Como os túmulos de Lenin, Stalin e Che viraram atrações turísticas

Locais que preservam os corpos desses revolucionários recebem centenas de milhares de visitantes por ano

Ano após ano, centenas de milhares de pessoas visitam as sepulturas de três das figuras mais marcantes da experiência socialista no século 20 – Vladimir Ilyich Ulianov, o Lenin (1870–1924), Josef Stalin (1878–1953) e Ernesto “Che” Guevara (1928–1967). Os locais que preservam os corpos desses revolucionários se tornaram atrações turísticas – e cada túmulo, curiosamente, é envolto por histórias tão extraordinárias quanto a trajetória de seus lendários mortos.

Quando Lenin, ícone máximo da Revolução Russa (1917), morreu, em 21 de janeiro de 1924, milhões de soviéticos se reuniram para lhe prestar as últimas homenagens. Não havia planos para que seu corpo durasse tanto. O patologista Alexei Abrikosov realizou a autopsia e, entre outras coisas, cortou as artérias principais.

“Mais tarde, ele comentou que não teria feito isso se soubesse que iam embalsamar o corpo”, explicou Alekséi Iurchak, professor de antropologia social em Berkeley. “O sistema sanguíneo poderia ter sido utilizado para enviar as substâncias químicas para o embalsamamento do tecido corporal.”

Depois da autópsia, o corpo de Lenin foi embalsamado temporariamente para evitar que se decompusesse de modo muito rápido. Stalin e os dirigentes soviéticos promoveram a exposição pública do corpo, para que os soviéticos tivessem a oportunidade de mostrar seu respeito. Anunciou-se, então, que Lenin seria enterrado na Praça Vermelha.

Lenin ficou exposto por quatro dias em um caixão aberto na Casa das Uniões (Dom Soiuzov), no centro de Moscou. Gente de toda a União Soviética fez fila para dar seu último adeus. Grandes grupos, com até 50 mil pessoas, passaram diante da entrada onde estava o caixão. Como os termômetros marcavam 7 graus negativos, as pessoas acendiam fogueiras para evitar que os visitantes congelassem.

Somente 56 dias após a morte de Lenin, as autoridades soviéticas decidiram preservá-lo. Havia duas maneiras possíveis de conservar o cadáver, que lentamente entrava em decomposição: congelar ou embalsamar o corpo. A princípio, o governo optou pela primeira opção. O ministro Leonid Krassin (Comércio Internacional) foi à Alemanha a fim de adquirir um equipamento especial para viabilizar o congelamento.

Só que, em março de 1924, um bioquímico chamado Boris Zbarski convenceu às lideranças de que o embalsamamento era melhor. Primeiro, porque evitaria que a pele de Lenin mudasse de cor. Segundo, porque a eficácia do congelamento era relativa – o corpo inevitavelmente se decomporia até mesmo sob baixas temperaturas.

Com a ajuda do anatomista Vladimir Vorobiov, Zbarski começou as operações com o corpo de Lenin em março de 1924. O cérebro e os olhos já haviam sido removidos, assim como a maioria dos outros órgãos internos. O corpo, afetado com a mudança de tempo – já que as temperaturas haviam subido –, estava repleto de manchas escuras.

Por meses, Zbarski e Vorobiov se dedicaram a clarear a pele de Lenin, especialmente o rosto, e a buscar a mistura química mais adequada para o embalsamento. Trabalhando dia e noite sob pressão das autoridades soviéticas, eles fizeram cerca de 20 incisões, mais furos no crânio, e mergulharam o corpo numa banheira com formaldeído por algumas semanas. Tudo para matar germes e bactérias, além de impedir a putrefação.

Na sequência, como a morte do líder já completava dois meses, o corpo passou por outro banho – desta vez, para melhorar o tom da pele e mascarar os traços cadavéricos. Os cientistas usaram, por último, uma solução de glicerol para suavizar a pele do cadáver, que seria colocado em uma pose definida. Ninguém na Rússia tinha feito algo parecido antes. Zbarski e Vorobyov estavam trabalhando no escuro e arriscando tudo caso falhassem. Mas eles conseguiram.

Enquanto o corpo estava temporariamente alocado no Palácio dos Sovietes, em Moscou, o governo lançou um concurso para saber quem construiria o local de último descanso do líder comunista. Ganhou o arquiteto soviético Alexey Shchusev, que montou uma estrutura temporária, de madeira, na Praça Vermelha, no “coração” da capital Moscou – até que a oficial estivesse pronta. Ali, em 1º de agosto de 1924, o mausoléu foi aberto ao público. “Incrível! É uma vitória!”, teria dito Zbarski. Durante seis semanas, 100 mil pessoas visitaram o caixão de Lenin nessa sepultura provisória.

