Ramaphosa dribla emboscada de Trump e desmonta tese do “genocídio branco”

Trump transforma o Salão Oval em palco de intimidação diplomática e tenta constranger Ramaphosa com vídeos distorcidos e acusações falsas de perseguição racial

O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, observa enquanto Donald Trump exibe material impresso com alegações de “genocídio branco” durante reunião no Salão Oval. Foto: Reprodução

O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, reagiu com firmeza à tentativa de Donald Trump de transformá-lo em alvo de uma encenação no Salão Oval. Durante a reunião bilateral realizada na quarta-feira (21), o republicano exibiu vídeos e artigos distorcidos para sustentar a tese infundada de que estaria em curso um “genocídio branco” contra agricultores sul-africanos. 

A nova emboscada a um chefe de Estado expôs o uso estratégico do espaço presidencial dos EUA para reforçar pautas da extrema direita global.

Com as luzes apagadas e um telão posicionado diante da imprensa, Trump exibiu falas de políticos da oposição sul-africana, como Julius Malema, e imagens de cruzes brancas, que o norte-americano descreveu como túmulos de fazendeiros brancos mortos por negros. 

Checadas, as imagens, no entanto, foram identificadas como parte de um protesto rural ocorrido em 2020, sem relação com cemitérios ou violência em massa. 

Ramaphosa assistiu a parte do material sem esboçar reação, mas respondeu com clareza logo em seguida. “Aquelas pessoas que, infelizmente, são assassinadas por causa da criminalidade não são apenas brancas. A maioria são negras”, afirmou.

Ao lado de dois golfistas brancos e de seu ministro da Agricultura, John Steenhuisen, Ramaphosa acrescentou: “Se houvesse genocídio contra os africâneres na África do Sul, esses senhores não estariam comigo aqui hoje”. 

Os africâneres são brancos sul-africanos de origem europeia, majoritariamente descendentes de holandeses, que formaram a base social e política do regime do apartheid (1948–1994). 

Ainda hoje eles mantêm forte influência em setores conservadores da sociedade sul-africana.

Dados oficiais corroboram a resposta de Ramaphosa. Segundo a polícia sul-africana, o país registrou 26.232 homicídios em 2024, dos quais apenas oito envolviam agricultores brancos. 

Estudos do Instituto de Estudos de Segurança apontam que os índices de violência nas áreas rurais, embora alarmantes, não são dirigidos por critérios raciais.

Reação serena é elogiada; população sul-africana questiona visita

A postura do presidente sul-africano foi vista por analistas como estratégica. Em artigo no Daily Maverick, a colunista Rebecca Davis afirmou que Ramaphosa “não foi zelenskado”, em referência ao confronto ocorrido entre Trump e o presidente da Ucrânia em fevereiro. “Foi impossível não sentir empatia por Ramaphosa, que recebeu o recado de que não deveria perder a calma, e assim o fez”, escreveu Davis.

Ainda assim, a visita à Casa Branca dividiu opiniões na África do Sul. Parte da população elogiou a postura do presidente, mas questionou os ganhos diplomáticos da viagem. 

“Sabemos que não há genocídio branco. Para mim, foi uma perda de tempo”, disse à Reuters o sindicalista Sobelo Motha, ouvido nas ruas de Joanesburgo. 

Já o porta-voz do ministério das Relações Exteriores, Chrispin Phiri, defendeu o encontro. “O mais importante é que os dois presidentes se encontraram. Ramaphosa é direto, calmo, e foi isso que esperávamos”, disse.

Presidente ironiza escândalo bilionário de Trump com avião do Catar

O momento de maior tensão veio quando Trump, em tom de brincadeira, disse que aceitaria um avião da África do Sul como presente. Ramaphosa reagiu com ironia contida: “Desculpe, eu não tenho um avião para te dar”. 

A alfinetada remete ao escândalo sobre o presente bilionário que Trump teria aceitado do governo do Catar — um Boeing 747 avaliado em US$ 2 bilhões, que permanecerá como bem pessoal do republicano, e não do Estado.

Logo após a resposta de Ramaphosa, Trump riu e completou: “Se seu país oferecesse um avião à Força Aérea dos EUA, eu aceitaria”. 

A referência ao presente do Catar gerou novo constrangimento, e Trump passou a classificar as informações sobre o avião como “fake news” em bate boca com jornalistas.

Trump transforma o Salão Oval em palco de constrangimentos

Desde o início de seu segundo mandato, Donald Trump tem transformado reuniões bilaterais em emboscadas midiáticas. 

Em fevereiro, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi confrontado diante das câmeras e repreendido por Trump e seu vice, JD Vance, por suposta falta de “gratidão” à ajuda militar norte-americana. 

Dias depois, o ucraniano teve que suavizar o tom para tentar preservar o apoio de Washington.

O rei Abdullah II, da Jordânia, também foi pressionado publicamente por Trump a aceitar refugiados palestinos, num gesto que, segundo seus interesses, colocaria em risco o equilíbrio político do país. 

Já o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, reagiu à altura quando foi acusado por Trump de censurar big techs nos EUA. “Temos liberdade de expressão há muito tempo e ela continuará existindo por muito tempo ainda”, disse. 

Acostumado aos embates retóricos no Parlamento britânico, Starmer rebatia o lobby de Musk e da sua rede social X, que enfrenta regulamentação nos países europeus. Em seguida, Starmer ainda sacou uma carta do rei Charles III convidando Trump para uma visita de Estado.

Até líderes próximos, como a italiana Giorgia Meloni, tiveram que contornar armadilhas diplomáticas. Para evitar choques, Meloni assumiu pessoalmente a tradução de sua fala e adaptou seu discurso com a frase “make the West great again”. 

Já o canadense Mark Carney respondeu com sarcasmo quando Trump sugeriu que partes do Canadá poderiam ser “compradas”: “O Canadá não está à venda. Nunca estará”, disse, olhando para as câmeras.

AfriForum e a retórica do “genocídio branco”

A narrativa apresentada por Trump no Salão Oval ecoa diretamente os materiais produzidos pela AfriForum, uma organização conservadora ligada à minoria branca de origem europeia na África do Sul. 

Embora o grupo negue usar o termo “genocídio”, seu discurso atua contra políticas de redistribuição de terras e ações afirmativas, e seus vídeos são frequentemente promovidos por nomes da nova direita global, como Tucker Carlson e Elon Musk.

Em entrevista à Bloomberg, o CEO da AfriForum, Kallie Kriel, confirmou que o vídeo usado por Trump se baseia em imagens similares às que a entidade já utilizou em suas campanhas. 

Segundo ele, “agora questões como os direitos de propriedade e as medidas raciais estão claramente sobre a mesa”.

A lei sancionada por Ramaphosa em janeiro permite a expropriação de terras sem indenização apenas em casos excepcionais, como abandono ou uso especulativo. 

A medida busca corrigir parte das distorções herdadas do apartheid, que concentrou a terra nas mãos de uma minoria branca. Atualmente, brancos são 7% da população sul-africana, mas detêm mais de 70% das terras agrícolas registradas.

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