Discurso Competente versus Discurso Transdisciplinar, por Fernando Nogueira da Costa

Os gastos da casta dos mercadores, com o privilégio de ter a maioria dos seus rendimentos isentos, não estão oferecendo empregos e renda para os ditos “párias”, excluídos socialmente, afirma o economista em artigo publicado pelo Portal GGN.

De acordo com alguns membros da casta dos sábios intelectuais, defensores do “discurso competente”, a ciência é vista como saber separado e como coisa privada, servindo como instrumento de dominação dos sábios sobre os ignorantes. Marilena Chauí, em seu livro “Cultura e Democracia: o Discurso Competente e Outras Falas” (1980), afirma: “o discurso competente se instala e se conserva devido à seguinte regra: não é qualquer um possibilitado de dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em qualquer lugar. Ele produz sua contra face: os incompetentes sociais”.

Contra o poder ideológico da casta dos mercadores (ricos na abundância contra pobres na penúria) e o poder militar da casta dos guerreiros (fortes armados contra fracos desarmados), os “sábios” buscam se impor contra pressupostos “ignorantes”. Esses intelectuais, em vez de usar a posse de sabedoria para exercer a força das ideias como poder de coesão pela realidade consensual em torno de um contrato social democrático, buscam manter os privilégios corporativistas de sua casta com base em “argumentos de autoridade”.

Antônio Gramsci, face à popularidade do fascismo italiano, resolveu rever os conceitos marxistas sobre classe dominante, dependente apenas do poder econômico. Distinguiu, no âmbito da superestrutura, a importância da criação da hegemonia ideológica (direção e consenso a respeito dos interesses dominantes), na sociedade civil, e o aparato da coerção estatal (violência repressiva), na sociedade política.

Nesta, o sistema jurídico e o policial-militar organizam a coerção ou mesmo a coação. Essas palavras são parecidas, mas possuem “sutis” diferenças em seus significados.

coerção é usada pelo Estado para garantir o cumprimento de uma lei ou de uma obrigação. A coação pode ser empregada com o significado de levar uma pessoa a agir contra sua vontade, obrigando-a a tomar uma atitude não desejada. Nesse caso pode existir violência (psicológica ou física), enquanto na coerção legal isso não ocorre.

Gramsci renovou a visão marxista antes predominante, onde a infraestrutura ou o sistema econômico, isto é, o modo de produção, levaria quase automaticamente impor os interesses da classe dominante na superestrutura. O Poder Ideológico e o Poder Político, simplesmente, refletiriam ou se submeteriam ao Poder Econômico.

Ele define duas categorias de intelectuais: o orgânico e o tradicional. O intelectual orgânico é aquele oriundo da classe social à qual se mantém vinculado ao atuar como porta-voz da ideologia, valores morais e interesses dela. O intelectual tradicional se vincula a outro grupo social, instituição ou corporação, e expressa os interesses particulares compartilhados pelos seus membros.

Gramsci destaca a luta contra os privilégios e os valores conservadores da casta dominante se travam no campo da ação prática e no campo ideológico. No primeiro, a realidade objetiva é aquilo concreto e dado, independente da crença, como objetos sólidos ou ativos existentes e construídos com base na evolução tecnológica. Por exemplo, a 4ª. Revolução Industrial com automação, robotização e elevação da produtividade propicia a luta trabalhista para redução da jornada semanal de trabalho sem redução de rendimentos.

O campo ideológico se refere à realidade consensual. É aquilo “combinado de ser real” ou moldável pela inteligência coletiva. Sua confirmação vem do coletivo a partir de premissas interpretativas. Exemplos econômicos podem ser o dinheiro desmaterializado (digital) e dependente da confiança ou a riqueza, avaliada por “valor de mercado”: predominâncias temporárias de opiniões subjetivas de quanto vale.

Grupos sociais, instituições e corporações geram intelectuais tradicionais em defesa, consciente ou inconscientemente, dos interesses dominantes. Entre outros, podem ser citados os membros de altas patentes das as Forças Armadas, constituintes da casta aos militares, os membros da Igreja como os clérigos de subcasta dos sábios sacerdotes, além dos professores universitários, membros de outra subcasta dos sábios intelectuais.

Em termos dinâmicos, os poderes de castas de natureza ocupacional e suas lógicas de ações podem se aliar, temporariamente, até se romperem por uma querer impor seus valores à outra. Por exemplo, é natural ou circunstancial a aliança entre o poder militar da casta dos guerreiros com sua lógica militar, cujos valores são violência, vingança, coragem, fama, glória, etc., e o poder econômico?

Este pertence à casta dos mercadores. Segue a lógica de mercado, cujos valores ideológicos são liberalismo, empreendedorismo, competitividade, eficiência em custos/benefícios, etc. Para esse discurso ideológico, ela tem o franco apoio da subcasta dos sábios conservadores, os economistas-chefe de bancos e/ou consultores com palanques exclusivos no jornalismo econômico para desfiar cotidianamente a velha, repetitiva e ultrapassada cartilha neoliberal.

