Como se cria uma identidade paulista e paulistana
A tela “Fundação de São Paulo’, de Oscar Pereira da Silva, retrata tanto um fato histórico quanto determina o que é ser paulista e paulistano
Publicado 25/01/2021 20:46
No dia 25 de janeiro de 1554, uma quinta-feira de céu claro e algumas nuvens, um grupo de 13 padres jesuítas rezou uma missa histórica na então aldeia de Piratininga – “lugar onde se seca o peixe”, em tupi – depois de subir a trilha que saía da vila de São Vicente.
Entre eles estavam os portugueses Manoel da Nóbrega, Manoel de Paiva – superior do grupo – e Afonso Brás, além do noviço espanhol José de Anchieta, de 19 anos.
O lugar, uma pequena colina, era ladeado pelo sinuoso e lento rio Tamanduateí (rio do tamanduá, em tupi).
Ali, em uma área de cerca de 2,5 hectares – o equivalente a três campos de futebol –, também era a moradia dos índios guaianás (ou guaianases), que assistiram a celebração dos europeus com tranquilidade.
Na verdade, no começo do século 20, houve um debate acerca de quem seriam os primeiros habitantes da região, os kaiagangs – muito arredios aos europeus – ou os guaianás, mais, digamos, simpáticos. Na tela, a opção foi por retratar indígenas semelhantes aos guaianás, mas com um porte viril, mostrando como os índios paulistas eram melhores.
Os religiosos ocupam um lugar nobre na tela, na parte central, ladeados por cruzes e com a construção que viria a ser o primeiro colégio ao fundo
⇨A iluminação está sobre os religiosos, com os índios em uma área mais sombreada, determinando uma hierarquização
⇨A primeira missa foi rezada pelo padre Manoel de Paiva, que aparece no centro da tela com uma estola dourada e segurando uma Bíblia em uma mão e benzendo os assistentes com a outra
⇨Atrás do grupo de religiosos, há ainda um altar com velas e uma cruz alta e a construção de uma igreja de madeira e folhas de bananeira
A cerimônia é o momento da fundação do Colégio São Paulo de Piratininga, que iria evangelizar e educar os guaianás e que seria o marco fundador de São Paulo – o lugar viraria vila em 1560 e cidade em 1711. A data escolhida – 25 de janeiro – é o dia em que se comemora a conversão do apóstolo Paulo ao cristianismo.
Mas quem conta essa história? É fato que Manoel da Nóbrega já havia estado no Planalto de Piratininga em 1553, e batizado solenemente 50 índios na aldeia de Tibiriçá. No ano seguinte, os jesuítas voltaram a Piratininga para se estabelecer.
A tela que vemos acima – “Fundação de São Paulo”, um portento de 185 cm x 340 cm, hoje parte do acervo do Museu Paulista da USP – é obra do artista Oscar Pereira da Silva (1867-1939).
O projeto foi iniciado em 1903, mas a obra só foi concluída em 1907, mesmo ano em que foi exposta pela primeira vez. O pintor optou por retratar o momento da fundação da cidade de São Paulo porque o estado vivia, no início do século 20, uma extrema exaltação da história paulista como essencial para o desenvolvimento nacional.
O pintor optou por retratar esse momento da história pois, aliado ao crescimento econômico e cultural da cidade, estava em voga um movimento de exaltação do valor dos paulistanos em relação ao restante do País. Algumas instituições, como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, foram fundadas com o objetivo de construir uma identidade local que colocasse seu povo como um dos principais agentes responsáveis pelo sucesso da nação, como um todo.
Daí a importância da integração entre os europeus — representados pelos religiosos — e os indígenas, com protagonismo catequizador para os primeiros. Enquanto a missa é celebrada, os guaianás assistem, alguns deles ajoelhados em sinal de respeito.
A cena também mostra índios subindo uma trilha e indo em direção à missa, como um momento de elevação em busca da catequização.
E apesar de alguns deles portarem lanças e arcos, nenhum é apontado em direção aos jesuítas, em sinal de respeito.
A atitude pacífica dos índios é um importante elemento para o contexto em que a “Fundação de São Paulo” foi pintada. Na tela, os índios demonstram uma atitude de passividade em relação à ação dos europeus, que, por sua vez, estão eretos e são os sujeitos do acontecimento. Tudo indica que os índios estão submissos e aceitando a dominação por via da religião.
Segundo a historiadora e pesquisadora da USP
Michelli Monteiro:
“no nível simbólico, há a apropriação social do território por meio da união do índio com o branco europeu”.
A cena também mostra outros padres, de batina preta, segurando cruzes e benzendo índios adultos e crianças.
Próximo ao padre Manoel de Paiva, que celebra a missa, pode-se ver um europeu em trajes civis. Ele poderia ser João Ramalho, um dos signatários da fundação de São Paulo, por mais que não haja certeza de sua presença no evento.
A obra encontra semelhanças com a Primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, mas a cerimônia retratada por Oscar Pereira da Silva, mais do que referendar um momento inicial de “brasilidade”, procura enfatizar a identidade e a primazia paulistas diante dos fatos históricos.
Segundo a pesquisadora Michelli Monteiro, Oscar Pereira da Silva foi assertivo ao escolher essa missa para retratar a fundação da cidade, pois não há nenhum documento ou depoimento a ser comparado, ao contrário da obra de Victor Meirelles que tem a carta de Pero Vaz de Caminha como testemunho. Portanto, segundo ela, a obra foi tida como documento e, desde então, é debatida em conferências e artigos que buscam um diálogo intelectual com o imaginado na tela.
O que chamamos hoje de identidade paulistana (e paulista, por extensão) é um amálgama composto por várias nacionalidades, raças e credos, que se forjou ao longo dos séculos. E o passo inicial foi aquela missa retratada por Pereira da Silva, ao colocar sob o mesmo céu índios e religiosos europeus em um perfil definitivo.
Fontes:
MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: trajetórias de uma imagem urbana. Dissertação de Mestrado. FAU/USP. 2012
MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo: a construção de uma representação urbana na pintura histórica. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História (Anpuh). 2011
MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo: a origem da cidade representada por Oscar Pereira da Silva e Antônio Parreiras. VII Encontro de História da Arte. Unicamp, 2011
Do Jornal da USP