Em 1930, a obra definitiva – um mausoléu de granito na própria Praça Vermelha, próxima ao Muro do Kremlin – foi concluída. De imediato, começou a peregrinação de soviéticos e estrangeiros ao local. Também começaram as ameaças à sua segurança. Em 1934, o pequeno agricultor Mitrofan Nikitin entrou no mausoléu e tentou disparar em Lenin morto. Depois de errar a mira, voltou a arma contra si, suicidando-se. A segurança no local teve de ser reforçada.

Durante a 2ª Guerra Mundial, os restos mortais de Lenin passaram por aventuras, incluindo a evacuação para Tiumen, a 2.100 quilômetros de Moscou. A Grande Guerra terminou com vitória soviética – e com uma nova onda de visitas ao mausoléu. Devido à demanda crescente, o corpo foi transferido para um sarcófago maior, projetado pelo arquiteto e pintor russo Konstantin Melnikov. Parte do monumento foi reconstruída em 1945. Uma tribuna com grades vermelhas foi acrescentada para que dirigentes soviéticos pudessem se acomodar durante eventos na Praça Vermelha.

Os planos de destruição continuaram. Em 1959, tentaram quebrar o vidro que cobre o sarcófago de Lenin com um martelo, mas sem sucesso. Um ano depois, um homem chamado Minibaev subiu no invólucro e chutou a estrutura que recobre o caixão. Fragmentos de vidro perfuraram as mãos de Lenin e tiveram de ser removidos com pinças e solução de limpeza. O rosto precisou passar por um trabalho de reparação completo. O vidro do sarcófago foi temperado, de modo que, quando um aposentado de 59 anos tentou quebrá-lo com uma marreta, em 1966, continuou intacto.

O caso mais dramático ocorreu em 1973. Alunos de uma escola de Moscou faziam uma excursão ao mausoléu. A segurança na porta era mínima – mochilas eram deixadas, mas não era feita nenhuma inspeção pessoal. Um homem se juntou às crianças e, ao caminhar ao redor do sarcófago, detonou uma bomba, matando um casal, ferindo gravemente quatro crianças e dois guardas e tirando a própria vida. Tanto o sarcófago como o corpo de Lenin saíram ilesos.

O plano de embalsar o corpo, com uma técnica inovadora para os padrões da época, era de curto prazo. Mas, quando o patologista Alexei Abrikosov percebeu que seria possível conservar o cadáver por mais tempo, o mausoléu se tornou um símbolo socialista. Na Rússia pós-soviética, a frequência ao local não cessou, e os incidentes se tornaram menos graves. Hoje, 95 anos depois, o corpo intacto de Lenin em exibição pública, num traje civil preto, ainda impressiona os visitantes. A entrada é gratuita.

Embora o corpo seja submetido a processos químicos complexos várias vezes ao mês, as visitas são fechadas de 18 em 18 meses para manutenção. Cientistas de um laboratório especial lavam o corpo, submergem-no em líquidos conservante e injetam as substâncias especiais necessárias. A composição química exata, porém, continua sendo segredo de Estado.

Esqueleto, músculos, pele e outras partes do tecido são conservados. Todos os órgãos foram retirados, inclusive o cérebro. A pele, por vezes, é substituída por materiais artificiais. Há experimentos em laboratório para evitar qualquer deterioração acidental. Os cientistas acreditam que, se for cuidado de maneira adequada e embalsamado com regularidade, Lenin poderá durar por séculos.

Sobrevivendo ao revisionismo

Stalin dirigiu a União Soviética de 1924 até sua morte, em 5 de março de 1953. Por três dias, seu corpo foi velado no Salão das Colunas da Casa dos Sindicatos. Estima-se que mais de 2 milhões de pessoas tenham comparecido à despedida de Stalin – um “evento cívico” sem precedentes. Como a aglomeração ficou caótica, mais de 400 pessoas morreram esmagadas e pisoteadas pela multidão.

“Eu tinha 20 anos e morava perto do salão onde o corpo foi velado. Quase morri esmagado por milhares de pessoas que foram chorar a morte do líder”, lembra o jornalista russo Igor Fessounenko. Após o concorrido funeral, o corpo embalsamado de Stalin também foi para o Mausoléu de Lenin, na Praça Vermelha.

