Juntos somos uma potência, diz Linera sobre a integração regional

Álvaro García Linera não titubeia ao afirmar que a Unasul e a Celac são mecanismos de integração fundamentais para o desenvolvimento soberano da região. Segundo ele, estes organismos são o que tornaram possível o diálogo e a resolução de nossos próprios conflitos sem a interferência externa de outros países, principalmente os Estados Unidos.

Foto: Guadalupe Lombardo

Este é o tema da segunda parte da entrevista concedida pelo ex-vice-presidente da Bolívia ao Conselho Executivo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag). Esta é a primeira análise de fôlego feita por Linera desde o golpe na Bolívia. O Vermelho traz o material completo em três partes.

Leia a parte 2:

Celag – Quais são os principais desafios das forças de espectro progressista na região, considerando o contexto global de avanços da hegemonia neoliberal e a radicalização das forças conservadoras?

García Linera – Em termos gerais, construir expansiva força social, fora política mobilizada e força ideológico-cultural tanto para a luta de resistência contra as ofensivas neoliberais como para a luta pelo poder estatal, mas também para a defesa de suas conquistas e seu aprofundamento.

Se diz com facilidade em um parágrafo, mas na realidade é a ação humana mais complexa e trabalhosa do mundo. As pessoas, os coletivos e as sociedades podem atravessar décadas e até séculos nesta busca desta força social e não conquistá-la. Entretanto é só este horizonte o que confere dignidade histórica às classes plebeias e à história humana; e ao final, em algum lado, algum momento, todos os sofrimentos, as derrotas e os abusos suportados podem encontrar um alívio repentino que devolva ao povo a liberdade de construir ele mesmo seu destino.

De maneira suprimida, força social significa capacidade de unir, de articular as frações, os fragmentos, as divisões e os sectarismos internos das classes populares. Por definição, a experiência da subalternidade é a experiência da desunião, e então os esforços para que a gente humilde encontre em seus companheiros de destino mais afinidades que diferenças e busque soluções a seus problemas de maneira mais coletiva que individual, é a formação de um corpo social cada vez mais extenso em que seus integrantes amarram seu devir aos dos demais.

Força política é a capacidade de que essa articulação de ações e expectativas populares assuma a vontade de governar, a convicção prática de dirigir o país como um recurso inevitável para dar validade material e legal a seus requerimentos.

E força ideológico-cultural é a capacidade de conquistar o consentimento ativo dos mobilizados, dos neutros e inclusive dos que apenas observam os acontecimentos, de que o que se propõe, se faz, se diz e se busca será em benefício de toda a sociedade, ou ao menos para a maior parte dela. Nunca há vitórias populares práticas, nem politicas nem econômicas, se previamente um parte da sociedade, começando pelo próprio povo, não está convencido da legitimidade destes objetivos.

De forma mais precisa e particular no caso dos governos progressistas da América Latina, há três tarefas fundamentais para defender e aprofundar o que foi conquistados.

A primeira é seguir ganhando de maneira multiforme e em todos os terrenos possíveis as batalhas das ideias legítimas da sociedade, o monopólio das ideias for à direto do sentido comum predominante em torno ao qual as pessoas organizam sua vida diária e suas expetativas de futuro imediato. É na direção dos componentes do sentido comum onde ao final se dissipam as lógicas factuais do poder de toda nação. Nunca esquecer que se as tarefas dos governos progressistas vão se cumprindo de forma gradual, as condições de vida das classes trabalhadores vai melhorando e, ao fazê-lo, as expectativas sociais dos setores populares também vai se modificando; ou seja, o curso do sentido comum vai se transformando. O espaço de expectativas das classes populares com condições financeiras baixas há de ser distinto das expectativas emergentes de quando se tem condições financeiras médias; e se os governos não sabem compreender esta mutação de campos de expectativa social, manterá um discurso válido para uma determinada composição popular, mas inorgânico e anacrônico para a nova composição das classes populares.

E, por fim, se só as forças conservadores conseguem entender esta modificação de narrativas sociais, vão converter a conquista de relativo bem-estar popular em uma arma confrontada com os que foram seus impulsores, os governos progressistas.

