuar o desequilíbrio de forças, o desamparo da população e a injustificável cultura do “sabe com quem está falando?”. Contra essa tentativa, a advocacia vai se posicionar e lutar, pedindo ao Congresso Nacional que derrube os vetos e garanta importante passo civilizatório.