Com a ascensão de Nikita Khruschov, obcecado em liquidar o legado do governo do antecessor, a ordem era “desestalinizar”. Monumentos a Stalin foram destruídos, nos marcos de numa iniciativa que abalou o movimento comunista mundo afora. No 22º Congresso do Partido Comunista, Khruschov impôs a mudança do local do túmulo. Havia, no entanto, um problema: a popularidade de Stalin ainda era elevada na União Soviética, mesmo com a propaganda governista.

Daí a operação sigilosa montada “na calada da noite” para, sem alarde, transferir o corpo, na madrugada de 31 de outubro de 1961. Cerca de 30 oficiais – incluindo oficiais da KGB e militares leais a Khruschov – foram envolvidos na operação. Os parentes de Stalin nem sequer foram comunicados da mudança. De início, o corpo foi conduzido a um laboratório. Todas as condecorações e prêmios foram removidos da jaqueta de Stalin – nem os botões e as dragonas dourados foram poupados.

O corpo foi colocado em um caixão de madeira e, em seguida, retirado do prédio para ser instalado em outro ponto da Praça Vermelha, também perto da muralha do Kremlin, quase dois metros abaixo da terra. O túmulo foi coberto com uma placa de concreto. Stalin foi a única pessoa enterrada perto do Kremlin sem funeral, orquestra ou saudação. Na manhã seguinte, o mausoléu abriu novamente, mas apenas com Lenin dentro.

Um dia antes, os soviéticos haviam testado a poderosa bomba nuclear Tsar em Nova Zembla, no Oceano Ártico. A notícia foi fartamente disseminada para ofuscar a saga do corpo de Stalin. O efeito da foi parcial. Com o passar das décadas, enquanto a localização do túmulo de Khruschov, no Cemitério Novodevichy, permanece pouco conhecida, a sepultura de Stalin, com um imponente busto do ex-líder soviético, é ponto de visitação massiva. A visitação é livre para quem estiver na praça.

O cientista Vadím Milov, que trabalhou no mausoléu, diz que o corpo de Stalin embalsamado ainda pode estar em boa forma. “Os cientistas soviéticos procuraram não apenas preservar o corpo – mas também manter sua aparência para que o falecido parecesse estar dormindo. Se o túmulo de Stalin estiver seco o suficiente, seu corpo provavelmente estará bem preservado”, disse Milov, recentemente, ao canal de TV russo Russia Today.

Da Bolívia para Cuba

Capturado pelo exército boliviano em 8 de outubro de 1967, o guerrilheiro argentino naturalizado cubano Che Guevara foi executado um dia depois, com nove tiros à queima-roupa, na aldeia de La Higuera. Aos 39 anos, encerrava-se a vida do homem que, ao lado de Fidel Castro, liderou a épica Revolução Cubana (1959). Seu corpo foi levado ao Centro Médico Nuestra Señora de Malta, no vilarejo de Vallegrande, onde passou por exames e reconhecimento, até ser fotografado sobre uma laje de cimento da lavanderia hospitalar.

As imagens do cadáver de Che foram exibidas à comunidade internacional, correndo o mundo como uma espécie de “troféu” da Guerra Fria. Pertences do guerrilheiro – das roupas aos diários – também viraram notícia. O militar Félix Rodríguez, chefe da operação que levou à morte do guerrilheiro e futuro agente da CIA, reteve, por exemplo, o relógio de pulso de Che, passando a usá-lo e a ostentá-lo.

Em meio a isso, habitantes de Vallegrande já associavam a aparência do revolucionário morto à própria representação de Jesus Cristo. Num célebre ensaio, a escritora norte-americana Susan Sontag comparou as derradeiras fotos de Guevara à pintura renascentista O Cristo Deposto, de Andrea Mantegna. Antes de Sontag, o crítico britânico John Berger também tinha associado o Che morto ao Cristo Deposto ­– e também ao quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt.

Se, por um lado, as autoridades bolivianas deram um involuntário, mas vigoroso estímulo à mitificação da imagem de Guevara, por outro trataram de desaparecer com seus restos mortais. As mãos de Che foram amputadas, enviadas a Argentina para identificação de impressão digital e depois levadas a Cuba, como uma prova definitiva do fim da jornada guevarista. Já o corpo foi transferido para um local não revelado.

