Publicado 11/03/2021 14:00 | Editado 11/03/2021 15:51
O fechamento da Aliança Nacional Libertadora (ANL) não foi recebido passivamente por parte da militância, que continuou a luta na clandestinidade. A Ação Integralista Brasileira (AIB) crescia e se enraizava, chegando a ter 400 mil filiados (1), ao passo que a ANL teve, no auge, 150 mil. Com o processo de perseguição à ANL se acentuando, esta foi perdendo adeptos, seja pelo medo da repressão, seja para a repressão em si. Diante da onda fascistizante que se agigantava no Brasil, a ANL, sob forte influência dos comunistas, promove um levante armado em novembro de 1935. Com o fracasso do levante, o governo recrudesce a repressão contra todos os opositores, sobretudo os comunistas.
As mulheres, obviamente, não foram poupadas: foram presas em massa, espremidas em celas insalubres, muitas foram torturadas e deportadas, como é o caso de Elise Berger — barbaramente torturada e expulsa do país — e Olga Benario, militante comunista alemã de origem judaica entregue à Hitler pelo governo Vargas. Quando deportada, em 1936, Olga esperava uma filha de Luís Carlos Prestes, seu companheiro e principal liderança do PC do Brasil no levante. Deportada para a Alemanha nazista, foi executada em um campo de extermínio em 1942.
Foram tantas as prisões que os porões do navio Dom Pedro I foram transformados em presídio. Por lá, passaram as dirigentes da União Feminina do Brasil (UFB) Maria Werneck de Castro, Catharina Landeberg e Amanda de Alberto Abreu. A Casa de Detenção do Rio de Janeiro ficou abarrotada de presos políticos, muitos sem sequer haver sido formalmente acusado. Dentre eles, muitas mulheres: Maria Werneck de Castro, a psiquiatra Nise da Silveira, Eneida de Moraes, Rosa Meirelles, Beatriz Bandeira, Antonia Venegas, Eugênia Álvaro Moreyra, Francisca Moura, Armanda Álvaro Alberto, Valentina Barbosa Bastos, Haidée Nicolucci e Catharina Besouchet. (3)
Quem também não escapou da sanha autoritária dos aparatos da repressão foi a escritora, jornalista e militante comunista Patrícia Rehder Galvão. Pagu, como era conhecida, entrara para o PC do Brasil em 1931 e sofreria na feroz repressão que se seguiu ao levante de 1935. Presa e torturada pelos agentes do Estado, fugiu no final de outubro de 1937. Aderindo formalmente às posições da IV Internacional — organização ligada à corrente trotskista fundada em 1938 em Paris —, em 1939, e acabou sendo expulsa do PC do Brasil. (4)
A brutal repressão que se abateu sobre a militância debilitou e dispersou o PC do Brasil naquela virada de década, ao ponto de, em 1943, em plena invasão da URSS pela Alemanha nazista, os membros do CC do PC do Brasil se encontravam quase todos na cadeia. Em resposta, a Comissão Nacional de Organização Partidária (CNOP) convoca a 2ª Conferência Nacional do Partido, conhecida como Conferência da Mantiqueira, com vistas à sua reorganização, ainda sob clandestinidade. A despeito de mulheres terem participado de todas as batalhas encampadas pelo partido naquele início de década, como a campanha pela entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial contra o nazi-fascismo ou pela anistia dos presos e exilados políticos, nenhuma participaria da conferência ou comporia o Comitê Central nela eleito.
Novos ventos
Com o fim da 2ª Guerra, o prestígio da URSS e a legalidade do PC do Brasil abriram as portas do partido e a presença feminina passou a ser, apesar de ainda minoritária, considerável. Este crescimento se refletiu no resultado eleitoral de 1945, quando o PC do Brasil atingiu 10% do eleitorado e elegeu um senador e 14 deputados federais(5). Todavia, apenas algumas poucas mulheres foram lançadas candidatas a deputada federal, estadual ou mesmo vereadora e, naquele ano, nenhuma foi eleita quer seja pelo PC do Brasil ou por qualquer outra agremiação.
