A política de segurança pública e eliminação de corpos negros

Assassinatos de João Pedro e João Vitor revelam nível de banalização da violência e comprovam racismo estrutural nas políticas públicas

João Pedro tinha 14 anos. Na última segunda-feira (18), enquanto jogava sinuca com os primos dentro de casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, foi assassinado durante uma operação que envolveu as Polícias Federal, Civil e Militar do Rio de Janeiro. A bala – uma das 72 disparadas dentro da casa em que estava – atravessou o corpo do adolescente, que só foi localizado pela família no dia seguinte, 17 horas depois que o helicóptero da PM o levou, supostamente para socorrê-lo.

A declaração posterior das forças de segurança do Rio foi a de que “João Pedro era inocente”. Dois dias depois, durante uma ação da comunidade para distribuição de cestas básicas na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, João Vitor, de 18 anos, foi baleado pela PM, durante outra operação. Desde 15 de março, segundo a Rede dos Observatórios da Segurança, a polícia do Rio matou pelo menos 69 pessoas em operações monitoradas.

Em nota divulgada na terça-feira, antes mesmo da morte de João Vitor, a Anistia Internacional, a Justiça Global e o Coletivo Papo Reto exigiram explicações do governo do estado e do Ministério Público Estadual, que tem o dever constitucional de controle externo da atuação da polícia. “Qualquer operação policial deve seguir padrões de respeito à vida e à segurança das pessoas e, em meio a uma pandemia, quando todos os esforços deveriam estar voltados para garantir saúde e vida da população, o Estado do Rio de Janeiro se faz presente nas favelas do Estado levando violência e morte”, declarou Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.

Na nota, as organizações destacam que não são apenas os direitos à vida e a um julgamento justo que estão sendo retirados de pessoas culpadas por algum crime, mas o direito à vida, à segurança e à dignidade humana de milhares de pessoas que são colocadas em risco desnecessário – como João Pedro e João Vitor. Elas lembram que o Estado brasileiro já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por outra operação no Complexo do Alemão e que o Brasil é o lugar em que a polícia mais mata no mundo.

Em 2015, a Anistia Internacional Brasil lançou o relatório “Você matou meu filho”, em que apresenta o resultado de uma pesquisa com testemunhas, policiais, especialistas e autoridades públicas sobre violações aos direitos humanos praticadas durante operações da polícia. Entre elas, abordagens ilegais, ameaças, uso desnecessário da força, invasões de domicílio, tortura, execuções extrajudiciais e desfazimento da cena do crime. O estudo comprova que muitas vítimas são alvejadas nas costas, à curta distância e nos membros superiores, indicando que estavam fugindo ou rendidas no momento em que foram mortas.

“É importante que as polícias atuem com inteligência e realizem operações policiais somente quando outras alternativas mais adequadas tiverem falhado. Além disso, as polícias devem atuar no limite imposto pelos códigos de conduta profissional aprovados pelo Brasil, que incluem uso progressivo e proporcional da força, e o uso de armas de fogo apenas quando necessário para proteger a vida do policial ou de outra pessoa de um ataque iminente”, afirma a nota.

Na quinta-feira (21), a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados protocolou um ofício direcionado ao governador do Rio, Wilson Witzel, reforçando que situações como estas não podem ficar impunes. Os parlamentares cobram a punição e imediato afastamento dos responsáveis pelas ações criminosas e pedem o fim desse tipo de operação, que mata indiscriminadamente.

Política da morte

Para especialistas e defensoras de direitos humanos ouvidas pela Carta Maior, as mortes ocorridas em operações não são, entretanto, erros ou danos colaterais da atuação da polícia. Elas fazem parte de uma política de segurança pública que tem o objetivo de exterminar a população periférica e negra do país. E, se antes, a justificativa dada era a de que os mortos eram suspeitos ou bandidos, a banalização da violência alcançou níveis tão altos que, agora, vale tudo.

“Chegamos num ápice. A política de segurança pública do Rio de Janeiro nada mais é do que é a efetivação de uma necropolítica eficaz, que tem como base o racismo e a eliminação de uma parcela indesejada da sociedade. Ter o governador do Rio de Janeiro dizendo que não tem responsabilidade pelo que a polícia faz porque ele não manda na polícia é isso. Então quem manda? É um Estado que se assume escancaradamente racista e com um projeto muito bem definido e delineado de eliminação de pessoas periféricas, que moram em favelas, que em sua maioria são pessoas pretas”, afirma Silvia Souza, advogada e integrante da Educafro.

