Jorge Mautner: Artistas mudam a realidade e têm de ser ouvidos
“O Brasil se fez com os cantos e os atabaques dos negros trazidos como escravos. Getúlio Vargas governou o Brasil através da Rádio Nacional. Tudo aqui é música, é poesia”
Publicado 24/05/2020 14:50 | Editado 25/05/2020 13:10
Resguardado em casa devido à pandemia do novo coronavírus, Jorge Mautner não para de produzir. Poemas inéditos do multiartista têm aparecido com frequência em seu perfil no Instagram.
Além da criação prolífica, Mautner é conhecido pelos pensamentos progressistas desde que fundou, no fim dos anos 1950, o Partido do Kaos, levantando bandeiras como a defesa do meio ambiente e a diversidade sexual. Em 2017, A Bandeira do Meu Partido, canção de sua autoria, tornou-se o hino oficial do PCdoB.
Em entrevista por e-mail ao Estadão, Mautner – que completa 80 anos em janeiro de 2021 – fala sobre o impacto da pandemia na humanidade, faz considerações sobre a situação atual dos artistas e afirma manter a fé no Brasil. Leia trechos.
Estadão: Como estão as coisas e como você tem passado por esse período de resguardo? Está na sua casa no Rio?
Jorge Mautner: Sim, estou na minha casa, sem sair. Lendo, escrevendo, falando com a minha filha, com a minha esposa e com meu amigo João Paulo Reys (que trabalha com Mautner).
Estadão: Como está sua relação com a criação neste momento de quarentena? Você está produzindo?
JM: Sempre produzi muito. Os fatos, para sempre e em todos os instantes, mesmo lá atrás, são muito fortes, são muito importantes. Sempre tive um pensamento fundamentado na história. Tudo é história. Tanto as estórias como a História, mas é tudo uma história só. Tudo que é da história me abala. Toda semana, com a ajuda do João Paulo pelo telefone, tenho publicado novos inéditos poemas em meu Instagram.
Estadão: Pensa em fazer uma live?
JM: Olha, fazer lives não se coordena com a minha situação atual. Mas eu recomendo que consultem o meu portal Panfletos da Nova Era, que é uma obra-prima feita pelo João Paulo e pela Maria Borba. Lá estão infinitos shows gravados, entrevistas que eu dei, recomendações de leitura. É interessantíssimo.
Estadão: Os shows estão parados neste momento. As plataformas digitais revolucionaram o consumo de música e as lives são um caminho para que cantores e compositores apareçam para o público, mas o dinheiro para os profissionais das artes em geral está escasso. Como resolver essa questão?
JM: Recebo direitos autorais e tenho a minha filha Amora Mautner (diretora da TV Globo), que me financia o apartamento onde moro, a comida que como. É isso. Infelizmente, minha situação é um privilégio para poucos. Penso que nesse momento extraordinário deveria haver subsídios públicos urgentes para quem está precisando. A arte é fundamental para a vida do ser humano. O Brasil se fez com os cantos e os atabaques dos negros trazidos como escravos. Getúlio Vargas governou o Brasil através da Rádio Nacional. Tudo aqui é música, é poesia. O brasileiro e a brasileira vivem em plena imaginação de criatividade permanente.
Estadão: Em entrevista ao Estadão, seu amigo Gilberto Gil disse ser otimismo demais que a pandemia tenha força para refundar a essência das pessoas. Você concorda?
JM: Acho que toda essa experiência altamente traumática de sofrimento e dor, com a chegada do vírus contrastando com as conquistas inacreditáveis da ciência, incentivará a imaginação de todos. É preciso falar sobre essas coisas de qualquer maneira para que elas mudem para sempre. O filósofo Carvaka disse que apenas duas coisas importam: boa digestão e nenhuma consciência. Nos Upanishads (escrituras consideradas instruções religiosas pelo hinduísmo), está escrito: tudo é sofrimento. E logo abaixo: gostar de tudo que acontece. Por fim, as últimas palavras do Buda: embora seja inútil, não negligenciai esforços.
Estadão: Regina Duarte foi criticada por artistas, especialmente após a entrevista dada para a CNN. Qual sua opinião sobre ela? (a entrevista foi feita antes de Regina deixar o cargo)
JM: Não concordo em nada com o que ela diz. A visão dela está equivocada. É justamente nas horas mais atrozes que as vozes dos artistas têm de ser ouvidas. Eles mudam a realidade da história. Nas escolas de samba, nos candomblés, em todos os lugares, as pessoas continuam compondo e fazendo versos que, no fundo, são orações para o bem-estar em direção a uma felicidade que se situa tanto no futuro distante como no instante em que ela está sendo fabricada no meio do horror, exaltando o amor.
Estadão: Você batizou seu disco mais recente com o título Não Há Abismo em que o Brasil Caiba, frase de Agostinho da Silva. Essa frase continua válida para o Brasil de 2020, diante de tantas divisões políticas e de questões relativas à desigualdade social potencializadas pelo novo coronavírus?
JM: Sim, as palavras de Agostinho são cada vez mais atuais. Quanto maior o contraste com que vivemos, maior será a força do contrário. Nunca poderemos nos calar. O tempo todo, as orações, as músicas, os cânticos, a poesia, a pintura trarão sempre o átomo do otimismo. Isso não quer dizer que esse otimismo ignore o pessimismo e o terror. Ele apenas os engloba e os transforma em algo superior.
Estadão: Há quem afirme que a pandemia pode servir de pretexto para o fim da democracia em alguns países. Você vê essa perspectiva como verossímil?
JM: Vejo sempre todas as possíveis perspectivas de tudo. O acaso, as intenções, o instante do momento em que tudo se dá forjam as saídas mais surpreendentes. Mas acho que uma situação em que, num mundo de 8 bilhões de pessoas, a renda é concentrada nas mãos de 1% terá que se acabar. Isso se dará quando todos tiverem condições de trabalho digno, de tempo para o devaneio – que talvez seja o mais importante, porque é o da criatividade e do amor. A ciência está do nosso lado e a maioria dos povos do mundo também está do nosso lado, no sentido de estar do lado dessa ideia.
Estadão: Quais seus planos para 2020?
JM: Os planos são os que estou concretizando. Escrever, cantar, falar, irradiar a notícia sempre nova da esperança. A esperança não é a última que morre – ela nunca morre. E, como disse São Paulo, mesmo quando não houver mais nem fé, nem esperança, o amor continuará a resplandecer no universo. “A religião é o coração de um mundo sem coração”, disse Karl Marx.
Estadão: Em 17 de janeiro de 2021, você faz 80 anos. Como quer ver o Brasil e o mundo no dia do seu aniversário?
JM: Deslumbrantes, com emprego para todos os brasileiros, salários dignos, nossas florestas asseguradas, a liberdade imperando em todos os lugares, a compreensão mútua. A compreensão mútua é a mais importante, e acontece sempre que se encontram opiniões diferentes ou mesmo inimigas em conversas, música, na ação, na experiência da vida. Tudo dentro do limite dos Direitos Humanos, que são sagrados e devem ser sempre respeitados e não são questão de opinião. A resposta é o trabalho, mas o trabalho criativo. No caso do Brasil, só avançaremos quando proclamarmos a segunda abolição da escravidão exigida por Joaquim Nabuco.
Com informações do Estadão
Jorge Mautner. Um grande exemplo de vida para nos Comunistas .