PM de João Doria admite responsabilidade em chacina de Paraisópolis

Relatório oficial segue a linha bolsonarista e cita a legítima defesa como “excludente de ilicitude” para pedir a não punição dos PMs

O relatório final da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo concluiu que a chacina de nove pessoas durante baile funk em Paraisópolis, no final de 2019, decorreram da ação policial desencadeada naquela madrugada. Porém, na linha bolsonarista, a PM cita a legítima defesa como “excludente de ilicitude” para pedir a não punição dos PMs, ainda que os jovens assassinados estivessem desarmados e não ameaçavam a vida de policiais. A Polícia Militar é um órgão estadual, subordinada ao governador João Doria, do PSDB.

O termo “excludente de ilicitude” ganhou notoriedade após o nefasto projeto anticrime do governo Jair Bolsonaro, capitaneado pelo ministro Sérgio Moro. Conforme a proposta, a polícia precisava ter um dispositivo para permitir a redução da pena até a metade – ou mesmo sua não aplicação – em casos de ações causadas por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Em outras palavras, Bolsonaro e Moro propunha uma “licença para matar”.

Como isso se aplicaria ao caso de Paraisópolis? Segundo o documento assinado pelo presidente do Inquérito Policial Militar, capitão Rafael Oliveira Casella, os policiais não teriam cometido crime porque agiram “em legítima defesa própria e de terceiros” após serem atacados com “garrafas, paus, pedras e demais objetos”.

A decisão dos policiais, de acordo com o relatório, teve aval do comando da corporação. “Aponto o nexo de causalidade entre a ação dos 31 policiais militares averiguados  e a morte das nove vítimas na comunidade de Paraisópolis, porém marco que houve excludente de ilicitude da legítima defesa própria e de terceiros”, diz trecho do documento obtido pela Folha de S.Paulo.

A legislação brasileira já prevê excludente de ilicitude em algumas hipóteses. No caso de Paraisópolis, como se trata de um inquérito no âmbito militar, a PM utiliza o artigo 42 do Código Penal Militar que, em seu inciso 2º, diz não haver crime quando um ato é praticado em legítima defesa.

O mesmo artigo vê como excludente o fato de o ato ter sido praticado em estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito. É com base nesse documento da Corregedoria, entregue à Justiça Militar no mês passado, que a Polícia Militar solicitou o arquivamento das investigações contra os policiais militares. O Ministério Público pediu, porém, novas diligências.

Segundo a versão oficial (que carece de provas concretas), os agentes iniciaram a perseguição após ocupantes de uma moto dispararem contra policiais da Rocam (rondas com apoio de motocicletas). A perseguição teria se estendido até uma rua onde estavam concentrados os frequentadores do baile funk.

Os policiais disseram que os criminosos se embrenharam pela multidão atirando, o que provocou o corre-corre e o pisoteamento de vítimas. Também disseram que foram atacados com paus e pedras pelos frequentadores do baile, sendo necessário acionar apoio. Para resgatar esses policiais militares de moto, ainda segundo a primeira versão do governo paulista, outros PMs teriam ido até o local de viaturas maiores (como as SUVs da Força Tática) e usado armas não letais, como bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e bala de borracha.

Só que a investigação da Corregedoria não confirmou que foram os disparos feitos pelos bandidos que provocaram o tumulto e, com isso, as mortes. Como a Folha havia revelado, a investigação confirmou que as motos da Rocam já tinham deixando o fluxo do baile funk para evitar conflito, mas voltaram para ajudar a resgatar os PMs da Força Tática.

O ponto considerado chave em todo resultado é quando a primeira viatura da Força Tática – que foi ao local para tentar apoiar as equipes da Rocam – tem um dos vidros quebrados. “Acuados, os militares sozinhos naquele momento, tentam utilizar meios não letais, a fim de repelir uma injusta agressão pontual e iminente, zelando pela integridade física daquela equipe.”

Na sequência, com mais reforços, teria começado a confusão no fluxo do baile funk. “Neste momento há um tumulto generalizado naquele local, assim iniciando uma evasão em massa. Nesta ocasião, por falta de conhecimento do local (geografia), bem como interesse em fugir daquela autoridade pública, muitas pessoas optaram por adentrar a uma viela (Viela do Louro) existente na Rua Emest Renan, entre as ruas Herbert Spencer e RodolfLotze, onde houve o pisoteamento e aglomeração.”

É a base pela qual o oficial da Corregedoria viu a relação de causalidade entre as mortes e a ação dos policiais. De forma marota, o documento diz não ser possível individualizar as condutas de cada policial na ação, nem ter certeza de que os PMs fecharam as principais vias de fuga, conforme apontaram as testemunhas civis.

Mas, além de citar os PMs como responsáveis pelas mortes, o documento indica corresponsáveis pela tragédia, entre eles os próprios responsáveis pelos jovens. “Notadamente, todos negligenciaram o ‘pátrio poder’ e subsidiariamente têm suas parcelas de responsabilidades pela omissão na guarda dos menores.” O relatório ao menos lista uma série de falhas operacionais dos agentes, como GPS das viaturas desligados, e sugere abrir investigação.

​Indagada a respeito das falhas apontadas no relatório da Corregedoria, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) apura todas as circunstâncias relativas aos fatos, incluindo as responsabilidades civis. “Os laudos periciais já concluídos, de acordo com a autoridade policial, demonstram que as vítimas têm traumas compatíveis com pisoteamento. O conjunto probatório pericial é analisado pelo DHPP”, disse o organismo em nota.

Com informações da Folha de S.Paulo

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