Na avaliação de Rafaela Albergaria, mestre pelo programa de pós-graduação em serviço social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que estuda os aspectos de permanência da racialização da violência nas políticas criminais no país, as expressões da violência que temos hoje não são específicas de um tempo. Elas nos conformam enquanto nação e estão retratadas em quem são os alvos prioritários, historicamente, nos territórios de periferia.

“A implementação desigual das normas gerais não é um erro ou dano colateral, é o objetivo. O racismo estrutural determina que a política institucional seja a eliminação desses corpos. Num contexto de pandemia, em que a prioridade deveria ser o combate a esse vírus, temos um processo de genocídio continuado nesses territórios”, relata a pesquisadora. “E se constrói uma justificativa sobre as operações sustentada na desvalorização dessas vidas, o que torna essas mortes aceitáveis. Sistematicamente, as mães tem que provar que os filhos não eram bandidos, porque a primeira coisa que a mídia pergunta é se quem morreu era suspeito, como se fosse legítimo matar quem é”, acrescenta.

A advogada Silvia Souza lembra que a legislação brasileira estabelece tipos penais suficientes para o que a polícia entende como “ser suspeito ou perigoso”, que não culminam em assassinatos. “Neste casos, as pessoas já estão sendo condenadas. É uma falácia dizer que não existe pena de morte no Brasil, porque a polícia já condena à morte antes mesmo de chegar a um tribunal. É algo que não está escrito na lei, mas que é sistematicamente legitimado pelo Estado”, critica. “E quais são os corpos que a sociedade aceita que sejam mortos? Quais são os matáveis e os não matáveis? O fato disso ser aceitável é uma característica da necropolítica, que legitima o Estado matar uma pessoa porque ela é suspeita de algo”, explica.

Segurança pra quem?

Diante da centralidade que a política de segurança ganhou na pauta nacional desde 2018, com a eleição não apenas do atual presidente da República mas do maior número de candidatos oriundos de forças em segurança, e de propostas como a do excludente de ilicitude, que visa desresponsabilizar policiais por mortes decorrentes de operações na periferia, Rafaela Albergaria acredita que é mais do que fundamental questionar que segurança é essa e para quem.

“Quando observamos o que aconteceu essa semana, com várias operações num contexto de pandemia, com pessoas assassinadas dentro de casa e territórios invadidos com a polícia atirando, vemos que essa política está baseada na garantia de segurança dos territórios mais elitizados. A segurança é a de quem tem poder e dinheiro, que legitima a morte de quem está na periferia. É impossível transpor a ideia de uma operação com caveirão aéreo, que passa atirando, para a Zona Sul do Rio ou para o bairro de Higienópolis, em São Paulo. E essa é uma realidade que marca a vida cotidiana nas periferias. Um das maiores apreensões de armas da história, feita no condomínio do presidente Bolsonaro, aconteceu sem um tiro disparado. Então fica muita clara a construção racializada da política de segurança”, explica a pesquisadora, que cresceu na Baixada Fluminense e já perdeu familiares pela violência do Estado.

“Entramos num ciclo de naturalização da morte dessas pessoas. Se isso tivesse acontecido num apartamento no Leblon ou em Copacabana, já teríamos mobilizações imensas em todo o Rio de Janeiro e no Brasil contra esses atos. Mas como isso acontece num lugar em que as pessoas são consideradas matáveis, sem importância, não tem repercussão. Isso mostra o quanto a nossa sociedade é estruturalmente racista”, reforça Silvia.

Para ambas, trata-se de um ciclo normatizado pelo Legislativo, gestado dentro dos órgãos que compõem os Executivos nas diferentes esferas da Federação e operacionalizado na prática pelas instituições que estão na ponta, como as polícias. Mas que passa também pelo Ministério Público, que muitas vezes não investiga essas mortes, e pelo Judiciário, que não responsabiliza os policiais, tampouco o Estado, gerando a perpetuação da violência. Para romper este ciclo, seria necessário, além da humanização dessa parcela majoritária da população e da responsabilização dos agentes públicos, a garantia da não repetição de práticas e o desenho de uma política de reparação pela violência letal do Estado.

“Hoje, quem operacionaliza a política de segurança pública diz que ‘tem que matar mesmo’, e isso tem impacto. Precisamos de atores políticos comprometidos com a mudança desse contexto. Mas como ninguém projeta o que não conhece, é fundamental ampliar o acesso dessas populações às instâncias de poder. Precisamos de políticas afirmativas que permitam a participação das decisões sobre as possibilidades de vida e morte das populações que mais dependem do Estado. Isso parte da dilatação de espaços democráticos, e o que estamos vivendo é um contexto exatamente contrário. Se não construirmos ferramentas para isso, nunca teremos políticas capazes de superar a desigualdade sistêmica de nossa sociedade”, conclui Rafaela.

Publicado originalmente na Carta Maior

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