Efeito Coringa ou a jornada do outsider

O “Efeito Werther”, contágio de suicídios após um evento suicida tornar-se famoso, deriva do romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Assim como a obra do escritor alemão suscitou uma onda de autoextermínio, em imitação ao fim trágico de seu herói, teme-se um “Efeito Coringa” depois de Joker, jornada fílmica do anti-herói mais outsider da mitologia de Batman.

Por Carolina Mello *

Coringa Joker - Foto: Divulgação

O receio de uma plateia acossada pela violência urbana, banalizada na cobertura midiática que tenta dar conta de reportar o cotidiano precário das metrópoles, é a força por trás desse longa-metragem corajoso ao tocar em feridas tão contemporâneas.

Muito se fala sobre Joker romantizar os incels – neologismo estrangeiro para “celibatas involuntários” –, grupo de homens solitários reunidos em fóruns online voltados para a propagação da cultura de ódio, de teor preferencialmente racista e misógino.

Essa massa amorfa de supremacistas frustrados pode se identificar com a trajetória de Coringa na obra de Todd Philips e, principalmente nos Estados Unidos, um país conhecido pelos massacres e que, só em 2019, acumula mais de 170 mortes em 10 dos eventos mais letais dos últimos anos, a preocupação de que o filme estimule novos ataques não soa estapafúrdia.

Porém, não deixa de ser curioso que o público fantasie sobre o poder que uma peça ficcional pode ter de incitar eventos traumaticamente reais, de uma lógica que nos escapa. Se há uma ousadia em Joker é a tentativa de encontrar motivações humanas na monstruosidade. O maior perigo por trás de tal ambição é se enxergar na turbidez desse espelho.

O incômodo de sentir empatia por um psicopata é um truque cristão, porque evoca a compaixão do espectador. Mas Joker, apesar de cumprir todas as bases da jornada do herói, não é mais sobre o malogrado comediante Arthur Fleck do que sobre o que ele simboliza.

A chave para chegar a essa conclusão está no evento que o canoniza como vilão, mesmo ponto de virada que eleva o jovem Bruce Wayne a Batman. É também quando o afeto construído pelo protagonista torturado nos leva a mergulhar numa multidão anônima fardada – ou fantasiada, tanto faz – de fascismo. Não é fácil se perceber parte dela.

Sinto desapontar os camaradas de esquerda, mas, o Efeito Coringa não será um levante de uma classe trabalhadora organizada. No capitalismo tardio de Joker, não haverá tomada dos meios de produção, pois a identificação com o trabalho inexiste. A alienação no processo produtivo nos trouxe para esse lugar onde o riso é mecânico, uma reação autômata para esconder a dor diante de uma rotina desumanizante, e a única resposta possível será quebrar na porrada a máquina de ponto da firma.

Joker está nos trazendo pistas sobre a ascensão de movimentos extremistas nesses dias onde toda cidade grande se parece com Gotham. E numa cidade como Gotham, todos estamos órfãos. Mas num reino onde poucos são escolhidos, essa mesma orfandade que nos faz irmãos, como Arthur Fleck e Bruce Wayne, só será capaz de inaugurar fratricídios.

Todd Philips não traz qualquer alento depois de nos levar à beira do precipício para mirar o caos. A gente vai dançando, conduzidos pelo carisma do arquétipo do Louco, e a única remissão está em conseguir sobreviver a essa alegoria narcísica que é Joker, sem se afogar.

Minha impressão como espectadora dos lançamentos de 2019 é a de que muitos filmes imprimiram o ethos desses tempos de horror coletivo – do brasileiro Bacurau ao estadunidense Midsommar – e assisti-los é tudo o que se pode fazer por agora. É aterrorizante, mas necessário.

Se é verdade que o cinema é o divã das massas, é injusto condenar o cineasta por nos ajudar a enxergar nossa fealdade. Antiético ou imoral seria maquiar nosso pavor de alegria. O que faremos com a exposição desse mal-estar, daqui em diante, é tarefa nossa.

No Tarot de Marselha, a carta do Louco, de número zero, é iniciática de uma jornada de descobertas. Quem poderá prever nosso futuro?