Já nas eleições seguintes, em janeiro de 1947, o partido conseguiria eleger algumas mulheres, muitas delas pioneiras da política institucional brasileira, tais como Adalgisa Rodrigues Cavalcanti, primeira deputada estadual de Pernambuco(6); Zuleika Alambert — então secretária-geral da União da Juventude Comunista —, eleita 1ª suplente do PC do Brasil, assumindo o mandato em setembro (7). Inaugurou, junto a outras duas eleitas, a presença de mulheres na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Também foram eleitas vereadoras comunistas. Para Câmara do antigo Distrito Federal, o PC do Brasil elegeu duas das quatro mulheres eleitas no pleito: a sindicalista Odila Schmidt e a advogada maranhense Arcelina Rodrigues Mochel, que chegou a liderar a bancada do PC do Brasil, composta por 18 vereadores, a maior daquela casa legislativa. (8) A professora Elisa Kauffmann foi eleita a primeira vereadora da cidade de São Paulo (9). Maria Olímpia Carneiro elegeu-se em Curitiba (10) e Salvadora Lopes Peres, líder operária, em Sorocaba (SP) — embora tenha sido impedida de tomar posse. Vera Pinto Telles, eleita primeira suplente, terminou por assumir uma cadeira na Câmara Municipal de Campinas, no interior de São Paulo. É difícil aferir exatamente quantas mulheres o PC do Brasil elegeu neste processo em todo o Brasil, o fato é que todas teriam o mandato cassado pouco tempo depois, quando o partido foi colocado novamente na ilegalidade em 1947. (11)
Mesmo com o aumento da presença de mulheres no seio do PC do Brasil, estas permaneciam fora dos corpos dirigentes. Dos 44 dirigentes eleitos — contando efetivos e suplentes — para o Comitê Central na 3ª Conferência Nacional, em 1946, nenhum era mulher. (12) E, à medida em crescia a participação das mulheres no espaço público, este passava a representar um problema político e ideológico para os comunistas brasileiros enfrentarem.
Durante a primeira reunião legal do Comitê Central, ainda em 1945, o secretário-geral do partido, Luís Carlos Prestes, fala da importância da mobilização de mulheres na luta por suas reinvindicações específicas, em “todas as demais oportunidades — conferências, plenos, comícios, sabatinas, reuniões” e ressaltado a necessidade de o PC do Brasil dirigir-se às mulheres, “esclarecê-las, estudar os obstáculos que dificultam sua participação na vida política do país.” pois “a luta da mulher por sua emancipação é força espontânea das mais poderosas que só precisa ser unificada e dirigida para transformar-se em componente decisivo na luta pela democracia do Brasil.” (13)
Os desdobramentos políticos e organizativos ficariam mais evidentes quando, em 1947, “uma diretiva do C.C. do P.C.B. recomendava a criação e organizações de bases femininas com o objetivo de atender às condições específicas de vida da mulher brasileira” (14) e a primeira edição do jornal O Momento Feminino foi lançada. As duas iniciativas atendiam a duas dimensões distintas do trabalho de mulheres: com as organizações de base pretendia-se impulsionar o trabalho internamente, dentro do partido, e, com um jornal de circulação ampla, tinha-se como objetivo fundamentalmente promover o debate externo, com as mulheres não organizadas no PC do Brasil ou mesmo de outras organizações e partidos.
Previsto inicialmente para ter circulação semanal, o primeiro número de O Momento Feminino data de 25 de julho de 1947 e traz na capa os nomes de suas colaboradoras: Alina Paim, Arcelina Mochel, Diana de Brito, Edíria Carneiro, Eneida, Gilda Braga Linhares, Hilda Campofiorito, Lia Corrêa Dutra, Ligia Maria Lessa Bastos, Maria Luiza, Marieta Jacques, Maura de Sena Pereira, Sagramor de Scuvero, Silvia e Yvonne Jean. (15)
Sob a direção de Arcelina Mochel, seu lema era “um jornal a serviço do seu lar”. Contudo, uma breve leitura da publicação seria suficiente para concluir que o lema não correspondia inteiramente ao conteúdo. Já no próprio editorial, a diretora afirma ser o jornal “um novo esteio de combatividade, viga mestra de luta das mulheres pela felicidade de todos, abre esta coluna de troca de ideias sobre nossos problemas, nossos direitos, nossas liberdades.”
Com textos sobre conjunturas internacional e nacional, ora com enfoque generalizante, ora com enfoque na questão da mulher — sobretudo sua participação política, social e valorização ao longo da história —, o Momento Feminino conclamava-as a ocuparem o espaço público, ao passo que combinava matérias sobre moda feminina e infantil, culinária e cuidados com os filhos.
Para o historiador Jorge Luiz Ferreira, “mesmo que, aos olhos de hoje, um modelo feminino como este tenha um caráter conservador, exaltando a maternidade, a abnegação, a moralidade exemplar […], é necessário considerar que o projeto comunista incentivava a participação da mulher na luta política, novidade para época, ajudando-a a libertar-se da opressão social e a afirmar-se como mulher e cidadã.” (16)
O Momento Feminino propagou ideias progressistas e agregou mulheres em torno delas, graças a isso, foi um impulsor e organizador dos comitês femininos nos bairros e sindicatos. Estes dariam origem, em 1949, à Federação de Mulheres do Brasil (FMB). Era uma entidade ampla, ou seja, que não congregava apenas militantes do PC do Brasil, mas mulheres progressistas em geral. A FMB tinha Arcelina Mochel como secretária-geral, representante das comunistas na direção da entidade.