“A ordem foi para desaparecer com os restos dele para que não houvesse um lugar de peregrinação”, disse à BBC, em 2017, o general aposentado Gary Prado. Com isso, a família de Che esperou quase 30 anos para saber onde, exatamente, estavam seus restos mortais.

Em 1995, o jornalista e escritor norte-americano Jon Lee Anderson – que fazia entrevistas e pesquisas para seu livro Che Guevara, uma Biografia – encontrou-se com o oficial boliviano Mario Vargas Salinas, um general da reserva que participou da captura de Guevara. De forma surpreendente, o militar revelou que o corpo de Che estava enterrado próximo a uma antiga pista de pouso de Vallegrande. Mesmo aposentado das Forças Armadas, Salinas sofreu represálias.

De todo modo, o “furo” de reportagem, publicado por Anderson no jornal The New York Times, deu origem a uma missão internacional de buscas no interior da Bolívia, com a participação de especialistas cubanos e argentinos. “No início, tudo foi muito complicado”, afirmou à agência Efe, em 2007, Jorge González Pérez, chefe da equipe cubana. “Até 31 de março de 1996, como ainda não havia um estudo histórico sério, tínhamos aberto mais de 200 valas. Então era cavar onde quer que as pessoas diziam que poderia estar.”

Na mesma reportagem, María del Carmen Ariet, outra integrante cubana da missão, lembrou a “tensão” da última etapa do rastreamento, que impôs uma “corrida contra o relógio”. Tudo porque Hugo Banzer, “o ditador boliviano”, se elegeu presidente – “o que representava um risco para a busca”. Banzer, uma vez no cargo, deu 48 horas para a missão encerrar os trabalhos.

Sem contar a ação de pessoas interessadas em impedir a localização do corpo de Che. “Exemplo disto foi a visita do agente da CIA de origem cubana Félix Rodríguez, que, diante da proximidade da descoberta, apareceu em um pequeno avião em Vallegrande para indicar que o enterro aconteceu em um local distinto de onde nós buscávamos.”

A um dia do fim do prazo imposto por Banzer, a missão foi bem-sucedida – para “alívio muito grande” de toda a equipe, segundo González Pérez. Os cubanos aceleraram a busca e, às 9 horas de 28 de junho de 1997, um sábado, descobriram duas valas comuns, com sete corpos. O de Che foi o segundo a ser encontrado. “Ao cavar a vala, o braço da escavadeira se prendeu ao cinto de Che, que tinha sido enterrado com seu uniforme. Assim foi encontrada a sua ossada”, lembrou o especialista.

A identidade do cadáver de Che foi confirmada dias depois, com base em diversos indícios – as mãos amputadas, a saliência dos arcos superciliares, a arcada dentária, o casaco verde-oliva com o qual ele fora morto, seu saco de tabaco para cachimbo e resíduos do gesso da máscara mortuária presos ao casaco. Nas palavras do Granma, jornal do Partido Comunista de Cuba, foi uma “verdadeira proeza da ciência”, marcada pela “integração exemplar entre a investigação histórica, a sociologia e outras ciências sociais”.

Com a descoberta, aconteceu justamente o que os militares bolivianos temiam: o povoado de Vallegrande virou ponto de peregrinação. A vala de Che foi coberta e protegida por uma espécie de capela, que hoje é a grande atração turística do vilarejo. As paredes do local exibem fotos de todas as épocas da vida do argentino-cubano.

A missão regressou a Cuba ao lado das ossadas, pousando em Havana em 12 de julho de 1997. Os restos mortais de Che Guevara e de seus companheiros “de armas” foram velados no Memorial de Santa Clara, a 300 quilômetros de Havana. Santa Clara foi a cidade onde Che comandou uma das mais importantes batalhas da Revolução Cubana.

O governo socialista ergueu no local o Complexo Escultórico Ernesto Che Guevara – um mausoléu onde os sete guerrilheiros foram sepultados, com honras militares, em 17 de outubro de 1997, pouco mais de três décadas após a execução de Che. Ao lado do túmulo de Che, o guerrilheiro também foi homenageado com uma estátua de bronze de mais de 6 metros de altura e um museu.

O mausoléu recebe, a cada ano, quase 400 mil visitantes, principalmente turistas alemães, franceses, italianos, ingleses e argentinos, que se somam aos cubanos de diferentes províncias do país. Em dezembro de 2016, depois da morte de Fidel Castro, as cinzas do comandante-em-Chefe chegaram a repousar por uma noite no local.

Da Redação, com Aventuras na História, Russia Beyond e agências

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