Aos intelectuais tradicionais, representantes da casta dominante, cabe a função de produção e reprodução dessa ideologia. Atuam – e são bem remunerados para tanto – no sentido de tornar hegemônico todos os valores sociais e culturais dela.

Além disso, tentam ditar a concepção geral da opinião pública de modo a conservar o mundo econômico, prevalecente com base no capitalismo. Desse modo, buscam definir os parâmetros dos modos de pensar e de atuar de seus representantes no governo e assegurar, de forma plena e continuada, os interesses de seus patrões.

Porém, como dito antes, o Estado constitui uma unidade contraditória entre a coerção (violência repressiva), a coesão (dominação ideológica), mas além disso tem a necessidade de atender à reprodução contínua do “capital em geral”. Não se deve subestimar o papel da crise econômica na vida social.

Nesse sentido, o Estado possui uma autonomia relativa em relação os interesses particulares de capitalistas. A integração ideológica supõe também o Estado levar em conta, em certa medida, os interesses materiais dos “párias”, dominados e explorados.

Os interesses limitados dos capitalistas individuais podem ser, assim, “sacrificados” em nome dos interesses da classe dominante em seu conjunto, isto é, da reprodução do sistema capitalista. Logo, uma afirmação correta em relação a um capitalista individual pode não ser caso seja aplicada à classe capitalista como um todo.

Por exemplo, o vantajoso para um empresário individual não necessariamente beneficia a todos os empresários. Se um empresário reduzir os salários, ele poderá expandir seu lucro, mas se todos os empresários fizerem a mesma coisa, o resultado será inteiramente diferente. Salário é custo, mas massa salarial é demanda agregada.

Cada capitalista, individualmente, pode decidir quanto investirá e consumirá, mas não pode decidir a respeito de quanto serão suas vendas e seus lucros. O individualismo metodológico não permite enxergar algo visto pelo holismo, isto é, a visão sistêmica.

Os holistas, ao considerarem as decisões de investimento tomadas pela classe capitalista como um todo, chegam à conclusão de, enquanto houver excesso de capacidade produtiva ociosa, não haverá possibilidade de reprodução ampliada do capital em geral. Nessa circunstância de imensa ociosidade, se não se dispor de “mercados externos” aos gastos dos próprios empresários, essa casta se frustrará pela não existência de mercado para escoar sua produção. Haverá, nessa fase cíclica de crise econômica, um problema de carência de demanda efetiva na dinâmica do sistema capitalista.

A subcasta dos economistas neoliberais enganam (a si e ao público) ao tomar como pressuposto o crescimento autossustentado da economia de mercado. Os chamados “mercados externos” às decisões dos próprios empresários surgem sob a forma de gasto produtivo governamental e superávit no comércio exterior. Exercem um importante papel no funcionamento dessa economia quando ela está estagnada.

Esse investimento público, se for financiado por lançamento de títulos de dívida pública ou mesmo por tributos sobre dividendos (distribuição de lucros) isentos, recebidos pela casta dos mercadores, contribuirá para a solução do problema da carência da demanda efetiva. Seu efeito não será contrabalançado por um declínio do consumo, caso esse gasto público fosse financiado por tributação direta ou indiretamente incidente sobre consumidores. A queda em sua renda líquida disponível reduziria o consumo.

Houve uma ruptura unilateral do contrato social na economia brasileira. Os gastos da casta dos mercadores, com o privilégio de ter a maioria dos seus rendimentos isentos (veja Tabela), não estão oferecendo empregos e renda para os ditos “párias”, excluídos socialmente.

Entre os 177 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade, cerca de 102 milhões estão na força de trabalho, mas 14,4 milhões delas encontram-se desocupadas – e buscam empregos sem os conseguir. A taxa de subutilização da força de trabalho está em 28,6%.

São apenas 50 milhões de empregados formais, considerando entre eles 10,5 milhões no setor público com carteira assinada, militares ou funcionários públicos estatutários.  No total de quase 88 milhões de pessoas ocupadas, são 57% formais e 43% informais sem carteira ou trabalhando por conta própria sem CNPJ.

Aos intelectuais orgânicos, críticos desse “pacto da mediocridade” com evidente retrocesso da economia brasileira, cabe a imprescindível tarefa de romper com a hegemonia neoliberal a partir da crítica à ruptura do contrato social e formulação de um projeto de desenvolvimento sustentável alternativo. Só o questionamento contínuo será capaz de abalar e superar essa ideologia dominante. Não devem se abater com a contumaz crítica esnobe de não disporem de “discurso competente”.

Fonte: Portal GGN

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