A primeira presidente da FMB foi a grande democrata e nacionalista Alice Tibiriçá. A entidade reunia organizações femininas de 11 estados brasileiros e se envolveu em inúmeras campanhas: contra a carestia de vida e pelo controle dos preços dos produtos essenciais, na campanha O Petróleo é Nosso!, pela paz mundial e contra as armas atômicas, contra o envio de soldados brasileiros à guerra da Coreia. Muitas militantes do partido e da FMB seriam perseguidas e presas durante a ditadura de Eurico Gaspar Dutra, sendo o caso mais emblemático o da costureira paulista Elisa Branco, presidente da Federação de Mulheres Paulistas. (17)
Apesar do sentido progressista das campanhas, seu caráter generalizante denota que as reinvindicações especificamente femininas eram secundárias neste primeiro momento. Elas ganhariam corpo lentamente, o que se expressa através de um termo que seria cada vez mais empregado, seja no O Momento Feminino ou na imprensa partidária propriamente: “emancipação da mulher”. Nas lutas sociais, denunciavam-se fortemente a situação de fome e miséria do povo, contudo, apontava-se que era ainda mais penosa a situação das brasileiras. Este é um movimento sutil, mas que aponta para uma clivagem na consciência que as mulheres possuíam de si: era cada vez mais clara a percepção de que elas eram mais atingidas pela pobreza, exploração, falta de liberdades e de direitos. A virada qualitativa no trabalho de mulheres do partido ficará mais evidente a partir do início da década de 1950, como abordaremos no próximo artigo da série.
Notas e referências bibliográficas
(1) BRANDI, Paulo. Plínio Salgado. In: BELOCH, Israel; ABREU, Alzira Alves de. (orgs.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p.30-54.
(2) MORAES, Fernando. Olga. São Paulo: Editora Alfa-ômega. 1985. p. 293
(3) BUONICORE, Augusto & FARIA, Fernando Garcia de. As mulheres e os noventa anos do comunismo no Brasil. Disponível em https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/
(4) VENTURINI, Mariana de Rossi. Comunistas do Brasil e a emancipação das mulheres. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Campinas: 2019.
(5) Luís Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, foi eleito senador pelo Distrito Federal; no mesmo pleito, foram eleitos deputados federais constituintes pelo partido: Abílio Fernandes (RS), Agostinho de Oliveira (PE), Alcedo Coutinho (PE), Alcides Sabença (RJ), Carlos Marighella, Claudino José da Silva (RJ), Gregório Bezerra (PE), João Amazonas (DF), Joaquim Batista Neto (DF), Jorge Amado (SP), José Maria Crispim (SP), Maurício Grabois (DF), Milton Caires de Brito (1º suplente por SP, assumiria na saída de Mario Scott), Osvaldo Pacheco (SP); RUY, José Carlos. Os comunistas na Constituinte de 1946. São Paulo: Editora Anita Garibaldi & Fundação Maurício Grabois. 2016. p. 195-222.
(6) RICARDO, Arleandra de Lima. Adalgisa Cavalcanti: Bela, comunista e 1ª Deputada Estadual de Pernambuco. Anais do XX3º Encontro Estadual de História. 2016: ANPUH-SP.
(7) SOIHET, Rachel. A trajetória de Zuleika Alambert. Em: Cadernos Pagu. Campinas: janeiro-junho de 2013. p. 172.
(8) OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. A Câmara Municipal do Rio/DF e a política para as favelas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: julho/2011.
(9) SALVADORI, F. Ela não teve medo da vida. Em: Revista Apartes Nº06. São Paulo: mar-abr/2014.
(10) CÂMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. Maria Olimpia Carneiro Mochel, a primeira vereadora de Curitiba. Disponível em: https://www.cmc.pr.gov.br/ass_det.php?not=22332#&panel1-1.
(11) BUONICORE, Augusto & FARIA, Fernando Garcia de. As mulheres e os noventa anos do comunismo no Brasil. Disponível em https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/
(12) Idem.
(13) GONÇALVES, Carlota. “Em homenagem à Prestes, melhorar o trabalho feminino”. Jornal Voz Operária nº84, Rio de Janeiro, 03/01/51, p. 02.
(14) ALMEIDA, Iraci. Necessárias as Organizações de Base Femininas. Jornal Voz Operária nº256, Rio de Janeiro, 10/04/54, Suplemento, Tribuna do 4º Congresso, p. 04.
(15) A professora de educação física Lígia Maria Lessa Bastos e a radialista Sagramor de Scuvero haviam sido eleitas vereadoras na Câmara do Distrito Federal no pleito de 1946, respectivamente, pela União Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Junto com as outras duas vereadoras, as comunistas Arcelina Mochel e Odila Schmidt, totalizavam as mulheres eleitas, em caráter inédito, para aquela casa legislativa. Isso mostra de forma inequívoca o caráter amplo que o PCB pretendia dar ao Momento Feminino e, de forma mais alargada, ao movimento de mulheres.
(16) FERREIRA, Jorge Luiz. Prisioneiros do Mito – Cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro: Maud e EdUFF, 2002.
Leia também: Comunistas do Brasil e a questão da mulher – parte 1, por Mariana Venturini