A segunda, dar mostras palpáveis, convincentes e duradouras de que a busca de modelos econômicos alternativos ao neoliberalismo ajuda a reduzir as desigualdades sociais e geram mais bem-estar às lasses majoritárias que o que se tinha anteriormente. Os sacrifícios que todas as lutas por igualdade supõem não podem ser indefinidos; a superioridade moral dos ideais têm que vir acompanhada de modos palpáveis de conquista de espaços de bem-estar que reafirmem a convicção de que, ainda que seja largo o caminho, é melhor que o anterior abandonado. O pos-neoliberalismo não pode ser só um discurso contestatório: tem que ser uma maneira de reorganizar o uso dos bens comuns, de produzir e redistribuir a riqueza de tal forma que se vá criando mais igualdade e melhorias para as classes plebeias.

A terceira, manter modos de mobilização social capazes de defender as conquistas, os direitos ampliados que trouxeram os processos progressistas. Todo processo progressista em favor da igualdade que triunfa politicamente supõe distintas maneiras de mobilização social, de autoorganização pública de classes plebeias. Sua transformação em poder de Estado não deve significar a dissolução, nem a burocratização, nem a debilitação de formas de organização social, mas uma transformação adequada às novas circunstâncias, para ser poder social em vez de poder estatal. É nesta dualidade que ocorrem as tensões políticas, onde está a chave para a defesa e expansão das experiencias progressistas.

Estar no Estado e estar simultaneamente fora do Estado é uma contradição. Mas no caminho esta contradição se torna a chave da continuidade e defesa da experiência progressista de democracia como construção de igualdade.

Só poder social sem poder estatal deixa nas mãos das classes endinheiradas o monopólio e os recursos estatais que serão utilizados para desmontar, mais cedo que tarde, o poder social conquistado pelas classes populares. Mas por sua vez, só o poder estatal sem poder social que o acompanhe sempre converte a força e a luta social em meras engrenagens administrativas do Estado, e suas intenções e decisões, por mais favoráveis que sejam ao povo, não só serão decisões tomadas pelos que monopolizam o poder do Estado, mas que a defesa ou o fim dessas medidas vai reais nas próprias estruturas coercitivas do Estado e já não na própria sociedade.

E ao final, neste caso a duração do progressismo dependerá do humor das forças coercitivas do Estado, sempre sucetíveis ao suborno dos poderes factuais internos e externos, e ao enquadramento com as emissões discursivas das classes altas inimigas da igualdade. Quem afinal defenderá suas conquistas diante das múltiplas ameaças necessariamente tem que ser a própria sociedade organizada, as distintas formas orgânicas que as próprias classes populares, por território, profissão ou afinidade, criaram ao largo das lutas contra o neoliberalismo.

A força social que triunfa e sustenta as experiências progressistas não pode ser somente administradora do Estado. É um feito de igualdade que os setores plebeus possam ocupar a gesta estatal, mas também é uma necessidade imprescindível do próprio triunfo popular manter a vitalidade da força social fora do Estado. Estar no Estado e estar simultaneamente fora do Estado é uma contradição. Mas ao longo do caminho esta contradição se torna a chave da continuidade e defesa da experiência progressista da democracia como construção da igualdade.

Garcia Linera e as lições da América Latina para a esquerda – EFE

Usando como exemplo a experiência da primeira década do século 21, que mecanismos de integração regional seriam necessários reativar ou fortalecer prioritariamente no contexto atual e que papel poderiam assumir os governos do México e da Argentina neste processo?

Unasul e Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] são dois organismos continentais que emergiram no momento de maior autodeterminação continental em toda sua história, desde as guerras de independência do século 19.

Este ato de auto-identificação continental que rompia com a vergonhosa vassalagem de governos ao dinheiro e aos comandos dos Estados Unidos nos exigiu dos governos latino-americanos unanimidade de crenças políticas. Apesar de ambas as organizações terem nascido em momentos de uma maioria de governos progressistas no continente, isso não supunha nenhuma homogeneidade ideológicas, nem perto disso. Os governos progressistas tinham posturas ideológicas bastante diversas e inclusive vários países importantes como Colômbia e México eram governados por presidentes claramente conservadores. Entretanto, para além desta pluralidade ideológica, prevaleceu em todos eles uma força moral de que nós, os latino-americanos, podemos debater e defender nossos assuntos de interesse comum sem precisar de tutelas ou apadrinhamentos.

E com esta mudança de postura se começou a escrever uma história continental de novo tipo, à margem de controles coloniais e submissões voluntárias. Foi uma década de ouro da dignidade latino-americana. Isso não significa que tenhamos conquistado a unidade continental econômica. Esse é um longo caminho marcado por uma infinidade de dificuldades e desafios que apenas começamos a vislumbrar. Mas o inestimável valor das experiências da Unasul e da Celac é que os objetivos de buscar como povos latino-americanos os desenhos a se construir para a unidade, as dificuldades a superar, começamos a debater entre os latino-americanos. Pela primeira vez em cem anos não tinha nenhum norte-americano simulando uma fala em espanhol querendo nos ensinar o que deveríamos fazer. O fato é que, definitivamente, somos outros continente, com outras culturas, outras necessidades radicalmente distintas da norte-americana. E mesmo que em algum momento tenhamos que pensar em uma unidade de todas as Américas, para que essa unidade não seja uma nova vassalagem é necessário previamente um longo caminho de unidade econômica, política e cultural dos latino-americanos.

Hoje a Celac e a Unasul estão congeladas. De fato estes organismos são vistos como uma ofensa aos Estados Unidos, quando na verdade o único que se fez foi ter o direito de falar só entre latino-americanos. A revitalização destes mecanismos é uma obrigação de dignidade e de necessidade material continental porque necessitamos um espaço comum para buscar entre latino-americanos as maneiras de colaborarmos para fazer frente ao caos econômico planetário que ameaça arrasar as condições de vida de nossos povos. Cada país sozinho por conta própria é irrelevante para o mundo. Juntos somos uma potência a ser levada em conta.

Mas isso requer não só um maior número de países com governos progressistas, mas além disso, que o Brasil – maior economia continental – mude seu rumo politico. Sua densidade territorial, geografia e demográfica curva o espaço-tempo continental e mundial, e sua presença ativa é decisiva. Portanto, é necessário implantar articulações geograficamente descontinuadas para avançar em acordos comerciais e produtivos frente à recessão econômica mundial, para elaborar agendas temáticas comuns e etc. Mas o que não precisa de outra correlação de forças estatal é a articulação continental territorialmente contínua dos povos, das organizações populares que lutam por uma pátria dignai e pela igualdade. É o cenário da sociedade civil em luta o lugar onde deve-se desenvolver maiores esforços para ir construindo uma plataforma de debates e ação coletiva em defesa dos direitos dos povos.

Leia a primeira parte da entrevista: América Latina pode apontar rumos da democracia no mundo, diz Linera

Por que teve êxito esta última tentativa de golpe de Estado na Bolívia? Que circunstâncias e atores acredita que possibilitaram hoje e que não estiveram presentes na tentativa de 2008?

Tanto o golpe de Estado de 2008 como este de 2019 tiveram como base social mobilizada a classe média tradicional; no primeiro caso era um rechaço aos processos de igualdade e participação social anunciados, e neste segundo é o rechaço aos processo de igualdade e participação social alcançados. Com uma diferença: em 2019 a rebelião das classes médicas tradicionais teve uma presença territorial extensiva a todas as principais cidades da Bolívia; já não era uma mobilização regional restrita às regiões do Oriente, como em 2008; desta vez ocupou as principais cidades dos 9 departamentos. Por sua vez, as organizações sociais populares também conseguiram mobilizar setores camponeses, trabalhadores e lideranças locais em nível nacional, e desta forma foi possível conter e até debilitar as forças reacionárias. Mas a diferença decisiva que modificou drasticamente a correlação de forças foi a inclinação da Polícia e logo das Forças Armadas ao golpe de Estado. Por fim, isso foi o que definiu a vitória dos restauradores.

Em 2008, tanto a Policia quanto as Forças Armadas, igual agora mostraram uma debilidade suspeita para defender as instituições estatais. Mas à época pelo menos se mantiveram “neutros” nesta disputa social e só saíram quando a vitória popular havia sido alcançada. Em 2019, porém, em momentos em que a capacidade de mobilização das forças conservadoras declinava e não conseguiam se vitimizar apesar das reiteradas provocações que tentaram para ser reprimidos, os pronunciamentos da Polícia e logo das Forças Armadas, desconhecendo a ordem constitucional e colocando as armas do lado dos golpistas, definiu o cenário. A partir deste momento a possibilidade de emplacar o golpe se tornou real porque as forças trabalhadoras, camponesas e populares enfrentaram às instituições armadas com a iminência de centenas de mortos nos setores populares. E essa foi a decisão que não tomamos, nem teríamos tomado em nenhuma circunstância.

Entrevista: Celag

Tradução e adaptação: Mariana Serafini

Leia nesta quinta-feira (30) a terceira parte da entrevista.